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Falsas Bandeiras em Caracas

O presidente do parlamento autoproclamou-se presidente interino. Uma lufada de ar fresco na asfixia democrática na Venezuela? Engana-se quem acha que se apaga fogo com gasolina.

“A esquerda de que faço parte nunca foi ambígua sobre a condenação de regimes que oprimem o povo e sufocam a democracia. Isso vale para Angola e para o regime venezuelano”.1

Escrevi isto no momento em que na Venezuela se anunciava a convocação de uma Assembleia constituinte sem sufrágio universal nem participação dos partidos. O objetivo era esvaziar os poderes do parlamento como reação à vitória da oposição nas eleições legislativas. O seu poder para emitir mandatos de captura foi escândalo internacional.

Na altura uma das maiores denúncias chegou da oposição democrática venezuelana. A Plataforma Cidadã em Defesa da Constituição (PCDC), composta por ex-ministros do presidente Chávez, personalidades da política, cultura, e militares aposentados, publicou um manifesto que denunciava a constituinte como uma fraude. Exigiam uma única coisa, o cumprimento da Constituição da República Bolivariana da Venezuela.

Entretanto o confronto entre o presidente e o poder legislativo não abrandou, a repressão musculou-se, a crise económica e social agravou-se, a crise humanitária instalou-se e três milhões de venezuelanos saíram do país. É que no meio de um bloqueio económico internacional ninguém almoça petróleo.

Em 2018 Nicolás Maduro reelege-se com 67,84% dos votos num plebiscito muito contestado em que os maiores partidos de direita não se apresentaram. A tomada de posse de Maduro no dia 10 de janeiro desencadeou uma nova fase da crise venezuelana, com o presidente do parlamento a auto proclamar-se presidente interino. Uma lufada de ar fresco na asfixia democrática na Venezuela? Engana-se quem acha que se apaga fogo com gasolina.

É evidente que a Venezuela precisa de renovar a legitimidade democrática de todas as instituições. Essa é uma tarefa para o povo venezuelano, um exercício de soberania popular a que Chávez apelou várias vezes com sucesso para fazer frente a ameaças e golpes.

Essa solução democrática, interna, soberana, não é a autoproclamação de Juan Guaidó. Por três razões. Primeiro, porque a legitimidade eleitoral de Guaidó se limita à Assembleia Nacional. Mesmo que a maioria da população não queira Maduro, é completamente abusivo afirmar que Guaidó tenha mais legitimidade do que ele para ocupar o cargo.

Em segundo lugar, porque o guião seguido por Guaidó foi escrito por mãos estrangeiras. Alguém acredita que sem Trump, sem Bolsonaro, sem Macri, a “comunidade internacional” se apressaria a reconhecer um homem que até há uma semana ninguém conhecia como presidente interino de um país? A jogada fica completa quando os EUA apelam implicitamente à revolta armada e Bolsonaro insinua a possibilidade de uma intervenção militar.

O que nos leva à terceira razão. Este movimento da extrema-direita venezuelana, obviamente concertado com os EUA e o Grupo de Lima2, preferiu acirrar o conflito do que procurar  uma solução constitucional. É uma irresponsabilidade arriscar uma guerra civil. "O que me faz medo? O banho de sangue", disse o Papa Francisco antes de apelar a uma solução de diálogo “justa e pacífica”.

Neste contexto surge um novo manifesto da PCDC. Pedem um diálogo que permita eleições a curto prazo, rejeição de intervenção estrangeira, plano económico de emergência e fim das sanções económicas internacionais. “Se a Constituição não for respeitada, a deriva da crise conduzirá o país a uma “guerra civil com participação internacional”, com risco de implantação do fascismo, e defendem convocação de um “referendo consultivo vinculante”, para decidir se a população quer ou não “renovar todos os poderes públicos".3

Cabe ao Governo português apelar ao restabelecimento desse diálogo. Mas não lhe cabe fazer ultimatos. Não é de fora que se ditam os prazos de validade dos regimes ou dos governos.

Quem não age na política internacional com atitude de claque de futebol fanatizada sabe que o futuro democrático da Venezuela não passa por Maduro. Mas defender a urgência de eleições livres é diferente de aceitar o seu afastamento a qualquer custo.

A esquerda de que faço parte condena desmandos de caudilhos que oprimem o povo e a democracia. Mas recusa-se a ser cúmplice de intervenções de falsa bandeira que plantam regimes menos democráticos do que os anteriores. Quem age a mando de potências estrangeiras não pode levantar a bandeira da democracia. Quem diz agir em nome do povo, que o respeite.

Artigo publicado no jornal “I” a 31 de janeiro de 2018


Notas:

1 Jornal I “Venezuela, meu amor”, Joana Mortágua 7 de julho 2017

2 Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai e Peru

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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