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Um intenso fervor artístico e cultural carateriza a explosão do Maio de 68

O Maio de 68 fez convergir duas abordagens geralmente divergentes. Este texto é a quarta e última parte do artigo “Maio de 68 no mundo”, de Gustave Massiah, publicado em Contretemps.
Grafitti “Jouissons sans entraves” (“Desfrutemos sem restrições”), Maio de 68 - O slogan pode ser interpretado à letra como o exagero do egocentrismo. Pode também evocar a possibilidade de se satisfazer doutra maneira que não pelo constrangimento ou pelo poder

O Maio de 68 vai fazer convergir duas abordagens geralmente divergentes. A crítica social das desigualdades e das injustiças vai unir-se à crítica artística sobre a alienação no trabalho e na vida quotidiana. A cultura é entendida como o bem comum de todos. Ela preconiza a vontade de reapropriação da vida e do corpo. A crítica da vida quotidiana e dos media encontram-se e abrem-se novas abordagens da análise societal, da moda, ou das stars. A juventude em revolta junta-se em enormes encontros hippies e em concertos gigantes de rock, que acompanham as manifestações contra a guerra no Vietname.

As escolas de Belas-Artes e as Faculdades de Arquitetura são os padrões da agitação no mundo. Em Itália, França e Inglaterra. Na escola de Belas-Artes ocupada em Paris, o ateliê dos cartazes, dá prestígio à arte pictural que vai explodir em numerosos países do Norte e do Sul. A arquitetura cruza a função social com o gesto arquitetónico, a criação coletiva e o modelo individual, a intervenção popular nos bairros e os guetos de luxo, encerrados nas reviravoltas do pós-modernismo.

A literatura opõe-se à forma. Georges Perec escreve Les Choses (As Coisas) em 1965. A literatura revolucionária é uma tentação permanente. Tel Quel (Tal e Qual), lançado por Philippe Sollers em 1960, publica Barthes, Foucault, Derrida, Eco, Todorov… Em 1968, o grupo toma o partido de uma literatura “avant-garde” dada à revolta, que juntaria marxismo e freudismo.

O cinema e o teatro entram em revolução no mundo de mil maneiras. Toda a experimentação casual é sublimada no próprio instante. A ocupação do Odéon e a invasão do Festival de Avignon transmitem uma terrível impaciência. O sucesso de La Chinoise de Jean-Luc Godard revelou-se a posteriori premonitório. A ocupação do Festival de Cannes no dia 31 de maio de 1968 soa como uma provocação efémera. A mercantilização da cultura e das produções artísticas e as luzes da ribalta mediática marcam um caminho totalitário. Mas o Maio de 68 revelou uma fragilidade na hegemonia que combina comando de Estado e capital financeiro.

O Maio de 68 restabeleceu laços com o surrealismo. A poesia permite explorar este imprevisto, este irrealismo, esta improbabilidade. As paredes e os muros de 68 transbordam de imaginação pela recusa das relações de dominação, sonho de um mundo liberto da tentação do poder. Dos slogans de Maio de 68 que floresceram nas paredes e muros, fazem-se leituras a dois níveis. Numa primeira abordagem, a provocação da libertação iconoclasta e jubilatória da expressão; a liberdade de expressão instala-se profundamente e entusiasma. Numa segunda abordagem, surge uma questão inesperada e dificilmente esgotável. Tomemos como exemplo um dos slogans mais contestados: “Desfruta Sem Restrições”. Ele pode ser interpretado à letra como o exagero do egocentrismo. Pode também evocar a possibilidade de se satisfazer doutra maneira que não pelo constrangimento ou pelo poder, pela escolha de um outro caminho, que não o da dificuldade, para se autorrealizar.

Alguns reconhecem no Maio de 68 um “movimento filosófico de massas” (Jean Paul Dollée e Roland Castro, Viva a Revolução). Deleuze e Gattari, 1984, analisam o Maio de 68 como um acontecimento puro, livre de toda e qualquer causalidade normal e normativa, como “um fenómeno de clarividência, como se uma sociedade visse de repente o que ela contém de intolerável e visse também a possibilidade de uma coisa diferente”. Henri Lefebvre elabora um conceito novo e fecundo no qual se reconhecem precisamente aqueles que viveram estes acontecimentos, trata-se da “Festa Revolucionária”.

O Maio de 68 dá abertura a novos modelos de contradições e novas formas de conflitos

A crise da descolonização ganha corpo e traduz-se por novos Estados com regimes totalitários e autoritários. A partir de 1979, o neoliberalismo põe de novo em causa o compromisso social do New Deal e introduz uma nova via de precarização generalizada. Em 1989, a implosão da União Soviética termina uma crise cuja aceleração estávamos longe de imaginar. O bloco dominante organiza uma nova ordem internacional.

O Maio de 68 mostrou os limites do compromisso social do New Deal

Nos anos 60, a produtividade e o crescimento do mercado interno não excluem a realidade dos poderes discricionários e a ausência de democracia no mundo empresarial. O Estado Providência confronta-se com a rejeição de uma parte da juventude. O capitalismo industrial tem dificuldade a construir as bases sociais do seu projeto. O sistema internacional continua a sustentar-se na troca desigual e na exploração das matérias-primas não permitindo a extensão do modelo ao terceiro mundo. O modelo de desenvolvimento não se esgota depois de 1968 e vai continuar o seu crescimento durante uma década. Mas o “bichinho” está no fruto e o seu dinamismo já não se impõe como uma evidência. A partir de 1970, uma nova fase de mundialização capitalista começa – a fase neoliberal. O capitalismo financeiro impõe a sua lógica ao capitalismo industrial, o mundo empresarial encontra-se sujeito à ditadura dos acionistas. A luta contra a inflação sucede à procura do pleno emprego e provoca desemprego e precariedade. Um bloco dominante, composto em torno dos Estados Unidos, da Europa e do Japão, organiza uma nova ordem internacional com os G7 e marginaliza as Nações Unidas. Apoia-se nas instituições internacionais económicas (FMI e Banco Mundial), comerciais - a OMC (Organização Mundial do Comércio), e militar - NATO.

O Maio de 68 ajudou a revelar os limites do sistema soviético

O muro de Berlim, edificado em 1961, marca o fim da détente. Sublinha uma evolução que impede que a contestação no Ocidente se vire para o Leste. A rutura entre a China e a União Soviética, a partir de 1965, anuncia o fim de um mundo bipolar. O interesse suscitado pela via chinesa desempenha um papel em 1968, mas o eco da Revolução Cultural Chinesa lançada em 1966 virá a desarmar uma grande parte dos que a têm por referência. A assombrosa e trágica loucura assassina Khmer Vermelha completará a desilusão. Os acontecimentos de 1968, na Polónia, e sobretudo na Checoslováquia enfraqueceram duramente o bloco soviético. Jimmy Carter, eleito en 1976, vai tentar superar a derrota no Vietname e os seus conflitos com o Irão de Khomeini. Ele vai lançar uma ofensiva que mistura intimamente o mercado capitalista e a democracia, reduzida à ideologia espetacular dos direitos do Homem. Em 1980, Reagan força a URSS à corrida armamentista, limitando definitivamente as capacidades de evolução interna da sociedade soviética. Em 1989, sob o efeito desta ofensiva externa e das contradições internas, resultantes da falta de liberdade e de democracia, a implosão da União Soviética completa uma crise cuja aceleração era dificilmente imaginável.

Maio de 68 alimentou-se da descolonização e acompanhou a sua crise

Em 1968, a descolonização não chegara ao fim. As lutas ligadas à guerra da Argélia e à do Vietname marcaram a cadência do movimento; há que lembrar a interminável libertação da Palestina sempre inacabada: este período é marcado pela Guerra de 1967, pelo Setembro Negro na Jordânia em 1970, pelo atentado de Munique em 1972 e pela guerra de 1973. Em 1975, as independências de Angola, Moçambique e Guiné Bissau estão intimamente ligadas ao advento da democracia em Portugal. Foi preciso esperar até 1993 para ver o fim do apartheid e a libertação da África do Sul. A crise da descolonização começa quando esta ainda não tinha acabado. Em 1961, o movimento dos “não-alinhados” reúne-se em Belgrado. O modelo de desenvolvimento que emerge combina uma linha que liga a predominância do Estado, a indústria pesada, o controlo do campesinato, com um horizonte “keynesiano”. Mostra também as relações estreitas entre as abordagens produtivistas ocidentais e soviéticas. Em 1966, a Tricontinental em Havana, marcada pelo anúncio da morte de Che Guevara, na Bolívia em outubro de 1967, constitui uma referência para a radicalidade dos movimentos. De 1968 a 1972, os movimentos estudantis revelam a evolução dos regimes nos países do Sul. Denunciam a natureza dos Estados e a sua incapacidade de pôr em causa o sistema internacional. As violações dos direitos individuais, as transgressões ao Estado de Direito, a negação da democracia enfraquecem as bases sociais. A rutura das aliança de classes das libertações nacionais enfraquece os Estados. As crises petrolíferas de 1973 e 1977 parecem mostrar a subida de poder do Terceiro Mundo e dos não-alinhados. De facto, a ofensiva do novo G7 vai inverter a tendência. Esta ofensiva apoia-se nas contradições e no descrédito de numerosos regimes autoritários e repressivos Ela utiliza uma nova arma infalível, a gestão da crise da dívida preparada e utilizada como uma maneira de subjugar politicamente, um por um, os países do sul. O modelo de desenvolvimento imposto baseia-se no ajustamento estrutural de cada sociedade a um mercado mundial do qual a regulação é assegurada pela livre circulação dos capitais e assenta na lógica do mercado mundial dos capitais.

A contradição entre o novo ímpeto e a restauração prolonga-se

Depois do Maio de 68, abre-se um período de fortes tensões entre a progressão das formas e das ideias que dele resultaram, portadoras de novas modernidades, e as respostas conservadoras dos poderes constituídos.

As revoluções inacabadas, a repressão e a recuperação

A ordem moral é reposta, na França e no mundo; a virtude da autoridade é repetida vezes sem conta; a legitimidade das relações de dominação é reafirmada. Após os acontecimentos revolucionários, abre-se um período de refluxo, mesmo de restauração. A sociedade francesa tem costumes enraizados, como nos lembram a Revolução de 1789, a Comuna em 1871, a Frente Popular em 1936. Assim do Maio de 68, ver-se-á o fervor das liberdades voltar ao individualismo, a paixão pela igualdade reciclar-se no elitismo, o amor pela universalidade confundido com a ocidentalização, a imaginação canalizada para a mercantilização.

Os novos impulsos continuam a avançar

Apesar das repetidas condenações, da raiva dos conformistas e da recuperação desenfreada dos publicitários, o significado subversivo do Maio de 68 não desapareceu. Os novos movimentos sociais renovaram a mobilização, a cidadania reconquistou o seu direito, o coletivo e o social apoiam-se na autonomia individual, a crítica das relações de dominação abriu novos espaços de emancipação.

O Maio de 68 traz à superfície as questões não resolvidas das revoluções precedentes

Lembremos as interrogações do movimento da descolonização e principalmente a questão da soberania popular e da natureza dos Estados-Nação. Lembremos também as interrogações nascidas da revolução de 1917, e principalmente a questão da democracia e das liberdades. Lembremos por fim, as interrogações nascidas das lutas operárias dos anos 30 e principalmente a questão da democracia nas empresas e a relação entre os movimentos sociais e a cidadania. Resta hoje a interrogação sobre os limites do modelo keynesiano, do sovietismo e dos modelos que resultaram das libertações nacionais.

O debate sobre a transformação das sociedades e do mundo continua atual

A questão do formato da democracia continua por definir; é nesta questão que assenta o confronto. Os Estados Unidos preconizaram uma democracia intimamente ligada ao mercado capitalista e à ideologia espetacular dos Direitos Humanos. Esta pretensão cínica não consegue esconder as injustiças que corroem a democracia. Ela provém, como mostrou Jacques Rancière, da aversão à democracia pelos próprios que se aproveitam dela. A repulsa do Maio de 68 continua a marcar os defensores da ordem e das normas que qualquer brisa de liberdade assusta; as classes dominantes temeram e desde então, estão sempre inquietas, com a possibilidade de uma revolta inesperada. Os novos conservadorismos relançam o debate sobre o Maio de 68.

O novo movimento antissistema

O movimento altermundialista prolonga e reforça as ruturas precedentes, a da descolonização, a da revolução de 17, a do movimento operário dos anos 30, a de Maio de 68. Sobre o impulso do Maio de 68, ele propõe: a recusa da fatalidade afirmando que um outro mundo é possível; as atividades dos fóruns sociais autogeridos; a convergência dos movimentos sociais, muitos dos quais se afirmaram neste período; uma alternativa à regulação do mundo e de cada sociedade pelo mercado mundial dos capitais, que é a do acesso aos direitos para todos, restabelecendo a noção apaixonada de igualdade.

O período do Maio de 68 acabou, mas as ondas de choque que provocou não deixaram de produzir efeitos e contradições.

Este texto é a quarta parte do artigo “Maio de 68 no mundo”, de Gustave Massiah, publicado em Contretemps. Tradução de Carmo Sales para esquerda.net, revisão de Carlos Santos.

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