1968 começou no Vietname

Em fevereiro de 1968, as forças de libertação lançaram no Vietname do Sul a ofensiva do Tet, que representou uma viragem na guerra e no crescimento da resistência e marcou o ascenso da luta de libertação até à vitória. Por Pierre Rousset.

16 de December 2018 - 12:05
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Imagem simbólica da ofensiva do Tet em 1968

Em fevereiro de 1968, as forças de libertação lançaram no Vietname do Sul a ofensiva do Tet1 (ou seja, do Ano Novo). De uma enorme amplitude, desenvolveu-se sobretudo no território sul-vietnamita, incluindo em Saigão2. O seu significado internacional foi considerável, reativou o movimento anti-imperialista, o movimento de libertação nacional e acelerou a radicalização da juventude no Japão e nos Estados Unidos, passando pela Europa. Representou uma viragem na guerra e no crescimento da resistência, mesmo no interior do próprio exército norte-americano.

Desde 1965 que o Vietname se tinha tornado no epicentro da situação mundial. Os Estados Unidos assumiram o papel dos franceses. Prosseguiram uma escalada militar multifacetada que, ao longo dos anos, se foi tornando cada vez mais mortífera, incluindo o bombardeamento massivo das zonas libertadas no Sul, do Vietname do Norte, do Laos e, por fim, do Camboja. Washington teve até 500.000 soldados no terreno3 (de notar que na intervenção de 2003 no Iraque nunca lá estiveram mais de 180.000 militares dos EUA). Os gigantescos bombardeiros B52 entraram em ação. O programa Phoenix4 fez mais vítimas do que fazem atualmente os drones. A maior potência mundial mobilizou os seus recursos económicos e científicos. O conflito abarcou todos os planos; incluindo o social: uma reforma capitalista da agricultura foi lançada em oposição à reforma agrária revolucionária das forças de libertação. Em muitos aspetos a extrema brutalidade da escalada não tinha precedentes até então e ainda hoje continua a ser uma exceção. Encarna a barbárie imperialista.

Se Washington lançou tais meios em combate foi porque a dimensão daquela guerra ia para além do local. Tratava-se de pôr um travão, e depois fazer “retroceder” (contain and roll back), à dinâmica revolucionária iniciada no Terceiro Mundo com a vitória da revolução chinesa (1949). O objetivo era a restauração da ordem imperialista no mundo, sob hegemonia dos Estados Unidos.

As raízes da radicalização da juventude nos anos 60 foram diversas. Em França, o regime gaullista, saído de um golpe de Estado, tornou-se insuportável (“10 anos, basta”), assim como a liderança moral com fortes traços católicos. À medida que os estudantes de origem popular começaram a chegar à universidade emergiram novas tensões sociais. O ano 1968 apresentou traços diferentes segundo os países. No entanto, a mobilização contra a escalada imperialista no Vietname constitui um elemento aglutinador, um traço de identidade partilhado, uma marca essencial em numerosos países. Naturalmente, tudo isso não teve uma dimensão tão ampla, pelo menos em grande escala, nos regimes ditatoriais ou na Europa Oriental.

Protesto contra a guerra do Vietname em Nova York em abril de 68
Protesto contra a guerra do Vietname em Nova York em abril de 68

Momento necessário

No Vietname, a decisão de desencadear uma ofensiva com a amplitude do Tet não era uma necessidade evidente e provocou intensos debates na direção do partido comunista. Por fim, a opção tomada foi a de uma ofensiva em todas as direções, constante, que pudesse (objetivo máximo) abrir a via a levantamentos insurrecionais ou (objetivo mínimo) que mudasse o curso da guerra, especialmente graças ao seu impacto mundial. A cidade de Hué (capital do centro do Vietname) resistiu 26 dias antes de ser reconquistada pelas forças dos EUA à custa da sua destruição. O ataque à gigantesca base militar de Khe Sanh por divisões do Exército Popular durou 77 dias (começou em 21 de janeiro e constituiu um elemento de diversão para encobrir os preparativos da ofensiva do Tet propriamente dita). Os combates atingiram o centro de Saigão (incluindo a embaixada dos Estados Unidos) e prolongaram-se durante muito tempo nos subúrbios populares.

O fim da Guerra do Vietname – há 40 anos
O fim da Guerra do Vietname – há 40 anos

Durante a ofensiva do Tet foram usadas todos os tipos de ação de uma guerra popular: operações de guerrilha, levantamentos, intervenção do exército regular (baseado inicialmente no Norte)… Apareceram muitos problemas que nem sempre foram: como organizar num tal confronto as populações desestruturadas refugiadas nos subúrbios de Saigão? como protegê-las de forma duradoura perante uma contraofensiva mortífera e absolutamente indiferente às perdas civis?

O governo norte-americano, ainda que tenha sido apanhado de surpresa inicialmente, mobilizou rapidamente os seus enormes meios militares, assim como as redes e as forças do regime de Saigão para contrabalançar a ofensiva do Tet. O movimento revolucionário do Vietname pagou pesadamente a ofensiva do Tet. Em particular, a infraestrutura política e militante da Frente Nacional de Libertação (FLN), que emergiu às claras, foi golpeada severamente e a amplitude das perdas sofridas em quadros no Sul teve consequências a longo prazo.

Em 1968, a direção vietnamita foi confrontada com um verdadeiro dilema. Era necessário mudar o curso da guerra, porque de outro modo a escalada militar norte-americana teria podido continuar sem limites: Por exemplo, podia até bombardear em massa os diques no delta do rio Vermelho, o que teria provocado a inundação de uma vasta região densamente povoada. Atuar sem demora e de uma forma decisiva era ainda mais imperativa porque o conflito sino-soviético atingia o auge e a China estava mergulhada no tumulto da chamada Revolução Cultural. O Vietname ainda estava a receber ajuda material e militar fornecida por Moscovo e por Pequim, mas por quanto tempo?

Mais do que um “momento favorável”, fevereiro de 1968 era um “momento necessário”. Desencadear uma ofensiva espetacular mas pontual (com as unidades a retirarem-se rapidamente após os ataques simultâneos no conjunto do território) teria tido custos menores, mas talvez não tivesse mudado o curso da guerra. Lançar em combate de forma duradoura tantas forças era uma aposta muito arriscada - e o custo foi considerável-, mas o curso da guerra mudou.

Eletrochoque

“Não vamos enterrar o Maio de 68”
“Não vamos enterrar o Maio de 68”

A ofensiva do Tet provocou um eletrochoque nos Estados Unidos e no mundo. Pôs a nu muitas mentiras de Washington. Mostrou que esta guerra não era nem “democrática”, nem estava ganha, mas era terrível, bárbara, e estava bloqueada. Dividia a burguesia dos EUA, porque o seu custo económico se tornava insuportável. A universidades explodiram. Os protestos dos soldados norte-americanos adotaram uma forma coletiva. A palavra de ordem de “retirada imediata” das tropas tornou-se popular. Mais que nunca, a população negra reconheceu-se na luta de emancipação vietnamita : “Não quero ir para o Vietname, porque o Vietname é onde eu estou. Eu não irei!”

Artigo de Pierre Rousset, publicado em Europe Solidaire Sans Frontières (primeira parte do artigo). Tradução de Carlos Santos para esquerda.net


Notas do tradutor

1 A ofensiva foi das forças de libertação do Vietname em três fases e teve início a 30 de janeiro de 1968. O nome Tet refere-se ao primeiro dia do Ano Novo no calendário lunar tradicional, usado no Vietname (ver wikipedia.pt).

2 Atualmente, Cidade de Ho Chi Min.

3 Mais de três milhões de norte-americanos serviram na guerra do Vietname (ver wikipedia)

4 O programa Phoenix (ver wikipedia em inglês) foi criado pela CIA e estava orientado para identificar e neutralizar a infraestrutura civil da insurreição.

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