Plano de saúde do governo: mais do mesmo em pior

porMário André Macedo e Bruno Maia

01 de junho 2024 - 15:52
PARTILHAR

A conclusão que podemos retirar deste plano é que o governo da AD quer desmontar o SNS. As medidas apresentadas são remendos que não aumentam a capacidade do SNS e apostam sobretudo na externalização de serviços para os privados e para o setor social.

maca no hospital
Foto de Paulete Matos

Após muitos avanços e recuos, o governo apresentou o seu muito anunciado plano de emergência para a saúde. Impunha-se uma resposta que identificasse de forma clara os principais problemas: o acesso aos cuidados, o financiamento dos cuidados e a retenção dos profissionais.

A conclusão que podemos retirar deste plano é que o governo da AD quer desmontar o SNS. As medidas apresentadas são remendos que não aumentam a capacidade do SNS e apostam sobretudo na externalização de serviços para os privados e para o setor social, que passariam a ser a resposta central, sem qualquer intenção de reforço do SNS, a curto ou a longo prazo. A externalização é a privatização dos cuidados de saúde, estratégia seguida pelos últimos governos PS, PSD e CDS e agora aprofundada.

Listas de espera: velhas novidades

O plano opta por ignorar os problemas macro para se centrar em questões intermédias. Há um foco na atividade cirúrgica, mas que omite que há três anos consecutivos que o serviço público bate recordes de produção cirúrgica, mesmo no meio da resposta à pandemia! O governo refere que pretende alavancar a produção cirúrgica com aumento do recurso ao pagamento adicional por ato. Na verdade, esses programas já estão experimentados (por exemplo, o SIGIC) e, se podem ter contribuído para estancar o aumento das listas de espera, não resolveram o problema. Na raiz deste está a falta de profissionais. O SNS tem instalações e equipamentos em número suficiente para resolver as listas de espera, mas não são otimizados por insuficiência de profissionais que os operem - salas operatórias em funcionamento parcial, equipamentos de ressonância magnética usados apenas em horários de expediente, etc.

A solução passa por contratar mais, valorizar as carreiras e assim tornar mais eficiente a capacidade instalada. O pagamento ao ato não valoriza nenhuma carreira e, na competição de preços com o privado, o SNS ficará sempre a perder.

Saúde materno-infantil: corporativismo 1 - grávidas 0

Na área da saúde materna-infantil, a grande medida necessária é simples e já em aplicação na maioria dos países europeus: terminar o corporativismo. Os enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica têm competências, reconhecidas tanto pela OMS como pelas diretivas europeias, para seguir grávidas de baixo risco e prescrição de exames a estas mulheres. Sem surpresas, a primeira medida deste governo nesta área foi ceder ao poder corporativo da Ordem dos Médicos e alterar as normas do setor - um retrocesso para as nossas grávidas. O corporativismo é inimigo da saúde, mas não será este governo a ter coragem de o combater. As medidas anunciadas ou são descabidas, como o pagamento adicional por cada parto superior à média - como se os blocos de partos públicos fossem competir por mais grávidas -, ou prolongam o que já existe (SNS 24), ou apenas privatizam e encaminham para o setor privado, o clássico dos governos de direita. O governo finge ignorar que o setor privado simplesmente não tem capacidade instalada para absorver nem interesse em perturbações no seu serviço. Além de que, devido aos diferentes incentivos financeiros, os partos no setor privado são sobretudo atos programados, efetuados pelos obstetras que seguem as grávidas. Mas é preciso ser claro nesta matéria: é admissível que em caso de urgência, uma grávida possa ser assistida num serviço privado ou social, mas é má política desviar fundos do serviço público para alimentar os serviços privados.

A solução privado é esperar sentado

As urgências são um dos problemas graves que temos pela frente: excesso de procura, falta de oferta, centramento do sistema na urgência como porta de entrada e rede de salvaguarda, motivos culturais e sociais. O governo reconhece o problema mas não propõe nada de novo. Não procura resolver causas, apenas sintomas. A criação de centros de atendimento para casos de menor gravidade não é ideia nova. E foram os governos PSD e PS que terminaram com este tipo de resposta! Recordo a experiência dos SAP e dos SUB. A grande novidade está no encaminhamento destes doentes para serviços privados. Novamente, o governo ignora a incapacidade para absorver estes doentes e a falta de interesse do setor privado. Os tempos de espera nas urgências de adultos privadas já são consideráveis, não serão elas a absorver um milhão de casos de urgência não urgentes que o governo lhes pretende enviar.

A anunciada “consulta do dia seguinte” nos cuidados de saúde primários já existe e já é encaminhada pela Linha SNS 24, pelo que a medida não é “nova”. E não podemos olvidar a falta de Médicos de Família para dar esta resposta, nem que, para acomodar esta nova tarefa, os médicos de família existentes terão menor capacidade para consultas de rotina.

Não se percebe a referência à vacinação contra a gripe, uma vez que já é efetuada. É de saudar a promessa de inclusão da vacina contra o vírus sincicial respiratório, um dos principais responsáveis por internamentos na idade pediátrica e idosos.

PSD faz o mesmo que criticou ao PS

Há uma grande ironia neste plano. Há poucos meses, o PSD criticou o PS por pretender transferir não residentes e residentes estrangeiros sem consulta há mais de cinco anos para uma lista paralela, para assim libertar cerca de 150 mil vagas. Poucos meses depois, é exatamente esta a grande medida elencada no plano de emergência.

Nos cuidados de saúde primários, sabemos o que funciona: USF modelo B. Não é preciso inventar a roda, é preciso apenas afinar e atualizar o modelo, os indicadores e a forma de avaliar a sua produção. Por cegueira ideológica, contra o bom senso e todas as associações do setor, o governo insiste nas USF modelo C, o que abre as portas à privatização pela base do sistema de saúde. Mesmo países que possuem sistemas de saúde privados tendem a reter os cuidados primários na esfera pública. O modelo C não garante maior cobertura de médicos e enfermeiros de família. Tem até o potencial de agravar as desigualdades, garantido apenas que zonas ricas consigam fixar mais profissionais à custa de zonas desfavorecidas.

Na saúde mental, há apenas uma medida realmente nova, um programa para os agentes das forças de segurança. Todas as outras já se encontram em execução e financiadas pelo PRR ou acordadas com a Ordem dos Psicólogos, como a contratação de uma centena destes profissionais para os cuidados de saúde primários.

Sem valorizar e contratar, não há plano que resulte

Todas as medidas anunciadas neste plano têm um grave problema de base. Com que profissionais se pretende dar resposta a estes objetivos? Sem forma de reter os profissionais, sem ambição de redefinir os papeis sociais da saúde, sem menção à valorização do indispensável trabalho de todos os profissionais de saúde, até o melhor dos planos irá falhar. Por falta de enfermeiros temos camas fechadas e isso condiciona a atividade cirúrgica. Faltam-nos médicos especialistas para assegurar urgências. Faltam psicólogos, nutricionistas e dentistas nos cuidados de saúde primários, e por isso a promoção da saúde e prevenção da doença estarão sempre aquém do ideal.

Para o governo anterior, os profissionais de saúde não eram prioridade. Este plano reforça esta postura. Sem trabalhadores na saúde não há prestação de cuidados. Nem há plano que funcione.

Sobre o/a autor(a)

Mário André Macedo e Bruno Maia

Mário André Macedo é enfermeiro especialista em saúde infantil e mestre em saúde pública. Bruno Maia é médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
Termos relacionados: , SNS