Palmira das ruínas, Palmira das prisões – Metáfora de uma Síria esquecida

13 de June 2015 - 14:57

O risco de destruição das ruínas da antiga cidade de Palmira provocou uma grande comoção no mundo inteiro. Mas é sem dúvida a destruição da sinistra prisão pelo Estado islâmico que será mais falada pelos sírios, tanto mais que esta prisão era o símbolo de um sistema prisional destinado a eliminar simultaneamente toda a oposição e qualquer indivíduo. Testemunho de Yassin Al-Haj Saleh

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Prisão de Palmira, Síria

Duas imagens de Palmira impregnam o imaginário coletivo dos sírios. A evocação de uma raramente está associada à outra. A primeira é-nos ensinada na escola. É a do grande local turístico, vemos as colunas antigas na televisão, talvez leiamos mesmo nos jornais os dados sobre o turismo anual com ela relacionados. Mas há uma outra Palmira, invisível: a da terrível e atroz prisão que semeou o terror entre os sírios ao longo das últimas décadas do século XX.

Esta dupla imagem de Palmira é uma metáfora de toda a Síria. O país inteiro compõe-se de dois mundos dissociados, um primeiro mundo visível onde a vida se desenrola de maneira ordenada e um mundo invisível, enterrado na obscuridade, no sofrimento e no medo.

No mundo visível, há o poder, as suas imagens, os seus símbolos, as suas palavras e os seus signos. No obscuro mundo subterrâneo, há as fábricas secretas do poder, os centros de segurança e as prisões, os locais onde se produz o medo, o silêncio e o isolamento. Mas há também um terceiro mundo, o do conjunto dos sírios, simultaneamente visíveis e invisíveis, o dos transeuntes da vida em que o medo e o veneno são instilados através de raras notícias murmuradas. Para semear o terror, a fábrica secreta funciona plenamente.

Passei cerca de um ano na prisão de Palmira, do início ao fim do ano de 1996, e foi um ano terrível. Tinham decorrido quinze anos desde a minha prisão em dezembro de 1981 e eu tinha terminado os meus anos de condenação, antes de ser transferido com cerca de trinta camaradas para esta prisão. Já não me recordo o que motivou esta transferência, mas não são necessárias razões num sistema tirânico. Com esta transferência, a ideia era exprimir o peso da lei na “Síria de Assad”, incluindo o tribunal de exceção diante do qual eu tinha acabado por comparecer onze anos e quatro meses após a minha detenção.

Claraboias no teto

Contrariamente a outras prisões sírias, em particular em Alepo (dezembro de 1980 a abril de 1992) e Damasco (abril de 1992 – janeiro de 1996), nas quais passei quinze anos ao todo, os prisioneiros em Palmira eram vigiados por cima, através de aberturas feitas no teto das células. Isto forçava-os a manterem as cabeças inclinadas para baixo nas celas, enquanto não saíam para os pequenos percursos durante os quais eram torturados. Este dispositivo de vigilância era um símbolo eloquente da aspiração do regime a um controlo total dos seus cidadãos, sem que estes pudessem ver a sua verdadeira imagem por detrás da máscara calma e dominada do presidente Hafez Al-Assad que aparecia constantemente na televisão.

A prisão de Palmira era um condensado do sistema de Hafez Al-Assad; mais, a associação da tortura e do isolamento prolongado assemelhava-se ao próprio Assad. O homem era paciente e perseverante. Torturar os prisioneiros diariamente e durante vinte anos parece-se com ele em muitos aspetos

Éramos obrigados a deitar-nos durante 12 horas por dia no inverno, 11 horas no verão, exclusivamente de lado e imóveis, os olhos vendados. Por si só, esta posição do corpo tem um profundo significado político. Dormir muito tempo, de olhos vendados, não se mover, mesmo durante o sono, representava o sistema Assad ao qual os sírios se deviam conformar. Pelo terror que inspirava, a prisão de Palmira garantia esta disciplina.

Palmira era também a prisão “naturalmente” destinada aos islamistas. Quanto aos comunistas, eram lá presos como castigo, uma sanção que podia durar anos: nenhum de nós passou lá todos os seus anos de prisão e nenhum de nós morreu sob tortura em Palmira. Os islamistas eram muito mais mal tratados do que nós. À nossa chegada, cada um de nós recebeu 100 chibatadas com um cabo de espessura quádrupla. Chicoteavam-nos a planta dos pés com este cabo composto de outros quatro fabricados em borracha das rodas dos veículos e entrançados em conjunto. Este suplício era-nos infligido enquanto tínhamos as mãos atadas nas costas e os nossos corpos estavam dobrados e presos numa roda, os pés para cima.

Castigo duplo para os islamistas

Mas o “castigo” para os islamistas à chegada era de 500 chibatadas, por vezes podiam ser mortais. Numa cela próxima da nossa, tinham infligido este suplício a um deles; os seus gritos, altos no início, foram-se extinguindo pouco a pouco; depois já se ouvia apenas o barulho repetido das chibatadas. No final das 500 chibatadas, os carrascos entraram na nossa cela pegaram num saco de plástico para lá porem o cabo negro. Sangue vermelho escorria dele.

Sofremos sevícias de forma aleatória, sem qualquer motivo e em qualquer momento. Podia ser uma bofetada na cara – o único momento em que tínhamos a cabeça levantada, mesmo que mantivéssemos os olhos fechados. Podiam dar-nos várias dezenas de chibatadas depois de sermos atados à roda ou então diretamente na pele das nossas costas nuas. Podiam também obrigar-nos a rastejar no chão de cimento na sala anexa à nossa, usando os cotovelos e os joelhos.

À nossa chegada, cada um de nós recebeu 100 chibatadas com um cabo de espessura quádrupla. Chicoteavam-nos a planta dos pés com este cabo composto de outros quatro fabricados em borracha das rodas dos veículos e entrançados em conjunto. Este suplício era-nos infligido enquanto tínhamos as mãos atadas nas costas e os nossos corpos estavam dobrados e presos numa roda, os pés para cima. Mas o “castigo” para os islamistas à chegada era de 500 chibatadas, por vezes podiam ser mortais

Estávamos proibidos de receber visitas ou dinheiro. Fomos privados de tudo, exceto as poucas coisas que pudemos trazer quando fomos transportados para Palmira em 1996. Durante a maior parte do tempo tínhamos fome. Nalgumas manhãs, o nosso pequeno almoço resumia-se a quatro grãos por pessoa. Não era sempre assim, mas a comida era sempre pouca. Os prisioneiros islamistas utilizavam fio para cortar em dois ou três o ovo cozido que lhes davam, por uma questão de igualdade entre si.

Para além do massacre que teve lugar na prisão em 27 de junho de 1980, depois de uma suposta tentativa de assassinato de Hafez Al-Assad, procediam duas vezes por semana a execuções. O número de prisioneiros vítimas do massacre do início dos anos 1980 não é conhecido (fala-se de 500 a 1.000 prisioneiros islamistas), nem o dos prisioneiro executados (fala-se de vários milhares, provavelmente 15.000), nem são conhecidos os locais onde foram enterrados.

A prisão de Palmira era um condensado do sistema de Hafez Al-Assad; mais, a associação da tortura e do isolamento prolongado assemelhava-se ao próprio Assad. O homem era paciente e perseverante. Torturar os prisioneiros diariamente e durante vinte anos parece-se com ele em muitos aspetos. Um sistema que se integra perfeitamente no slogan “para a eternidade”, cantado por estudantes e soldados nas escolas e nas casernas, em cada manhã das duas últimas décadas do seu reinado.

A cidade antiga e turística

Quis o destino que eu conhecesse a Palmira invisível antes de conhecer a Palmira visível, a cidade antiga. À nossa chegada nos primeiros dias de 1996, estávamos demasiado perturbados para o que quer que fosse. Vi a Palmira turística pela primeira vez em 2005, durante as filmagens de um documentário intitulado Viagem na Memória (realizado por Hala Mohammad, com a participação de Faraj Birkadar, Ghassan Jbaï e eu próprio). São ruínas impressionantes, mas que no meu imaginário permanecem associados à omissão dos vivos e à instrumentalização do turismo como política para glorificar um regime tirânico. Uma política de que eu fui uma das vítimas. Naquele dia, não pudemos aproximar-nos da prisão. A realizadora conseguiu filmar às escondidas a porta, mas nenhum de nós, antigos prisioneiros de Palmira, estávamos com ela nesse preciso momento.

[caption align="right"] Palmira, vista geral com o Templo de Bel em evidência – Foto de Arian Zwegers/wikimedia[/caption]

Mas da terceira Palmira, a Palmira viva e habitada (mais de 100.000 pessoas naquele tempo), nenhum sinal de vida chegava até aos nossos ouvidos nas celas, à exceção da chamada do muezim para a oração, durante alguns momentos. Como em toda a Síria, esta Palmira estava coberta de silêncio e de medo. Depois da revolução, realizaram-se manifestações contra o regime, mas terminaram com o fim das manifestações no país na segunda metade de 2012, quando o regime começou a utilizar a aviação contra as cidades.

Segundo um relatório da Human Rights Watch, a prisão foi reativada em dezembro de 2011, depois de uma interrupção de cerca de dez anos. O relatório da organização americana fala então de 2.500 prisioneiros. Convém sublinhar que a prisão de Palmira foi substituída pela de Sednaya em que a maior parte dos presos eram islamistas, mas desta vez salafitas e jihadistas. A prisão de Sednaya conheceu por sua vez um massacre em 2008 cujo mandante foi Maher Al-Assad, irmão de Bachar, tal como Rifaat, irmão de Hafez esteve na origem do de 1980 em Palmira.

Um memorial da repressão

Em junho de 2003, escrevi o meu primeiro texto sobre a prisão de Palmira por ocasião da comemoração do massacre que teve lugar em junho de 1980. No livro traduzido para francês em março passado, Récits d'une Syrie oubliée (Histórias de uma Síria esquecida), salientei a importância de não destruir esta prisão. Propus que fosse transformada em museu onde fossem expostos os instrumentos de tortura, colocar lá um memorial de homenagem às suas vítimas, para exprimir a nossa disposição de ultrapassar a lógica da vingança. Esta proposta fazia parte de uma série de alternativas: destruir a prisão e fazer desaparecer qualquer vestígio, pelo regime ou por outro poder na Síria, reabri-la e utilizá-la ou ainda abandoná-la e deixá-la cair em ruínas. A prisão e a cidade acabaram por passar para as mãos de uma força fascista concebida para demonstrar que ainda há pior que o regime de Assad – o qual não procurou resistir nem defender a cidade.

As execuções em massa pelo Estado Islâmico estão para a cidade como os ritos da tortura por Assad estão para a prisão. Mas o regime torturava, executava e enterrava em segredo enquanto que o EI transformou o assassinato, a decapitação em arte de governar. A organização baseia-se numa tradição viva: décadas de impunidade e de desprezo pela justiça, na Síria e na área

O abandono da cidade à organização do Estado Islâmico (EI) foi uma maneira de tornar a cidade antiga e turística mais visível aos olhos do Ocidente e das organizações internacionais, desprezando a cidade invisível, a da prisão que caiu nas mãos de uma força não menos selvagem e que não hesitará em fazer o mesmo uso da prisão? Esta hipótese não está longe da lógica do regime que conseguiu em parte o seu objetivo. No Ocidente, a opinião pública ficou muito preocupada com a cidade antiga, menos com o destino dos seus habitantes e muito pouco com o dos prisioneiros.

Parece que a prisão foi esvaziada de prisioneiros e de documentos. O regime não deixa para trás os seus segredos nem as testemunhas dos seus crimes. Não ficaria surpreendido se o museu estiver igualmente vazio. Não seria para proteger o património. É provável que os objetos tenham sido roubados, no todo ou em parte, não seria a primeira vez que personalidades do regime acumulam fortunas provindas do comércio de objetos de arte que têm como último destino homens ricos ocidentais. Rifaat Assad era muito capaz disto, para além das suas façanhas nos massacres.

Nas fotos que o EI publicou da prisão de Palmira, não notei nada de anormal, apenas o escritório de um oficial ou funcionário, uma peça num lamentável estado de abandonou e parada no tempo. Na parede, havia um retrato de Hafez Al-Assad, o herói da prisão. O desgaste e a barbárie são marcas distintivas da “Síria de Assad”, nada de novo. Parado no tempo, o de “a eternidade” é outro traço.

O EI declarou que as ruínas não seriam tocadas. E desde os primeiros dias da sua chegada, os média noticiaram a execução de mais de 200 pessoas. Estas execuções em massa pelo EI estão para a cidade como os ritos da tortura por Assad estão para a prisão. Mas o regime torturava, executava e enterrava em segredo enquanto que o EI transformou o assassinato, a decapitação em arte de governar. A organização baseia-se numa tradição viva: décadas de impunidade e de desprezo pela justiça, na Síria e na área.

Mas o EI, que ainda não atacou as ruínas, fez explodir a prisão. Enquanto antigo morador desta prisão, sinto tristeza. Imaginava-me a visitar um dia esta prisão, em companhia de outros prisioneiros que nela sofreram tal como eu. Teríamos caminhado pelos seus labirintos e teríamos saído. Só desta maneira, teríamos recuperado à prisão o que lá deixámos de nós próprios. Teríamos deixado para trás de nós a prisão, os indivíduos e o regime. A destruição de Palmira não é de forma nenhuma um ato de libertação. Reduziu a nada o sonho que tínhamos de nos apropriar da nossa prisão como primeiro ato de liberdade.

Testemunho de Yassin Al-Haj Saleh, comunista e opositor do regime de Assad, tendo passado mais de quinze anos nas prisões do regime sírio. Autor de Récits d’une Syrie oubliée, éditions Les Prairies ordinaires, 2015.

Artigo publicado em orientxxi.info. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net