Ídolos com pés de barro

por

Isabel Oliveira

05 de abril 2025 - 21:53
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Redes sociais como o Instagram, o TikTok e o YouTube transformaram indivíduos comuns em ícones, influenciando milhões sem qualquer filtro crítico. Mas será esta devoção apenas entretenimento, ou revela algo mais profundo sobre a forma como construímos os nossos ídolos?

Influencers
Foto de Juice Krate/Flickr

O que leva multidões a defender cegamente uma figura pública, ignorando comportamentos duvidosos e por vezes criminosos?

No universo digital, este fenómeno intensificou-se, criando uma idolatria em torno dos chamados influencers. Redes sociais como o Instagram, o TikTok e o YouTube transformaram indivíduos comuns em ícones, influenciando milhões sem qualquer filtro crítico. Mas será esta devoção apenas entretenimento, ou revela algo mais profundo sobre a forma como construímos os nossos ídolos?

Hoje, influencers tornam-se referências em áreas tão diversas como o “life style”, a saúde, a política, a economia…  muitas vezes sem qualquer formação ou conhecimento aprofundado. No entanto, o seu carisma e a sensação de proximidade que criam com os seguidores geram um culto à personalidade que raramente é posto em causa. O que dizem e anunciam é aceite como verdade absoluta, e qualquer crítica é vista como um ataque pessoal, fomentando assim um ambiente quase fanático.

Este fenómeno, não se limita ao mundo digital. No desporto, na política e na religião, a idolatria transforma líderes em símbolos intocáveis, onde a lealdade se sobrepõe à razão. Um exemplo clássico é Pinto da Costa, presidente do FC Porto durante mais de quatro décadas. A sua liderança carismática e os sucessos desportivos que trouxe ao clube criaram uma lealdade inabalável entre os adeptos. No entanto, essa devoção, por vezes, transformou-se em fanatismo, onde críticas à sua gestão ou a escândalos que o envolveram são vistas como ataques ao próprio clube. Este fenómeno não é exclusivo do desporto, mas serve como um espelho para a sociedade, mostrando como a idolatria pode obscurecer a razão e dificultar o escrutínio necessário a qualquer líder.

No universo digital, um exemplo é Andrew Tate, ex-kickboxer e influencer, que construiu uma legião de seguidores promovendo um estilo de vida baseado na riqueza, na luxúria, na supremacia masculina e dando conselhos de vida social com teor descriminatório e misógino. Mesmo após ser alvo de graves acusações, ser detido por suspeitas de pedofilia, tráfico de menores, formação de grupo criminoso organizado e branqueamento de capitais, muitos continuam a defendê-lo cegamente, tratando qualquer crítica como parte de uma tentativa de conspiração contra ele.  Essa devoção reforça narrativas que colocam as figuras públicas acima da moralidade e da lei.

O fanatismo surge quando a admiração se transforma em devoção cega, eliminando qualquer espaço para o pensamento crítico. As falhas e as contradições dos ídolos são frequentemente ignoradas e qualquer confrontação pode ser vista como uma ameaça.

O impacto deste fenómeno estende-se para além do entretenimento. Políticos e organizações políticas manipulam discursos na mira do apoio incondicional e algumas figuras do desporto são protegidas de críticas, mesmo quando envolvidas em escândalos. Quando os fãs se recusam a pensar e a questionar sobre o que estão a ver ou ouvir, esses comportamentos vão-se normalizando, criando um terreno fértil para o autoritarismo e e a impunidade.

As plataformas digitais desempenham um papel central na ampliação deste fenómeno. As bolhas informativas isolam os seguidores de visões divergentes e dificultam a aceitação dos factos que contradizem a imagem que estes idealizam do ídolo. Quando a realidade colide com essa imagem, gera-se um desconforto que muitas vezes leva à negação, e a verdade fica subordinada à defesa da figura pública.

A exaltação de figuras públicas acarreta um perigo inegável: a ausência de reflexão crítica normaliza comportamentos eticamente duvidosos, onde a proteção da imagem do ídolo se torna mais importante que a própria verdade.

Evitar este cenário exige um compromisso individual e coletivo com o pensamento crítico e o debate aberto. Devemos encorajar a capacidade de questionar, tanto as figuras públicas quanto as nossas próprias convicções, considerando sempre múltiplas perspectivas.

Esta responsabilidade é particularmente crucial em períodos eleitorais, onde o voto consciente, baseado em informação verificada e não na veneração de politicos, é essencial para a saúde da democracia. Devemos estar vigilantes à forma como certos indivíduos e grupos, incluindo elementos populistas, utilizam a desinformação, incitam ao medo, à discriminação e, subtilmente, à violência para transmitir a ideia de caos, influenciando o debate público e as escolhas eleitorais. Para além disso, um voto verdadeiramente consciente exige que cada indivíduo reflita sobre a sua posição social e apoie aqueles que demonstram um compromisso genuíno em abordar as necessidades sociais mais evidentes. Como sabiamente nos lembrou Nietzsche, "Não sigas os homens, segue as ideias".

A luta contra o culto à personalidade e o fanatismo faz-se através da educação para a autonomia intelectual, da valorização da reflexão e de uma busca sólida pela verdade. Ensinar a interrogar é investir na inteligência, na responsabilidade cívica e, fundamentalmente, na liberdade individual e social. A capacidade de mudar de opinião, informada por novas evidências, é um sinal de crescimento intelectual.