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23 de julho de 1993: Massacre da Candelária e a impunidade policial que grassa no Brasil

Já passaram 29 anos desde que um grupo de polícias militares assassinou oito crianças e jovens, pobres e racializados, que dormiam na rua junto à Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro. Mas os massacres e a impunidade policial são uma realidade cada vez mais gritante no Brasil. Por Mariana Carneiro.
Imagem publicada no grupo de Facebook Candelária Nunca Mais.

Por volta da 1h da manhã de 23 de julho de 1993, dois carros pararam em frente à Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro, e atiraram contra quem dormia ao relento junto ao edifício. Oito pessoas foram mortas, entre as quais seis menores: Paulo Roberto de Oliveira, 11 anos; Anderson de Oliveira Pereira, 13 anos; Marcelo Cândido de Jesus, 14 anos; Valdevino Miguel de Almeida, 14 anos; "Gambazinho", 17 anos; Leandro Santos da Conceição, 17 anos; Paulo José da Silva, 18 anos; Marcos Antônio Alves da Silva, 19 anos. Quatro crianças morreram de imediato, e uma quinta criança foi baleada enquanto fugia. Um jovem adulto morreu em virtude dos ferimentos quatro dias depois. Três das vítimas do ataque foram colocadas dentro de uma viatura e foram baleadas a sangue frio e abandonadas nos jardins do Aterro do Flamengo. Apenas uma sobreviveu.

Várias outras crianças e adolescentes ficaram feridos. Todas as vítimas eram pobres e racializadas. Sobreviviam nas ruas, muitas delas depois de terem passado por instituições sem quaisquer condições e respostas sociais.

O testemunho de um dos sobreviventes, Wagner dos Santos, atingido por quatro tiros, um dos quais no rosto, foi fundamental para o reconhecimento de parte dos envolvidos. Wagner, que tinha sido deixado à morte do Aterro do Flamengo, comprovou que estavam em causa membros da polícia militar do Rio de Janeiro. Pouco mais de um ano após o massacre da Candelária, o jovem foi novamente vítima de um atentado e alvo de quatro disparos. Após o novo ataque, Wagner foi inserido no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Provita) e foi encaminhado para a Suíça, onde teve inúmeros problemas de adaptação devido à ausência do devido apoio do Estado brasileiro. Até hoje, continua a sofrer de vários problemas de saúde devido às graves lesões físicas e psicológicas.

Inúmeras organizações não-governamentais exortaram as autoridades estaduais e federais a garantirem proteção e um local seguro para as crianças que testemunharam o massacre. No entanto, muitas testemunhas continuaram a dormir nas ruas, onde foram alvo de reiteradas ameaças por parte de membros da polícia militar. Na própria noite do crime, após a retirada dos corpos, a artista plástica Yvonne Bezerra de Mello e os meninos de rua, com os quais ela trabalhava voluntariamente há algum tempo, ficaram sozinhos na praça no local do massacre, sem qualquer proteção. Somente a pressão da opinião pública e de organizações pela defesa dos direitos humanos, quer do Brasil, com milhares de pessoas a marchar nas ruas pela paz, como de outras partes do mundo, impediu que as investigações fossem bloqueadas, como aconteceu em relação ao massacre de 1990, quando onze jovens, dos quais sete menores, foram assassinados na favela de Acari.

Inicialmente, ainda em 1993, foram indiciados pelo Massacre da Candelária os polícias militares Marcus Vinícios Emmanuel, Cláudio dos Santos e Marcelo Cortes e o serralheiro Jurandir Gomes França. Em abril de 1996, o polícia militar Nelson Oliveira dos Santos Cunha confessou a sua participação no crime e identificou outros responsáveis: além de Marcos Emmanuel, os polícias militares Marco Aurélio Dias de Alcântara e Arlindo Afonso Lisboa Júnior e o ex-polícia Maurício da Conceição.

As declarações de Nelson Cunha entraram em contradição com o depoimento de crianças e jovens que, desde o início das investigações sobre o massacre, faziam referência à existência de dois carros, e não de apenas um, como alegado pelo polícia militar, e de oito participantes. Acresce que, nas suas declarações, o homicida atribuía a maior parte da responsabilidade ao ex-polícia militar Maurício da Conceição Filho, morto a tiro em 1994 por membros da unidade anti-sequestro da Polícia Civil. O depoimento de Nelson veio resultar na absolvição de Cláudio dos Santos, Marcelo Cortes e Jurandir Gomes França. Cláudio e Jurandir foram indemnizados pelo Estado. É bom relembrar que Wagner dos Santos tinha sido perentório ao garantir que Marcelo Cortes é um dos assassinos.

Um dos advogados das organizações de direitos humanos questionou o depoimento de Nelson Cunha: “Estranho que esse cidadão apareça agora para confessar toda uma participação quando a prova se dirigia para outras pessoas, e creio que é muito conveniente para alguns dos acusados”.

Nelson Oliveira dos Santos, Marco Aurélio Dias de Alcântara, Marcos Vinícios Emmanuel foram condenados a 18, 204 e 300 anos de prisão, respetivamente. Nelson tinha sido inicialmente condenado a 261 anos de prisão, mas recorreu da sentença e, em junho de 1997, foi absolvido de todas as acusações de assassinato. A pena de 18 anos corresponde apenas à tentativa de homicídio de Wagner dos Santos. Arlindo Afonso Lisboa Júnior somente foi condenado a dois anos de pena por ter em seu poder uma das armas utilizadas no crime. Após cumprirem parte da pena em regime fechado, os responsáveis pela morte de oito crianças e jovens beneficiaram de indultos ou liberdade condicional e foram postos em liberdade. Um quinto acusado, o polícia militar Carlos Jorge Liaffa, não chegou a ser indiciado, apesar de ter sido identificado por Wagner dos Santos e de a perícia comprovar que uma das balas foi disparada pela arma do seu padrasto.

"Certamente existiam mais polícias envolvidos, mas durante as investigações não foi possível identificá-los", explicou Riscala Abdenur, um dos promotores de justiça responsáveis pelo processo.

Durante as investigações, foram avançadas diferentes motivações para o crime, desde um serviço encomendado pelos comerciantes locais para “limpar a praça”, a uma pedra atirada contra uma viatura da polícia por uma das crianças ou o não pagamento de suborno aos polícias militares coniventes com o tráfico de cocaína.

Podemos encontrar referências ao Massacre da Candelária em obras como o livro "O Imperador da Ursa Maior" de Carlos Eduardo Novaes. O livro do jornalista Geraldo Lopes, “Massacre da Candelária”, dedica-se exclusivamente à tragédia. Danielle Ramos Brasiliense parte de outro ponto de vista e aborda “A chacina da Candelária e as memórias narrativas de O Globo”. Fora do Brasil encontramos também livros como “The Candelaria Massacre: How Wagner dos Santos Survived the Street Children's Killing That Shook Brazil”, de Julia Rochester. Já na área do cinema, o documentário "Ônibus 174", de José Padilha, e o filme "Última Parada 174", de Bruno Barreto, contam a história de Sandro Barbosa do Nascimento, sobrevivente do Massacre da Candelária que, sete anos mais tarde, protagonizou o sequestro ao autocarro 174. Nessa altura, a polícia militar matou uma passageira feita refém, tentando alvejar Sandro, que depois foi morto, por asfixia, dentro do carro da polícia. No jogo "Metal Gear Rising: Revengeance" também existe uma referência ao massacre.

Em 2001, um ano após a morte de Sandro Barbosa do Nascimento, das 72 crianças e adolescentes apontadas no inquérito como sobreviventes do Massacre da Candelária, 39 tinham morrido de forma violenta.

“Bandido bom é bandido morto”

O Massacre da Candelária não foi o único crime hediondo a colocar os holofotes sobre o Brasil e a violência policial no país naquela época. Este massacre aconteceu nove meses depois de um outro acontecimento, o Massacre do Carandiru. Em 2 de outubro de 1992, uma intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo para conter uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo, causou a morte de 111 detidos. Por outro lado, o Massacre da Candelária antecedeu, em apenas um mês, o Massacre de Vigário Geral, com 22 pessoas, incluindo uma família inteira, assassinadas dentro das suas casas. Já em 1994, treze pessoas foram mortas por polícias no Massacre de Nova Brasília. Um total de 155 polícias militares estiveram envolvidos na operação que deixou 21 camponeses mortos, 19 no local do ataque, e outros dois que faleceram no hospital: o Massacre do Eldorado do Carajás. Em 1999, já com o Massacre de Maracanã (1998) pelo meio, a Amnistia Internacional denunciava que continuavam a ser constantes ao longo desses anos os assassinatos de meninos de rua no centro do Rio.

A naturalização dos massacres ecoou na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro quando, em 2002, o então deputado do PMBD Wolney Trindade não se coibiu de dizer aquilo que muitos pensavam: “Hoje com a questão de defesa dos direitos humanos, os vagabundos acham que podem fazer o que querem... O eleitor tem que entender a minha posição e votar comigo, sabendo que criança de dezassete anos que morreu na Candelária, como disse aqui e volto a dizer, se morrer mais alguma, pago o caixão e ainda dou prémio a quem matou.”

Um ano mais tarde, por ocasião dos dez anos do Massacre da Candelária, em 2003, a Amnistia Internacional emitiu um relatório em que apresentou provas substanciais do óbvio: “as comunidades mais pobres da cidade são as vítimas de uma política de policiamento público violenta e discriminatória”. A organização não governamental (ONG) denunciou os “métodos usados pela polícia para atrapalhar as investigações desses incidentes” e o “fracasso das autoridades em garantir investigações imparciais e eficazes”. E destacou com “o ciclo de impunidade e negligência” que envolveu os dois massacres – da Candelária e de Vigário Geral – continuavam a fornecer “as condições para que ocorram mais e mais mortes nas mãos da polícia”. A Amnistia Internacional afirmou ainda estar “extremamente preocupada ao saber que pessoas eleitas para a administração da cidade e para o governo estadual declararam várias vezes em 2003, publicamente, o apoio explícito aos assassinatos por parte de polícias ou citaram altos níveis de assassinatos cometidos por polícias como um produto necessário e inevitável do controlo do crime”.

Convém recordar que os massacres no morro do Borel (2003), na Via Show (2003), que resul-
taram, cada um, na morte de quatro jovens, e o Massacre da Baixada Fluminense (2005), que deixou, foram todos cometidos por polícias e as vítimas foram maioritariamente adolescentes negros e pobres. Em 2007, o Massacre do Pan resultou na morte de 19 pessoas durante uma operação policial no Complexo do Alemão.

Mas desengane-se quem possa pensar que os massacres e a impunidade da polícia são algo do passado. A realidade é exatamente o inverso: as desigualdades agravam-se, os mais desprotegidos são estigmatizados, criminalizados, perseguidos, presos e mortos. A morte surge como estratégia de segurança pública, ao mesmo tempo que o crime organizado se alimenta dessa violência e capitaliza-a a seu favor.

Em 2019, 15 pessoas foram assassinadas pela polícia no Morro do Fallet-Fogueteiro e, em 2021, o Massacre do Jacarezinho saudou-se em 28 mortes. Os números são, de facto, bastante ilustrativos: nos últimos 14 anos, registaram-se 594 massacres só na Grande Rio de Janeiro. Em 2022, foram 17 massacres e 100 mortes. O mais recente data da passada quinta-feira, dia 23 de julho, com uma operação policial a matar 18 pessoas no Complexo do Alemão, uma favela do Rio de Janeiro. Entre as vítimas mortais encontrava-se um polícia, e foi apenas essa morte que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro lamentou: "Ele morreu após um confronto com bandidos", disse o chefe de Estado nas redes sociais. Bolsonaro aproveitou para criticar o facto de as forças de segurança enfrentarem “dificuldades legais” para realizar operações nas favelas.

De acordo com dados do datalab Fogo Cruzado, citados no relatório “Chacinas Policiais”, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF), datado de maio de 2022, das 305 chacinas ocorridas entre agosto de 2016 e 2021, com 1184 mortos, 223 foram realizadas em “ações policiais” (878 mortos) e 82 em “ações criminais e não oficiais” (306 mortos). Isto significa que as ações oficiais produziram quase três vezes mais massacres do que os grupos armados e vitimaram praticamente o triplo de pessoas.

Fonte: relatório “Chacinas Policiais”, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF)

“Polícias autores de massacres são publicamente exaltados por autoridades políticas”

Em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, datada de junho deste ano, Carolina Grillo é perentória: “os massacres policiais já não podem mais ser pensados como resquícios autoritários herdados do período da ditadura civil-militar, mas sim uma marca da nossa democracia. Se a expectativa era que, com a democratização política, o uso oficial da força policial passasse a ser pactuado e regulado, o que se observa é um aumento da violência policial no período democrático”.

A investigadora do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana –NECVU, da Universidade Federal do Rio de Janeiro acrescenta: “É assustador que operações policiais possam tão frequentemente resultar em massacres sem que ninguém seja responsabilizado. Muito pelo contrário, os polícias autores de massacres são publicamente exaltados por autoridades políticas. O Ministério Público Estadual, a quem cabe a fiscalização do trabalho policial, tem se mostrado inerte diante do extermínio praticado por polícias. A insistência numa política de segurança pública centrada no confronto armado e sem cautelas destinadas à preservação da vida, somada ao respaldo institucional com que contam os polícias que matam em serviço, contribuem para números tão assustadores de letalidade policial”.

De acordo com Carolina Grillo, “a persistência de profundas desigualdades sociais, a incapacidade de incorporação de amplos setores da população ao mercado de trabalho formal, a precariedade dos serviços públicos, as segregações urbanas e demais problemas crónicos brasileiros fazem com que um enorme contingente populacional seja considerado inútil para o processo de acumulação capitalista”.

E a resposta do Estado Brasileiro, em vez de passar por enfrentar as desigualdades, recai no investimento “em incapacitar essas populações indesejáveis por meio do aprisionamento e do extermínio, ou em expulsá-las sucessivas vezes dos espaços que elas ocupam, conduzindo-as para cada vez mais longe”.

“Enquanto não houver a compreensão de que a violência não é apenas um problema de segurança pública, mas sim um problema político, social e económico, a situação tende a agravar-se e a violência de Estado vai continuar a aumentar”, alerta a investigadora.

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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