“Alemanha é o alvo principal da campanha mediática da invasão iminente”

Nesta entrevista, o sociólogo ucraniano Volodymyr Ishchenko explica as origens da atual crise e as ficções que se construíram acerca dela.

16 de February 2022 - 17:40
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Praça Maidan em Kiev que se tornou o centro da revolta de 2014.
Praça Maidan em Kiev que se tornou o centro da revolta de 2014.

Se a tua fonte de informação para seguir os acontecimentos na Ucrânia durante os últimos oito anos foram os meios de comunicação social do establishment, então é provável que aquilo que sabes esteja errado. Apesar de – ou, mais provavelmente, porque – a instabilidade na Ucrânia se ter destacado tanto na política externa dos EUA quanto na sua política interna nos últimos anos, a história do país e os seus atuais conflitos internos têm sido propagandeados para o público ocidental.

Volodymyr Ishchenko, um sociólogo e investigador associado no Instituto para os Estudos da Europa de Leste, escreve há anos sobre a política ucraniana, a revolução de 2014 da praça Euromaidan e a imbricada interseção entre protestos, movimentos sociais, revolução e nacionalismo. Recentemente falou com Branko Marcetic, da Jacobin, sobre aquilo que é necessário compreender no ocidente sobre a Ucrânia e a disputa internacional atual sobre ela.

 

Porque é que as autoridades ucranianas e os governos europeus têm posições tão diferentes sobre as perspetivas de uma invasão russa em relação às dos Estados Unidos e do Reino Unido?

A diplomacia coerciva russa e os destacamentos de militares são apenas uma parte da questão porque também são acompanhados por ações diplomáticas. Outra parte é a campanha mediática acerca de uma invasão iminente que tem a sua lógica autónoma, deriva de interesses diferentes, e não deve ser assumida como um reflexo objetivo das ações russas. Esta tem tido também uma lógica de reforço, de escalada. O principal alvo desta campanha provavelmente até nem é a Rússia ou a Ucrânia, mas a Alemanha que é suposto ficar mais próxima dos seus aliados da Nato.

Inicialmente, a Ucrânia nem prestou atenção a esta campanha dos meios de comunicação social ocidentais. Depois tentou explorá-la para pedir mais armas e pedir sanções preventivas contra a Rússia. Só há duas ou três semanas é que o governo ucraniano começou a fazer declarações muito explícitas de que uma invasão não está prestes a acontecer, de que temos estado sob ameaça da Rússia desde 2014 e de que estamos habituados a isso e de que, de acordo com as informações dos seus serviços secretos, esta ameaça não é maior do que aquela que ocorreu na primavera do ano passado (na primeira fase do destacamento de forças russo que foi feito de forma muito pública e com intenções muito claras).

Esta campanha mediática ocidental teve consequências materiais e negativas na economia ucraniana. A moeda começou a desvalorizar, os investidores a abandonar o país – particularmente no mercado imobiliário – e o governo tem estado muito assustado porque, mesmo sem uma invasão, a economia ucraniana pode enfrentar problemas muito sérios por causa disto. Mas não consideraria isto simplesmente como uma fraude estratégica.

 

Porque é que a Ucrânia é um país tão importante tanto para a Rússia quanto para o Ocidente e para os Estados Unidos?

Economicamente, a Ucrânia é, na verdade, um grande falhanço. Se olharmos para os indicadores económicos, a Ucrânia é provavelmente um dos muito, muito poucos países do mundo que não chegou ao nível de PIB per capita que tinha em 1990. Houve um enorme declínio económico nos anos 1990 e, então, a Ucrânia não conseguiu crescer como os seus vizinhos da Europa de Leste. Não vivemos melhor do que vivíamos no final da União Soviética, ao contrário da Polónia, por exemplo, ou até do que a Rússia ou da Bielorrússia.

Para a Rússia e para os EUA é um ponto através do qual o gás natural é transportado. Há algumas iniciativas para criar um consórcio tripartido: a Rússia como abastecedor de gás, a União Europeia como consumidora e a Ucrânia como território de passagem. Estas foram torpedeadas nos anos 1990 e 2000, particularmente do lado ucraniano, e o resultado foi que a Rússia construiu vários gasodutos para contornar a Ucrânia. O Nord Stream 2 é talvez o mais perigoso para a Ucrânia agora, porque pode tornar os gasodutos ucranianos obsoletos.

De um ponto de vista militar, a Rússia diz que a Ucrânia pode ser importante porque se a Nato começar a colocar aí armas ofensivas, há mísseis que podem chegar a Moscovo em cinco minutos a partir do território ucraniano. A estratégia defensiva russa durante séculos foi a expansão, a fim de empurrar a sua fronteira o mais para ocidente possível, criando profundidade estratégica, o que levou ao fracasso das invasões de Napoleão Bonaparte e Adolf Hitler – apesar das guerras contemporâneas não serem travadas da mesma forma que eram há meio século ou há dois séculos. Para os Estados Unidos, a Ucrânia é um potencial ponto de acesso contra a Rússia. Se a Ucrânia criar tensões com a Rússia, pode enfraquecê-la e fazer desviar os seus recursos, por exemplo, em caso de uma escalada de tensão com a China. Algumas pessoas comentam agora de forma bastante cínica: “porque não deixar os russos invadir a Ucrânia e deixar que esta seja outro Afeganistão para a Rússia?” A Rússia gastaria muitos recursos, seria atingida com sanções – provavelmente o Nord Stream também seria atingido por estas – e não é assim tão claro o tempo que sobreviveria a uma escalada decisiva na Ucrânia. Esta pode ser a razão pela qual esta guerra [na região de Donbass] tem durado tanto tempo: não há interesse em acabar com ela. Houve várias oportunidades para o fazer em 2019 e 2015 e o governo dos EUA não fez o que poderia ter feito.

 

Qual é a relação entre a Ucrânia e a Rússia, dada a longa e complicada história que molda tantas das divisões políticas e culturais da Ucrânia moderna?

Não existe nada aproximado a um consenso sobre este tema. Algumas das pessoas à esquerda, por exemplo alguns marxistas ucranianos no século XX, defenderam que a Ucrânia era uma colónia da Rússia e que, pelo menos durante o Império Russo, esta foi explorada economicamente. Sob a União Soviética a história foi diferente, a Ucrânia desenvolveu-se muito rapidamente e acabou por se tornar numa das zonas mais desenvolvidas do país – uma das razões pelas quais a crise pós-Soviética foi tão grave.

Outros diriam que a Ucrânia seria mais como a Escócia é para a Inglaterra e nada parecido com as relações entre as metrópoles ocidentais e as suas colónias em África ou na Ásia, ou até entre a Rússia e a Ásia Central ou entre a Rússia e a Sibéria.

Para muitos russos, a Ucrânia é parte daquilo que entendem ser a nação russa. Simplesmente não conseguem imaginar a Rússia sem a Ucrânia. Durante a época do Império Russo, havia esta ideia de que russos, ucranianos e bielorrussos eram três partes do mesmo povo. E esta narrativa foi recentemente reiterada por Vladimir Putin num artigo no qual alega que ucranianos e russos são o mesmo povo, dividido artificialmente.

Esta narrativa tem uma longa história no pensamento imperial russo. Desta perspetiva, ver-se-iam as relações entre a Ucrânia e a Rússia enquanto a competição entre, pelo menos, dois projetos de construção de nação. Um diria que a Ucrânia não é uma parte da Rússia; os ucranianos são um povo à parte. Esta narrativa é a mais dominante na Ucrânia agora. Contudo, este projeto de construção de nação não foi totalmente bem sucedido – apesar de três revoluções que tinham conteúdo muito forte deste projeto, que aconteceram em 1990, 2004 e 2014. Outra narrativa alegaria que os ucranianos são na verdade parte de uma unidade eslava de leste e que este projeto de construção de nação não foi completado devido à fraqueza da modernização do Império Russo.

Contudo, esta discussão ocupa apenas uma pequena parte da sociedade ucraniana e, em particular, os intelectuais. Para o resto dos ucranianos não é uma questão decisiva. De acordo com as sondagens que têm sido realizadas durante os trinta anos após a independência da URSS, as questões do emprego, salários e preços estão no topo das preocupações, enquanto que a identidade, a língua, as relações geopolíticas, a União Europeia, a Rússia e a Nato ficam sempre mais abaixo na lista de prioridades dos ucranianos.

 

Alguns comentadores dizem que porque a extrema-direita não tem tido muito sucesso nas eleições pós-Maidan que o seu papel no país é negligenciável. Será isto verdade?

O papel dos nacionalistas radicais na política ucraniana é significativo, através da pressão direta sobre o governo e da disseminação de narrativas. Se olharmos para as políticas implementadas pelo governo pós-Maidan veremos o programa de partidos nacionalistas radicais, particularmente na descomunização, na proibição do Partido Comunista da Ucrânia, na ucranização, que implica afastar a língua russa da esfera pública ucraniana. Muitas das coisas que faziam parte das campanhas de extrema-direita antes de Maidan foram implementadas por políticos que não se assumem como sendo de extrema-direita.

A radicalização nacionalista é uma compensação muito boa pela falta de mudanças revolucionárias depois da revolução. Começando, por exemplo, por mudar alguma coisa na esfera ideológica – mudar o nome de ruas, retirar símbolos soviéticos no país, remover estátuas de Lenine que existiam em muitas cidades ucranianas – cria-se a ilusão de mudança sem na realidade mudar nada que vá no sentido das aspirações populares.

A maior parte dos partidos políticos mais relevantes são efetivamente máquinas eleitorais para redes clientelares específicas. As ideologias são habitualmente completamente irrelvantes. Não é difícil encontrar políticos que mudaram para campos diametralmente opostos da política ucraniana várias vezes durante as suas carreiras.

Os partidos nacionalistas radicais, em contraste, têm ideologia, têm ativistas motivados e, nesta altura, são provavelmente os únicos partidos no verdadeiro sentido da palavra “partido”. São as partes da sociedade civil mais organizadas, mais mobilizadas, com a mobilização de rua mais forte. Depois de 2014, também criaram recursos para recorrer à violência: aproveitaram oportunidades para criar unidades armadas e uma rede alargada de centros de treino, campos de férias, cafés simpatizantes e revistas. Esta é uma infraestrutura que talvez não exista em nenhum outro país europeu. Parece bem mais a política de extrema-direita dos anos 1930 na Europa do que a contemporânea – que não se apoia tanto na violência paramilitar mas na capacidade de conquistar uma camada grande do eleitorado.

 

De que aspetos desconhecidos ou mal compreendidos da revolução de 2014 da Euromaidan o público ocidental não tem consciência?

No Ocidente, a narrativa dominante tornou-se a das ONG profissionais que foram uma parte importante na revolta de 2014. Só que estas definitivamente não representavam a diversidade total da revolta e muito menos a diversidade deste grande país. Nas suas narrativas, esta era uma revolução pacífica, democrática, contra um governo autoritário liderado por Viktor Yanukovych que terá sido provavelmente um dos muito poucos governantes do mundo a ser derrubado por duas revoluções.

Esta narrativa das ONG profissionais e dos intelectuais liberais-nacionais foi assumida pelos meios de comunicação social ocidentais e pelas autoridades ocidentais em parte porque era o que queriam ouvir. E as autoridades ocidentais apoiaram a revolução da Maidan de forma bastante aberta. Para a União Europeia foi bastante inspiradora porque, ao mesmo tempo que se queimavam bandeiras da UE na Grécia, na Ucrânia desfraldavam-se.

O medo dos nacionalistas radicais inspirou protestos anti-Maidan nas regiões do sudeste da Ucrânia. A Rússia decidiu apoiar e, num momento crucial, intervir impedindo a derrota dos rebeldes separatistas na região. O resultado é que parte de Donbass, uma região do leste da Ucrânia altamente industrializada e urbanizada, está agora sob controlo de auto-intituladas Repúblicas Populares que devem ser vistas mais ou menos como estados-fantoche dos russos.

 

Que esperanças há na solução desta crise?

A minha esperança é que haja uma resolução pacífica da crise. Temos todos de ter a esperança de que os russos não comecem uma invasão estúpida, de que não escalem a tensão, não apenas em Donbass mas para além desta região.

Um avanço qualquer na implementação dos acordos de Minsk – que são sobre como reintegrar os territórios separatistas pró-russos na Ucrânia – ajudaria certamente neste desescalar do conflito. Apesar da maioria dos ucranianos não estarem contentes com estes acordos – principalmente porque demonstraram ser ineficazes desde 2015 e não trouxeram paz a Donbass, não porque os achem inaceitáveis por si só – os protestos contra eles foram bastante pequenos e não eram apoiados pela maioria dos ucranianos.

Mas, até agora, a Ucrânia não quer aceitar Minsk. Encontra várias desculpas para não fazer aquilo que ficou acordado com a França, a Alemanha e a Rússia. Uma das razões são as ameaças muito explícitas de violência da sociedade civil nacionalista que vê nos acordos uma capitulação da Ucrânia. Para os nacionalistas, Minsk significa reconhecer a diversidade política ucraniana – que os ucranianos contestatários não estão apenas zombificados pela propaganda russa e que não são traidores nacionais; que têm razões muito racional para não concordarem com a narrativa nacionalista e que têm uma perceção alternativa da Ucrânia.

Se o governo ucraniano quisesse implementar seriamente os acordos e não encontrar desculpas nessas ameaças dos nacionalistas, poderia ter pedido ajuda ao Ocidente – para obter uma posição consolidada dos EUA e da UE para uma implementação rápida destes. O governo ganharia e desmotivaria a parte nacionalista da sociedade civil, especialmente aqueles que dependem diretamente da ajuda financeira do Ocidente.


Volodymyr Ishchenko é um sociólogo de Kiev pertencente ao Institute for East European Studies. Tem publicado artigos e entrevistas no Guardian e na New Left Review.

Entrevista de Branko Marcetic publicada originalmente na Jacobin. Traduzida por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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