Crise: conversa fiada

16 de October 2008 - 0:00
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Voltaire dizia que o Sacro Império Romano não era sacro, nem império, nem romano. Os neoliberais dizem-nos que um descuido gerou uma bolha especulativa que será corrigida com algumas resoluções do Banco Central. É uma piada.



Por César Benjamin, publicado originalmente na Folha de S.Paulo, retirado do blog Outras Políticas





Milhões de famílias norte-americanas foram convencidas de que as suas residências não deviam ser consideradas lares, lugares de abrigo e de convivência, mas sim activos financeiros. Essa patologia sustentou mais uma pirâmide de operações especulativas que desabou. Nesse contexto, todos voltámos a defender a intervenção do Estado e a regulamentação. É um recomeço. Mas não se deve imaginar que seja um caminho fácil.



Há mais de 20 anos, Hyman Minsky, ganhador de um Nobel, advertia que os EUA tinham transitado para o que ele denominou "capitalismo administrador de dinheiro". À frente do sistema já não estavam capitães de indústria, mas gestores de activos líquidos. Imersos num ambiente muito competitivo, avaliados trimestralmente pela sua capacidade de valorizar as carteiras que administram, esses gestores são intrinsecamente agressivos, inventivos e, no limite, inescrupulosos. Se não forem predadores competentes, acabam por ser caçados.



A composição das carteiras altera-se diariamente. Apostam em tudo - no valor relativo das moedas, nos preços de matérias-primas, nas acções em Bolsa, em variações infinitesimais das taxas de juros -, sempre operando em mercados futuros, inexistentes. Criam sem parar novos "produtos" financeiros, cada vez mais complexos e opacos. Realizam transacções que movimentam milhares de milhões, mas que se concluem sem que haja entrega física de nenhum bem.



Fazem muitas contas, mas que não têm nada a ver com o cálculo económico, em sentido tradicional, pois vivem num mundo de soma zero. Mesmo assim, têm lucros extraordinários. No Brasil, são conhecidos pelo eufemismo de "investidores internacionais". Voltaire dizia que o Sacro Império Romano não era sacro nem império nem romano. Os neoliberais dizem-nos que um descuido gerou uma bolha especulativa que será corrigida com algumas resoluções do Banco Central. É uma piada. No andar de cima desse sistema não há propriamente bolhas especulativas num fluxo de investimentos.



Há bolhas de investimento num fluxo de especulação. Especuladores não são um corpo estranho na sociedade norte-americana. Fundos de pensão, fundos mútuos e outros investidores institucionais predominam, representando milhões de pessoas e alargando a base social da actividade rentista. Todos vivem muito acima dos seus próprios recursos.



A imposição, ao mundo, dessa forma de gestão da riqueza ganhou um nome de fantasia: globalização. Exigiu a construção de espaço financeiro homogéneo para além das fronteiras dos EUA. A finança tornou-se global, mas a moeda continuou nacional, o dólar. Os países que se atrelaram a esse sistema volátil precisam proteger-se acumulando reservas, ou seja, esterilizando os seus próprios recursos em títulos do Tesouro dos EUA. Financiados assim pelo mundo, puderam os EUA nesta década, ao mesmo tempo, manter déficits estratosféricos, generalizar endividamentos, fazer guerras, cortar tributos e aumentar o consumo, tudo isso com um desempenho económico rastejante - o menor avanço desde a Segunda Guerra.



Essa incrível combinação só é possível porque a dívida "externa" do país e os produtos que importa estão expressos na moeda que ele mesmo fabrica.



O capitalismo administrador de dinheiro é um sistema complexo, que criou raízes fundas na sociedade americana e está associado à geopolítica do Estado. Está a tornar-se completamente desfuncional para o mundo, mas não temos instituições capazes de produzir uma transição ordenada. Esse é o dilema. O resto é conversa fiada.



César Benjamin é editor da Contraponto, foi candidato à vice-Presidência da República do Brasil na lista de Heloísa Helena nas últimas eleições presidenciais.



4 de Outubro de 2008



Adaptação para Portugal de Luis Leiria



O título original é: "Conversa para boi dormir"

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