Ucrânia: a extrema-direita americana escolheu Putin

Na Europa, a extrema-direita dividia-se tradicionalmente entre o apoio aos seus congéneres ucranianos e o apoio ao regime de Putin. A força do dinheiro desempatava no caso de grandes partidos como os de Le Pen e de Salvini. Nos EUA, depois da invasão a balança passou a pender mais claramente para a admiração pelo presidente russo.

27 de February 2022 - 21:37
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Steve Bannon, uma das figuras mais influentes da extrema-direita norte-americana. Foto de Gage Skidmore/Flickr.
Steve Bannon, uma das figuras mais influentes da extrema-direita norte-americana. Foto de Gage Skidmore/Flickr.

Ainda antes da invasão da Ucrânia pelas tropas russas, as águas da extrema-direita em vários países ocidentais separavam-se entre os que apoiavam os seus congéneres ucranianos e os que admiravam Putin. A Europa tem sido disso exemplo. De um lado, alguma da extrema-direita admirava a postura ocidentalista e supremacista branca dos extremistas ucranianos e ia a treinos nos campos das suas milícias. Do outro, o autoritarismo e ultra-conservadorismo de Putin seduzia alguns dos nomes mais famosos como a francesa Marine Le Pen ou italiano Matteo Salvini. Outros ainda admiravam movimentos de extrema-direita russos para além de Putin.

Os EUA não eram exceção. Porém, de acordo com os casos analisados pelas revistas Vice e The New Republic, no contexto do ataque russo, a contenda parece agora decidida definitivamente a favor de Putin.

Alex Shephard da The New Republic começa a sua peça pelo próprio Trump. O ex-presidente norte-americano, dias antes da invasão, falava de Putin com admiração, fazendo o retrato de alguém “muito esperto”, um “génio” mesmo, por estar à beira de “tomar conta de um país, literalmente, uma localização muito, muito vasta, um grande pedaço de terra com muitas pessoas” pelo preço das sanções. Porém, Trump sugeria então que com ele na presidência nada disto teria ocorrido.

Claro que quem escreve sobre Trump arrisca-se a ficar desatualizado em breve e foi o que aconteceu com este artigo. A seguir à invasão, o ex-presidente deixou de gabar a esperteza de Putin e passou a considerar a concretização da ofensiva como um “ataque à humanidade”. A coerência manteve-a contudo na sua gabarolice: continuou a dizer que ele seria quem podia prevenir o sucedido e que foi “o único Presidente americano do século XXI em cujo mandato a Rússia não invadiu outro país”.

Não se sabe se a mudança de ideias terá desorientado alguns dos seus apoiantes que, como escreve Shephard, vinham "saudando agressivamente a Rússia”, apresentando o presidente russo como um “aliado natural ao mesmo tempo que denegriam as democracia vulneráveis”. O que é mais do que conhecido é que comentadores dos vários espaços mediáticos ultra-conservadores norte-americanos, com a Fox News à cabeça, têm repetido a linha trumpista e a ideia de que a culpa é de Biden e dos democratas.

A apresentadora Laura Ingraham é um dos exemplos apresentados, mas é a maior estrela da cadeia televisiva Fox News, Tucker Carlson, que concentra mais atenções. Este relativiza a invasão como uma “disputa fronteiriça”, sugerindo que o problema é que os democratas têm por “único objetivo limitar o desenvolvimento da Rússia” e que a Ucrânia é “uma colónia com um regime fantoche” e os seus habitantes como guerreiros prontos a um banho de sangue. A máquina de propaganda russa aproveitou para difundir estas suas opiniões.

Há quem vá ainda mais longe. No The Daily Wire, de Ben Shapiro, ex-editor de outra página de referência para a extrema-direita dos EUA, o Breitbart, pontifica a nova estrela mediática Candace Owens que sugeria que o exército norte-americano devia ir na peugada de Trump e entrar no Canadá para “proteger” os camionistas que se manifestam contra as medidas de restrição no âmbito do combate à Covid-19.

Os casos citados pela jornalista Tess Owen, da Vice, são muitos. Entre ele o mais significativo talvez seja o de outro dos pesos pesados da extrema-direita dos EUA, a eminência parda da extrema-direita internacional e antigo conselheiro de Trump, Steve Bannon, que na véspera da guerra ter rebentado expressava também apreço por Putin. Num podcast em que participava com o fundador do grupo de mercenários Blackwater, Erik Prince, elogiava Putin por ser “anti-woke”, a nova expressão fetiche da extrema-direita para estigmatizar posturas desafiem o ultra-conservadorismo. Para além disso, também atacou a Ucrânia, que diz “nem ser um país” mas “um tipo de conceito”, “uma área corrupta que os Clintons transformaram numa colónia de onde podem roubar dinheiro”.

Vários outros nomes, menos conhecidos do lado de cá do Atlântico, surgem no artigo de Owen. Nicholas Fuentes, apresentado como “livestreamer nacionalista branco” que tem 45.000 subscritores no Telegram, escrevia que “desejava que Putin fosse presidente da América”. Colocando-se “totalmente” do lado do governo russo, escreveu que “isto é a coisa mais cool que aconteceu desde 1/6”, uma referência à data do ataque ao Capitólio por apoiantes de Trump.

Andrew Torba, o CEO da Gab, uma rede social que pretende capitalizar o facto de o Twitter ter banido alguns elementos da extrema-direita, escreveu “Lol Putin é brilhante”, acrescentando que "a Ucrânia tem de ser libertada e limpa de degenerescência do império globalista ocidental secular”.

O fascínio da extrema-direita norte-americana por Putin não vem de agora. Em 2015, por exemplo, vários dos seus quadros participaram na conferência “International Russian Conservative Forum”, em São Petersburgo, onde se louvou o presidente russo como bastião contra “a degradação das tradições brancas, cristãs, do Ocidente”.

A peça da Vice explicita, porém, que ainda assim há uma cisão: apesar da maioria dos “ultranacionalistas e anti-globalistas” serem pró-Putin, os “supremacistas brancos e neo-nazis aceleracionistas hardcore” dividem-se. Faz-se notar a existência de um canal de Telegram, com mais de 45.000 subscritores, que analisava a invasão como parte de um “conspiração neo-bolchevique e judaica para erradicar os homens arianos mais duros e orgulhos vivos na Ucrânia”, afirmando estarem dispostos a deixar passar o facto de Zelensky, o presidente ucraniano, ser judeu.

Para estes neonazis, a referência são os grupos paramilitares de extrema-direita como o Batalhão Azov que combateram do lado ucraniano em 2014 na guerra em Donbass, um grupo depois incorporado na Guarda Nacional da Ucrânia. Como vários grupos europeus, também alguns norte-americanos foram treinar com o Azov, como o Rise Above Movement do supremacista branco Robert Rundo. Há até sete cidadãos dos EUA a serem investigados pelo Departamento de Justiça por suspeita de crimes de guerra ao participarem na guerra na Ucrânia.

Serão menos, mas também há admiradores das milícias neonazis e de extrema-direita que combatem do lado contrário, como o Batalhão Esparta, a Task Force Rusich e o Movimento Imperial Russo.

Entre os apoiantes de Putin, há também eleitos do Partido Republicano. A senadora estadual do Arizona Wendy Rogers escrevia no seu canal de Telegram que “Putin fica com a Ucrânia. Os nossos militares com travecos e máscaras faciais”. Marjorie Taylor Greene, congressista eleita pela Georgia, e Paul Gosar, congressista eleito pelo Arizona, participaram num evento de um conhecido grupo supremacista branco onde a extrema-direita aplaudia entusiasticamente a Rússia e gritava por Putin.

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