Ambrose Bierce contra o Natal

07 de January 2012 - 15:16

A Ebenezer Scrooge [o vaidoso protagonista do Conto de Natal de Dickens] custou-lhe uma só noite para modificar a sua cantilena "Bah! Mentiras!" para "Deus nos abençoe a todos!". Ambrose Bierce era feito de uma massa mais dura. Vilipendiou as festividades (e quase tudo mais) até ao último dia em que se teve a notícia do seu desaparecimento, em 26 de dezembro de 1913. Por Rhoda Koenig

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"Dicionário do Diabo" de Ambrose Bierce, editado, em Portugal, pela Tinta da China, em 2006

Talvez o maior ingénuo da literatura norte-americana e certamente o seu maior cínico, Bierce definiu o Natal no "Dicionário do Diabo"1, o seu glossário satírico, publicado em 1911, como "uma jornada diferenciada consagrada à gulodice, á embriaguez, à sentimentalidade, ás prendas, á estupidez pública e á conduta desordenada em casa". As prendas foram feitas para os relutantes, afirmava, e oferecem-se "esperando algo melhor". Eram "o pagamento de hoje pelos serviços de amanhã".

Mesmo que Bierce considerasse a auto-complacência como um mal da época ("Os homens convertem os seus ventres em deuses e depois esses mesmos deuses ordenam as celebrações"), esperava poucas gratificações dos cozinheiros americanos, que tornavam "intragável o que já era ingerível". O tradicional pudim de Natal, dizia, era tão incomestível como o tronco típico que se queima na quadra natalícia.

Antes do Natal, resmungava Bierce, cada um era acossado pelos "irreprimíveis pedidos das criaturas" e oprimido durante vários dias por monótonos desejos. Tinha perdido a esperança "de me encontrar algum dia com algum génio brilhante ou um idiota inspirado que tenha a intrepidez de variar o adjetivo e desejar um 'Próspero Natal' ou um 'Feliz Novo Ano'2; ou alguém carregado de uma originalidade ainda mais sedutora, que mantenha a boca fechada".

Àqueles para quem "Jingle Bells" é o sinal para se esconderem debaixo do edredão, durante uma semana, ou fazerem uma recolha, como um amigo meu, de DVDs de filmes de assassinos em série, saudaremos como uma alma gémea. Mas só os mais decididos grosseiros subscreveriam a totalidade da visão sombria de Bierce acerca da humanidade e das suas obras. Um idiota, escreveu, era "um membro de uma extensa e poderosa tribo cuja influência nos assuntos humanos foi sempre dominante e controladora". A religião era "filha da Esperança e do Medo, a que explica à Ignorância a natureza do Incognoscível", a auto-estima, "uma valoracão errónea", o "amor" "uma loucura temporal que se cura com o matrimónio", e um advogado "alguém com a habilidade de contornar a lei" (bom, poderíamos estar de acordo com isso).

É importante, não obstante, apreciar a diferença entre Bierce e Scrooge, entre um cínico e um tipo asqueroso. Scrooge, quando se lhe pede uma caridade, declara que os pobres deveriam ir para a prisão ou para a beneficência. "Não posso permitir-me fazer felizes os ociosos" (creio que sempre soubemos que Scrooge era republicano). Quando se lhe diz que morriam muitos, responde que "melhor seria e assim diminuiria a população".

Bierce, pelo contrário, era travesso mais do que cruel. Uma vez, propôs que o epitáfio de um político de São Francisco rezasse assim: "Aqui jaz [e mente]3 Frank Pixley, como de costume!", e bateu com toda a contundência ali, onde era maior a hipocrisia, na crueldade e complacência para com a opulência e o poder. "O trabalho" definiu-o como "um dos processos pelos quais A adquire propriedade para B" e o "ar" como uma "substância nutritiva que proporciona a Providência generosa primordial para os pobres". A sua denominação do sistema de governo norte-americano era "plutocracia: forma republicana de governo que deriva os seus poderes da presunção dos governados. por pensar que governam eles".

Bierce também fez mais do que se acomodar e dedicar-se à sátira. Revoltou-se contra a exploração e discriminação sofrida pelos chineses que produziram tanta riqueza na Califórnia. Denunciou a corrupção da ferrovia do estado e, num dado momento, indignou-se com uma proposta de perdoar à empresa 75 milhões de dólares em impostos que viajou para Washington para fazer uma campanha contra. Ofereceram-lhe um suborno lucrativo, mas ele recusou. A ferrovia perdeu e teve que pagar.

Em outubro de 1913, com a idade de 71 anos, Bierce partiu para o México para ser testemunha da revolução. "Adeus," escreveu à sua sobrinha, "se ouvires que me puseram contra um paredão e me coseram com tiros, pensa, por favor, que me parece uma forma bastante boa de deixar esta vida, preferível à velhice, à doença ou a cair das escadas do sótão. Ser gringo no México, oh, isso é eutanásia!". Nunca mais se soube dele.

A indignação selvagem de Bierce tinha a sua origem em ideais dececionados. Se mostrava as suas garras tantas vezes por causa da sua raiva contra a estupidez e a injustiça de uma terra que se orgulhava de ser rica e livre. E incluía-se ele mesmo entre os preguiçosos, egoístas e fracos. Essa definição de auto-estima soa como se o seu autor fosse consciente do pecado.

Portanto, se o cínico desdenha do que nos é mais apreciado, em vez de condenar os seus males modais, deveríamos fazer um exame de consciência. Talvez devêssemos tratar de emendar as nossas faltas e pedir aos demais, sobretudo aos que estão por cima de nós, que remediassem as suas. Poderíamos começar, com muita modéstia, por modificar as nossas felicitações para fazer com que os seus destinatários as oiçam realmente e saibam que as dizemos verdadeiramente. Novo Feliz Ano Para Todos!

Rhoda Koenig é autora de "The New Devil's Dictionary: A New Version of the Cynical Classic" publicado, em 2011, para comemorar o centenário do glossário de Bierce. Tradução: António José André.


1 Editado, em Portugal, pela Tinta da China, em 2006.

2 No original, "Happy Christmas" e "Merry New Year", em vez do tradicional "Merry Christmas" e "Happy New Year".

3 Em inglés "to lie" significa "jazer" ou "mentir".

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