Proteger quem chega é proteger quem cá está

porMariana Mortágua

04 de junho 2024 - 11:32
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Os imigrantes fazem de Portugal um país melhor. E Portugal será um país melhor se houver menos burocracia e mais regularização. Menos entraves e mais integração. Menos conversa sobre “portugueses de bem” e mais trabalho a ensinar bem o português.

O governo deixou para a última semana de campanha eleitoral os seus anúncios sobre política de imigração. Poderia ter sido uma boa notícia. Perante o crescimento da extrema-direita, que tenta semear o ódio aos imigrantes acusando-os de crimes e defendendo o fecho das fronteiras, o melhor que um governo poderia fazer era resolver de modo consistente a situação inconcebível deixada pelo PS nos serviços de regularização e integração de imigrantes.

Isso seria justo e já viria até tarde. A esmagadora maioria das pessoas migrantes que chegam a Portugal vêm de vidas muito sofridas, muitas delas passaram pelo inferno para conseguirem chegar cá. Elas estão cá porque querem trabalhar e trabalham mesmo, trabalham muito, pagam impostos e contribuem para sustentar a segurança social. São estes trabalhadores que têm aguentado setores inteiros da economia, da agricultura ao turismo. Trabalham 12, 16 horas por dia, como faziam os portugueses em França ou na Alemanha nos anos 70. Enviam uma parte do que ganham para as famílias nos países de origem como fizeram os nossos com as remessas que alimentavam tanta gente por cá. Juntam o que conseguem para tentar juntar o resto da família numa vida melhor aqui.

O que lhes damos em troca? Eu digo-vos: damos empregos que aqui mais ninguém quer, os salários mais baixos que se pagam em Portugal e camaratas ou contentores para dormirem. Além de exploradas por plataformas digitais nas cidades, estas pessoas são muitas vezes abusadas por patrões sem escrúpulos na agricultura, na construção civil ou em lares ilegais de idosos.

O Estado olha para o lado, o governo celebra os números do crescimento económico e todos se esquecem sempre de explicar quanto desse produto é gerado também pelo esforço destes trabalhadores. Nos últimos anos, perante a necessidade de transição do SEF para dois serviços, um policial e outro de acolhimento e integração, o Estado passou a falhar ainda mais e a nem sequer cumprir a sua própria lei. O Estado não foi capaz de garantir um balcão a funcionar, os documentos que tinha a obrigação legal de entregar. Já nem falo do ensino de português para que quem chega consiga aprender a nossa língua em pouco tempo. A negligência do governo anterior instalou o caos.

E como se a vida destas famílias não fosse já difícil, ainda vem um bando de políticos oportunistas tentar ganhar votos a convencer o país de que os imigrantes são um perigo. Deputados que insultam estes trabalhadores em pleno parlamento. O racismo foi a ideologia do poder durante muitos séculos e ainda existe, não desapareceu. Novos são apenas alguns aprendizes de feiticeiro que querem mobilizar essa doença social como instrumento eleitoral. E para isso é necessário o insulto e o ódio ao outro, começando por aquele que chegou há menos tempo, pelo que ainda não fala a nossa língua, pelo que se veste de outro modo. Que fácil é lançar o medo.  

E esse medo não é só o que resulta da desinformação e da mentira. É também o medo que faz o centrão político adaptar-se ao discurso da extrema-direita. A Europa está cheia de liberais e socialistas que têm medo de enfrentar os pressupostos da política da extrema-direita.

Pois a esquerda que é esquerda não tem medo deste tema. Nós não respondemos ao racismo tratando também a imigração como “um problema”. Nós não temos a política lamentável de votar a favor da desumanidade, como faz o PS, e depois lamentar aquilo que se aprovou.

Portugal trata mal os imigrantes. E no entanto precisa deles. Os próprios empresários são os primeiros a explicar que há emprego para todos. Não há imigrantes a mais. O que há de facto é política de acolhimento a menos.

Os imigrantes fazem de Portugal um país melhor. E Portugal será um país melhor se houver menos burocracia e mais regularização. Menos entraves e mais integração. Mais habitação para todos, menos precariedade e mais salário. Menos homens isolados e mais famílias reunidas. Menos conversa sobre “portugueses de bem” e mais trabalho a ensinar bem o português.

Os imigrantes precisam de habitação e os portugueses precisam de habitação. O inimigo não são os imigrantes, é a má política na habitação. Em muitos locais de maior concentração de imigrantes, os serviços públicos, do centro de saúde ao centro de emprego e à escola primária, nada disso chega sequer para quem já lá vivia. Os portugueses precisam de serviços públicos, os imigrantes precisam de serviços públicos; o inimigo não são os imigrantes, o inimigo é o desinvestimento nos serviços públicos e o abandono do interior.

Proteger quem chega é proteger quem cá está.

Meus amigos,

Mesmo em plena campanha - ou até por isso - hoje teria sido mesmo um excelente dia para dar um “não é não” a sério aos defensores de políticas restritivas contra os imigrantes e para começar a resolver de modo consistente a situação inconcebível que o governo anterior deixou. Um verdadeiro desastre nos serviços de regularização e integração de imigrantes, tal como o próprio António Vitorino, antigo presidente da Organização Internacional das Migrações, hoje mesmo reconheceu em plena campanha do PS.

Mas Montenegro não saberia nunca aproveitar este dia.

E a proposta que hoje apresentou é simplesmente um recuo de duas décadas. Aproveitar a confusão deixada pelo PS para anunciar restrições. Mas os entraves - sejam o bloqueio negligente deixado pelo PS na AIMA, seja o bloqueio assumido na agora na política dos vistos com contrato de trabalho - esses entraves só interessam a quem quer explorar mais a imigração sem direitos e prefere a ilegalidade.

Bem pode o PSD falar de preferência por migrantes qualificados. Não é isso que pede a economia portuguesa atual. PS e PSD criaram um modelo económico baseado em trabalho pouco qualificado e mal remunerado. Em vez de falar de atrair migrantes qualificados, o governo devia cuidar de não transformar mais jovens portugueses em emigrantes qualificados a caminho de outros lugares.

A promessa de que vamos escolher os migrantes que recebemos é absurda. É a economia, estúpido! E as guerras. E as alterações climáticas. E por ser assim, vai continuar a haver trabalho e a faltar mão de obra no turismo, nos lares, na agricultura, na construção. E por isso vamos continuar a precisar e os imigrantes continuarão a procurar o nosso país.

O que está nas nossas mãos decidir é como recebemos estes imigrantes, a questão é como os acolhemos. E sobre isso a resposta de Montenegro é: acolhemo-los como nos tempos de Cavaco Silva. Voltamos aos tempos da construção da Expo’98 ou da Ponte Vasco da Gama. Era o tempo do trabalho clandestino feito por trabalhadores clandestinos, obras de regime feitas por pessoas sem papéis, recolhidas por carrinhas na praça, a cada manhã, pagas por baixo da mesa e sem seguro, nem contrato, nem nada.

A resposta do governo é reintroduzir agora a regra daqueles tempos - vistos emitidos nos consulados com contrato de trabalho assinado na origem. E sabem o que acontecia com essa bela regra há 20 ou 25 anos? Não havia vistos nenhuns e tudo entrava ilegal e ilegal cá ficava. As exceções e a regularização pontual eram um especial favor que os serviços concediam caso a caso. Quando a ilegalidade se tornou massiva, foi o tempo das regularizações extraordinárias, fruto da longa luta dos imigrantes e das suas organizações.

É o mesmo que continua a acontecer hoje em Espanha, onde não há sistema de regularização normal. Só na zona de Huelva, aqui junto a Portugal, o trabalho agrícola sazonal é feito por semi-escravos ilegais, 100 mil que entram a cada campanha, o equivalente a quatro Odemiras. Nenhum apareceu com contrato de trabalho assinado no país de origem. Julgam que em Huelva as estufas e os campos foram abandonados por falta de trabalhadores? Claro que não. O lucro dos empresários agrícolas é que aumentou, porque lá o trabalho é ilegal, sem direitos, mais barato e abusado.

É para esse país cavaquista que Montenegro quer regressar com esta política dos vistos passados nos consulados mediante apresentação de contrato de trabalho. Essa política não é para ninguém.

Em vez de um processo corrente, normal e transparente, de regularização dos imigrantes que nos procuram - acompanhada de meios capazes de acolhimento e integração -, o governo quer criar entraves à regularização, encher o país de imigrantes sem direitos, aceitar os seus descontos para a segurança social mas recusar-lhes documentos legais, promover critérios e negócios escuros à volta dos consulados e dos serviços de estrangeiros que decidirão as exceções à regra. E depois, quem sabe, ao sabor das conveniências políticas e económicas ou das tensões sociais e políticas, aparecer como humanista e compreensivo a promover processos de regularização extraordinários. 25 anos para trás. Continuar a jogar com a vida das pessoas e a maltratá-las. É isso este novo pacote de medidas do governo e apenas isso.


Intervenção de Mariana Mortágua no comício do Bloco de Esquerda em Aveiro, 3 de junho de 2024.

Sobre o/a autor(a)

Mariana Mortágua

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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