Ferguson: o racismo não é um 'caso isolado'

21 de August 2014 - 23:55

O racismo é uma estrutura histórica que permeia a sociedade norte-americana. Um polícia que assassina um jovem negro desarmado não é um caso isolado. Por Christian Christenssen, Common Dreams.

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"Quem chamamos quando é a polícia que comete assassinato?" Foto de Hellum Factory
"Quem chamamos quando é a polícia que comete assassinato?" Foto de Hellum Factory

Enquanto acompanhava os acontecimentos em Ferguson pelo Twitter, notei um pequeno fluxo de tweets de afro-americanos irritados com os cibernautas que sugeriam que, por causa da militarização da polícia e do uso de força excessiva (e mortal) contra cidadãos e jornalistas, Ferguson era agora como Gaza, Iraque ou outros lugares-problema do mundo. Estes cidadãos não estavam irritados porque achavam que as comparações eram injustas, mas porque tais publicações sugeriam que o uso de força excessiva era de alguma forma novo ou incomum. Para eles, os EUA não se tinham tornado violentos… sempre foram. Sugerir outra coisa seria ver os eventos em Ferguson com que dentro de um vácuo social e histórico, divorciado da realidade quotidiana enfrentada pelos afro-americanos, resultado de gerações de discriminação estrutural.

Foram observações poderosas.

A nossa visão política da vida quotidiana é frequentemente obscurecida pelo foco dos media em eventos ou indivíduos em vez de em estruturas e processos de longa duração. 

A nossa visão política da vida quotidiana é frequentemente obscurecida pelo foco dos media em eventos ou indivíduos em vez de em estruturas e processos de longa duração. Eventos e indivíduos são amigos dos media. São facilmente empacotados, construídos, embelezados, e depois retirados de cena. Eventos e indivíduos também são excelentes quando procuramos explicações, desculpas, bodes expiatórios ou heróis. A vida torna-se simples desta maneira. Guerras e batalhas entre o bem e o mal. “A política é uma batalha de vontade individual.” “O racismo é um preconceito em relação a uma pessoa.” “Os saques são uma quebra da lei e da ordem.”

“Contexto”, “história,” e “estrutura” apenas enlameariam estas águas claras de explicação.

Infelizmente, eventos e indivíduos são, frequentemente, as únicas pedras angulares para entendermos questões muito mais amplas, complexas e estruturais. E isto é um problema. Não posso mais entender o funcionamento real da política norte-americana assistindo à cobertura do debate presidencial (ou mesmo a uma eleição inteira), e também não poderia entender o racismo estrutural nos EUA ao assistir à cobertura do espancamento de Rodney King em 1991 ou do assassinato de Michael Brown em Ferguson. Não é possível testemunhar os resultados do preconceito estrutural e da desigualdade ao observar estes eventos — a partir das suas coberturas jornalísticas, não é possível ter a menor noção do quanto o preconceito e a desigualdade são um círculo vicioso.

O que perdemos com a cobertura esporádica baseada em eventos é a quotidianidade do racismo nos EUA (ou em qualquer outro lugar), e este é o argumento daqueles utilizadores do twitter que mencionei no começo do artigo. Uma perceção completa do quanto o preconceito permeia a sociedade requer atenção constante e foco sobre as coisas que tornam difícil a vida de muitos cidadãos norte-americanos: problemas de moradia, discriminação nos empregos, o racismo subtil de olhares e comentários, e o racismo aberto na forma de violência policial e invisibilidade nos media — coisas que americanos brancos raramente experimentam. E não esqueçamos das implicações a longo prazo de práticas como a pena de morte e da parcialidade da justiça quando trata de minorias.

Esta não é uma crítica a todos os jornalistas que cobriram Ferguson — alguns foram excelentes — mas uma crítica ao jornalismo em geral.

Tomemos o Iraque como outro exemplo. Antes do 11 de setembro, o que sabiam as pessoas sobre as relações dos EUA com o Iraque e o Afeganistão? Ou sobre as políticas dos EUA na região? Muito pouco. Depois, a partir de 2003, fomos completamente saturados com a cobertura dos media do Iraque e do Afeganistão, e havia bons jornalistas a fazer boas reportagens durante a invasão e a ocupação. Mas, depois de inúmeras horas de cobertura televisiva e toneladas de jornais, podemos dizer honestamente que as pessoas nos EUA possuem a mínima compreensão das implicações sociais, económicas e políticas de uma operação que matou centenas de milhares de civis iraquianos inocentes? Ou do motivo que levou os EUA à guerra?

Da mesma maneira, se o racismo é discutido apenas quando há histórias mediatizadas como agora em Ferguson, ou nas rebeliões de Los Angeles, ou durante o julgamento de O.J Simpson, depois estes temas são esquecidos. Quando uma questão tão fundamental à sociedade como o racismo é rotineiramente tratada apenas quando há uma conclusão social, então enfraquecemos as ligações entre estas convulsões e a nossa história quotidiana, fazendo disso apenas um evento a cobrir…

Tradução de Roberto Brilhante para a Carta Maior.