O 68 mexicano, 50 anos depois

O 68 mexicano, em especial a sua sangrenta tragédia final em Tlatelolco a 2 de outubro, foi o último grande marco na série de acontecimentos que abalaram o mundo nesse ano. Por Manuel Aguilar Mora.

16 de December 2018 - 11:35
PARTILHAR
“Muito do que acontece hoje tem as suas raízes nas alegres e audazes jornadas das massas juvenis que percorreram as ruas da capital do México e de outras cidades do país”

Porque é que os Estados Unidos prosseguem a bárbara
guerra do Vietname e a URSS invade a Checoslováquia
com o maior descaramento, sem se importarem
com as censuras ou a indignação da opinião pública mundial,
não se ia permitir ao governo de Díaz Ordaz consumar
a horrível matança de Tlatelolco,
sem cuidar em nada
da honra do México no estrangeiro?

José Revueltas, “Carta aberta aos estudantes presos”, escrita em outubro de 1968,
um pouco antes de o seu autor ter sido detido pela polícia de Díaz Ordaz e encarcerado em Lecumberri com os estudantes a quem tinha dirigido a carta.

As comemorações são rituais complexos, ainda mais quando são centenárias ou cinquentenárias, como esta dos acontecimentos de 1968. Podem ser irrelevantes, até vazias, mas também há ocasiões em que desempenham momentos de importante reflexão. Neste caso, trata-se de um dos momentos de destaque do século XX, num ano em que emergiu à superfície esse processo da revolução mundial que, subterrâneo, se vem preparando e realizando desde a irrupção da sociedade globalizada do capitalismo e cuja codificação foi proclamada no texto político revolucionário mais influente e lido da história, o Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels.

Nos cinquenta anos que decorreram o país mudou muito. Nas eleições gerais do 1° de julho um tsunami de mais de 30 milhões de votos impôs a pior derrota histórica aos representantes dos donos do México

Ao contrário de outros países em que a celebração do cinquentenário dos acontecimentos de 1968 pode carecer de relevância, no México é muito previsível que no próximo dia 2 de outubro se realizem atos e manifestações massivas importantes em todo o país. De facto, durante os cinquenta anos decorridos desde então o “2 de outubro não se esquece!” como têm clamado nesse dia todas as gerações de jovens que se manifestam anualmente, enchendo com brio a praça das Três Culturas em Tlatelolco para prestar homenagem aos mártires do massacre de há cinquenta anos.

Há precisamente cinquenta anos, a 26 de julho de 1968, estoirou em pleno centro histórico da Cidade do México o conflito político que abalou o país e o pôs em sintonía com os comoventes acontecimentos internacionais. O 68 mexicano, em especial a sua sangrenta tragédia final em Tlatelolco, foi na realidade o último grande marco na série de acontecimentos que abalaram o mundo nesse ano, pico dos agitados anos sessenta.

A dimensão internacionalista

O ano começara, em janeiro e fevereiro, com um facto que produziu um choque político de dimensões planetárias. O combate que arrasava o Vietname, com a ocupação de meio milhão de militares do exército dos Estados Unidos, chegou a um momento crucial que parecia incendiar o mundo. Apesar da parafernália do seu armamento e da selvajaria dos seus métodos (no conflito morreram um milhão de vietnamitas e foi lançado sobre o Vietname um volume de bombas equivalente ao de todas as bombas lançadas na Segunda Guerra Mundial), o governo de Washington não conseguia apagar o incêndio da guerra de libertação nacional do povo vietnamita e, nesses dias, confrontou-se com uma ofensiva militar de tais dimensões (a ofensiva do Tet, novo ano vietnamita) que, apesar das apocalípticas baixas de combatentes que chegaram até a ocupar durante várias horas a embaixada norte-americana em Saigão, constituiu uma contundente vitória política das forças insurgentes. Essa mensagem foi recebida e assim se iniciou a série de factos que marcaram 1968 como o ano em que o mundo pôde mudar de base.

O combate que arrasava o Vietname, com a ocupação de meio milhão de militares do exército dos Estados Unidos, chegou a um momento crucial que parecia incendiar o mundo

Nos Estados Unidos, as tremendas cenas da guerra do sudeste da Ásia foram presenciadas nos ecrãs da televisão. O sentimento antibélico norte-americano escalou níveis inauditos que se refletiram em protestos multitudinários nas principais cidades, que obrigaram Lyndon Johnson a mudar o general das suas tropas e a renunciar à sua reeleição como presidente. A luta da população negra recrudesceu com o assassinato de Martin Luther King e o país confrontou-se com a sua pior crise política desde a guerra civil da era Lincoln.

As erupções do vulcão vietnamita espalharam-se por todo mundo. Um amplísimo e poderoso sentimento anti-imperialista contra a política norte-americana cresceu, em especial entre a juventude. Do Japão à Alemanha, da Inglaterra ao Brasil, centenas de milhares de jovens, em especial estudantes, ocuparam as ruas e solidarizaram-se com o combate épico dos camponeses e trabalhadores vietnamitas. Essa foi a primeira fonte da internacionalização das lutas de 1968, a sua matriz anti-imperialista. A partir daí escalaram outros níveis e, em maio, veio o exemplo mais espetacular, que ninguém tinha previsto, nem de longe: o maio francês. Em princípio de maio, várias greves universitárias em Paris e nos arredores confrontaram os estudantes com a polícia e subitamente, após vários dias decorridos com confrontos de diverso tipo, numa noite os estudantes pegaram nos paralelipípedos das ruas do bairro universitário e ergueram barricadas para impedir a passagem da polícia para as suas escolas e faculdades. A noite das barricadas incendiou Paris e a 14 de maio começou a maior greve da história do capitalismo: 10 milhões de trabalhadores puseram o governo de Charles de Gaulle à beira do precipício. Com o maio francês iniciou-se na Europa ocidental uma autêntica renovação das perspetivas revolucionárias, que se projetaram até bem dentro da década de setenta: Itália, Portugal, Espanha, surgimento de novas vanguardas e recomposição do movimento dos trabalhadores.

A história escrevia-se não só no “bloco capitalista”. Também se moviam as águas no que era então “o bloco socialista” dividido entre a União Soviética e a República Popular da China. Apenas algumas semanas antes, em 1967, o país mais populoso do mundo tinha iniciado uma convulsão revolucionária com repercussões internacionais, a chamada “revolução cultural chinesa” e, já em 1968, os movimentos democratizadores dos trabalhadores nos países europeus dominados pelas burocracias de origem estalinista também se fizeram sentir, em especial com o despertar da Primavera de Praga na Checoslováquia. Por último, e não menos importante, em outubro de 1967 tinha sido assassinado, por ordem da CIA na Bolívia, Ernesto Che Guevara, possivelmente o líder revolucionário mais influente naqueles dias em que o apelo a “criar um, dois, três, muitos Vietnames” se tinha repercutido nos cantos mais remotos do mundo. Este e oeste, sul e norte, o mundo girava febril.

A ditadura perfeita

Naquele 26 de julho de 1968, como nos últimos dez anos, a esquerda estudantil mexicana tinha organizado as manifestações comemorativas do início da Revolução cubana. Na Cidade do México, um grupo de duas mil pessoas partiu na tarde desse dia para a Alameda, em pleno centro histórico da cidade. Ali, juntaram-se ao comício outros três mil estudantes que tinham sido brutalmente espancados pela polícia de choque, que os impediu de chegarem à praça do Zócalo, onde tinham decidido protestar, em frente ao Palácio Nacional sede do presidente Díaz Ordaz. Tratava-se de estudantes do Instituto Politécnico Nacional (IPN) que uns dias antes tinham sofrido uma investida repressiva da polícia da capital, na sequência de um confronto com grupos juvenis. A repressão tinha escalado de tal maneira que grupos de polícias invadiram as instalações escolares e atacaram até professores. Estas ações incendiaram o IPN e a reação não se fez esperar. Esta manifestação repelida no Zócalo, nessa sexta-feira 26 de julho, era o culminar dos protestos realizados nos dias anteriores. Assim, a resposta aos protestos contra a repressão foi mais repressão, que se estendeu a todo o centro da cidade, atingindo as preparatórias da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM) que continuavam instaladas no velho bairro universitário, apenas a um quarteirão do Zócalo.

A repressão ia manifestar-se com toda a sua crueza: a conta macabra dos caídos começou em 26 de julho e culminou no massacre de 2 de outubro
A repressão ia manifestar-se com toda a sua crueza: a conta macabra dos caídos começou em 26 de julho e culminou no massacre de 2 de outubro - Foto wikipedia

Naquele fim de semana, o centro histórico permaneceu como campo de batalha. A polícia mostrou-se incapaz de vencer os estudantes entrincheirados nos edifícios escolares, não só do centro histórico mas também de outros lugares da cidade. A repressão prolongou-se e no fim de semana foram detidos e encarcerados membros (a maioria) do comité central do Partido Comunista mexicano, acusados de subversão em marcha pelos simples reflexos do anticomunismo reinante, sem qualquer fundamento. Na noite de segunda-feira e na madrugada da terça-feira seguinte, teve lugar o acontecimento que expandiu nacionalmente o conflito e o converteu numa mobilização massiva: a pedido das autoridades federais, o exército interveio e com um tiro de bazuca derrubou o velho portão do antigo edifício da Reitoria, onde se encontravam os recintos das Preparatórias 1 e 3 da UNAM. Foi o sinal para sair à rua, a primeira grande manifestação do Movimento estudantil-popular a 2 de agosto, a partir da Cidade Universitária de San Ángel, dirigida pelas próprias autoridades universitárias com o reitor Javier Barros Serra à cabeça, mas que não pôde chegar ao centro histórico pela barreira do exército que se interpôs ao percurso.

Os caminhos da história foram sendo tecidos nessa tarde de 26 de julho e nos dias seguintes e a união dessas duas marchas estudantis, com objetivos diferentes, foi o detonador de um movimento massivo que se transformou no Movimento estudantil-popular mexicano. Mas a história não é gratuita. A palavra repressão foi escrita várias vezes nas linhas anteriores. E para entender os acontecimentos que se seguiram é necessário um breve lembrete histórico.

Cada processo nacional, imerso nesse imenso caldeirão da explosão global que foi 1968, forjava a sua dinâmica numa combinação específica das determinantes mundiais com as especificidades e particularidades nacionais. E as particularidades mexicanas eram bem evidentes. Tratava-se da determinante fundamental da política mexicana que constituía a “ditadura perfeita”, o império do Partido Revolucionário Institucional (PRI), cúpula de um sistema de partido único de facto, quase totalitário, que no entanto se cobria com as roupagens usurpadas de uma revolução que entre 1910-19 tinha desafiado e derrotado uma das ditaduras oligárquicas latino-americanas mais poderosas e ferozes, a de Porfirio Díaz. Mas o PRI, cujo antecessor foi fundado como Partido Nacional Revolucionário em 1929, tinha-se perpetuado no poder, recorrendo em cada seis anos à farsa de jornadas eleitorais em que era impossível diluir o facto de que cada novo eleito para a cadeira presidencial na prática tinha um único e grande eleitor: o dedo do presidente de turno que o designava como seu sucessor.

Precisamente em 1968 o império do PRI encontrava-se num dos seus momentos áureos. Do ponto de vista económico, o capitalismo mexicano desfrutava de um auge considerável que, desde então, não se repetiu: altos índices de crescimento na indústria e na agricultura, estabilidade financeira, endividamento mínimo, em síntese, tratava-se do que os apologistas do regime chamavam com orgulho “o milagre mexicano”. O PRI-governo como se dizia então, contava com enormes ativos de estabilidade também política: controlava corporativamente sem desafios importantes o movimento operário e manipulava os camponeses com os acervos de uma reforma agrária que, apesar de ser cada vez mais insuficiente, mantinha margens de manobra consideráveis.

Rubén Jaramillo (1900-1962), líder camponês mexicano, foi assassinado em 23 de maio de 1962 juntamente com a sua esposa grávida e três filhos
Rubén Jaramillo (1900-1962), líder camponês mexicano, foi assassinado em 23 de maio de 1962 juntamente com a sua esposa grávida e três filhos

Nos seis anos da presidência de Gustavo Díaz Ordaz (1964-1970) a prepotência do PRI atingiu níveis muito altos. Como secretário da governação do presidente anterior, Adolfo López Mateos (1958-1964), e depois como presidente, Díaz Ordaz foi o cérebro executor de uma das ofensivas reacionárias mais ferozes naa América Latina em plena guerra fria anticomunista levada ao paroxismo pelos ocupantes da Casa Branca Kennedy, Johnson e Nixon. Sob o pretexto da luta contra o comunismo, a repressão das lutas populares tinha provocado muitas vítimas (o assassinato do líder camponês Rubén Jaramillo, da sua esposa grávida e de familiares), a terrível repressão da greve dos ferroviários em 1959, com milhares de despedidos e dezenas de dirigentes encarcerados, durante anos. A famosa prisão de Lecumberri era o símbolo sombrio daquele momento, albergando dezenas de trabalhadores, estudantes, médicos, jornalistas, professores, intelectuais e no cárcere das mulheres, também havia presas políticas. Demetrio Vallejo, o líder ferroviário que estava há quase dez anos atrás das grades converter-se-ia no símbolo dos presos políticos, cuja liberdade se tornou a principal reivindicação do Movimento estudantil-popular.

A dinâmica do movimento

Os movimentos sindicais tinham-se confrontado com o muro repressivo implacável: ferroviários, eletricistas, trabalhadores do petróleo, professores, telegrafistas, médicos e, antes de 1968, também os estudantes tinham sido reprimidos em Michoacán, Puebla, Chihuahua, Sonora e na própria Cidade do México. O despotismo do governo de Díaz Ordaz parecia invencível.

Não se sabe exatamente quantos caíram em Tlatelolco. O jornalista do diário britânico The Guardian escreveu na sua reportagem que os caídos chegavam a 350. Este montante é o que Octavio Paz considerou adequado
Não se sabe exatamente quantos caíram em Tlatelolco, a 2 de outubro de 1968. O jornalista do diário britânico The Guardian escreveu na sua reportagem que os caídos chegavam a 350. Este montante é o que Octavio Paz considerou adequado

A repressão ia manifestar-se com toda a sua crueza: a conta macabra dos caídos começou em 26 de julho e culminou no massacre de 2 de outubro. Não se sabe exatamente quantos caíram em Tlatelolco: o porta-voz do governo de Díaz Ordaz declarou a 3 de outubro que “nos distúrbios de ontem houve cerca [sic] de 20 mortos, 75 feridos e mais de 400 detidos”, no entanto “garante-se a tranquilidade durante os Jogos Olímpicos”. Houve outras estimativas. O jornalista do diário britânico The Guardian, presente no país, como muitos outros jornalistas internacionais devido à proximidade da realização dos Jogos Olímpicos na Cidade do México, escreveu na sua reportagem da noite de Tlatelolco que os caídos chegavam a 350. Este montante é o que, por exemplo, Octavio Paz considerou adequado e o citou no seu livro sobre Tlatelolco, Postdata. Deve considerar-se que nesse ano, à exceção do Vietname, onde decorria uma guerra, só no México se contaram por centenas as vítimas da repressão nos dois meses e poucos dias que durou o movimento. Nem a greve de 10 milhões de trabalhadores em França teve uma única vítima, à exceção de um afogado no Sena, nem a invasão militar soviética na Checoeslovaquia provocou vítimas, à exceção do jovem que se imolou com gasolina.

No México antidemocrático dos anos sessenta, os campus da educação superior, em especial os universitários e politécnicos, eram ilhas rebeldes onde pululavam as ideias e polémicas ideológicas. A rebeldia juvenil expressava-se até nas melenas, na introdução do rock, nos costumes sexuais mais liberais, tudo isso adobado com o crescimento gigantesco do número de matrículas. A UNAM, o IPN e, após elas, as restantes instituições universitárias massificaram-se rapidamente.

Surgiu o caldo de cultura para a ação dos grupúsculos, como depreciativamente o Partido Comunista francês qualificou então os setores politizados e radicalizados que desafiavam o capitalismo, o imperialismo e, cada vez mais, também o estalinismo. Estes grupos abundavam na Cidade Universitária, em Santo Tomás, em Zacatenco, em Chapingo e estendiam-se às preparatorias e vocacionais. Destes grupúsculos, envolvidos desde princípios da década nas polémicas e lutas incessantes com os “reformistas” do Partido Comunista mexicano e com as autoridades, saíram grande parte dos dirigentes dos comités de luta e mesmo do Conselho Nacional de Greve.

Desde o princípio o movimento estudantil foi político revolucionário. Na lista de petições da direção do movimento situada no Conselho Nacional de Greve, as duas principais reivindicações que encabeçavam as petições eram: a liberdade dos presos políticos e a revogação do delito de dissolução social do Código Penal, utilizado como instrumento de repressão pelo Estado contra os opositores. A greve que se estendeu por todas as instituições de educação média e superior da Cidade do México e de muitas outras cidades, não foi contra as autoridades universitárias ou politécnicas, mas sim contra as autoridades da Cidade do México e, antes de mais, contra o próprio presidente Díaz Ordaz, que recuou e decidiu que os estudantes pagariam a insolência com juros.

Certamente que era uma luta pela democracia no México, mas efetuada de modo plebeu. A ausência dos organismos políticos da sociedade burguesa, em especial dos seus partidos, era evidente. O impulso não tinha nada de conciliador e negociador com as instituições da ditadura: exigia-se um diálogo público, a dissolução da polícia de choque, a indemnização dos familiares das vítimas da repressão e a democracia reinante no Conselho Nacional de Greve era a direta, representantes só das escolas e faculdades em greve (primeiro três e depois duas por instituição). E em baixo o músculo do movimento era constituído pelas centenas de brigadas espalhadas por toda a cidade, das praças aos parques, mercados, centros comerciais, cinemas, teatros e em todos os locais públicos onde se pudesse ouvir a voz e distribuir os panfletos explicando ao povo as razões da rebeldia. Das várias tumultuosas manifestações que se apoderaram das grandes avenidas e impuseram a sua entrada no Zócalo, destacaram-se duas que foram sem dúvida as maiores. A de 27 de agosto, realizada dois dias depois da invasão soviética à Checoeslováquia, na qual a faixa que encabeçava a manifestação dizia: “Nós estudantes mexicanos repudiamos a invasão dos Estados Unidos no Vietname e a dos tanques soviéticos na Checoeslováquia”. E a “Manifestação do silêncio” de 13 de setembro, na qual o movimento “contestou” fortemente as ameaças da terrível repressão anunciada por Díaz Ordaz no seu Relatório Presidencial ao Congresso da União, no 1° de setembro.

E de facto depois veio o 2 de outubro, o macabro acontecimento que de imediato chamou a atenção mundial, pois na Cidade de México encontravam-se já dezenas de jornalistas de todos os países. O governo manipulou o mais que pôde mas o facto não pôde diluir-se no meio das cataratas de informação difundidas. Nem sequer se pôde, dez dias depois, brindar aos jogos olímpicos do escândalo, quando os dois atletas negros norte-americanos pararam no pódio de honra das medalhas, ao se iniciarem as notas do hino do seu país e que em vez de o ouvir com respeito, desafiaram-no levantando punhos no ar - a saudação do poder negro. À sua maneira prestavam tributo a tudo o que tinha ocorrido e ocorria nesse ano no México e no mundo.

Esquizofrenia e massacre

A dimensão profunda do Movimento estudantil-popular mexicano de 1968 explica-se em última instância pela reação terrível que foi desencadeada e que culminou, criminosa e espantosamente, na noite de Tlatelolco. Finalmente, o massacre de 2 de outubro revela todos os enigmas que pudessem parecer escondidos. A dureza dos métodos utilizados pelo governo de Díaz Ordaz para pôr fim ao movimento custasse o que custasse, continuará a surpreender pela sua crueldade e violência. Certamente não seremos nós quem tirará um pingo da responsabilidade criminosa a Díaz Ordaz mas as versões que consideram que o massacre foi a típica resposta da personalidade psicótica do presidente são curtas, face a magnitude do conflito. Mais correto é considerar que os aparelhos estatais que chegam, pela dinâmica da luta política, a níveis de repressão fascista ou quase fascista moldam os seus dirigentes: Hitler formou-se como líder durante anos na extrema direita alemã e em 1933 já era o homem certo para a tarefa que a história atribuía ao capitalismo alemão. Pinochet surgiu das fileiras de um militarismo chileno profundamente enraizado nas tradições oligárquicas seculares desse país. O grande ato repressivo de Tlatelolco também se inscreveu na dinâmica dos atos que durante anos o precederam: assassinatos, desaparecimentos, encarceramentos, ocupações militares de oficinas e campus, uma propaganda anticomunista vil e calumniosa, etc. Não era só o ódio sem limites de Díaz Ordaz aos que se atreveram a desafiá-lo, em Tlatelolco expressou-se antes de mais o terror da camarilha do PRI perante o que considerava o perigo mortal dos contactos e da influência cada vez maiores que o Movimento estudiantil estava juntando e expandindo nos setores populares, em especial operários, um temor a que no México se reeditasse uma experiência semelhante à do maio francês. E se De Gaulle pôde superar o desafio, Díaz Ordaz e a sua camarilha sabiam que não poderiam.

Era um sinal impossível de ignorar. O regime do PRI sofreu o seu primeiro grande abanão que anunciou o início da sua longa e truculenta decadência. Os presidentes seguintes, Luis Echeverría e José López Portillo, encarregaram-se de garantir nas novas circunstâncias a sobrevivência do regime. Contando com a inteligência de muitos funcionários e intelectuais reformistas, Echeverría delineou a chamada “abertura democrática” consistente com a manutenção firme do controle da repressão, agora antes de mais frente aos numerosos grupos guerrilheiros, que surgiram em especial no sul do país, e na cedência aos setores universitários perante certas reivindicações, tudo isso marinado com a demagogia “terceiromundista”. Forjou-se assim a bizarra imagem de um governo com uma face internacional “progressista”, supostamente oposto às ditaduras militares do cone sul, hospitaleiro para com os refugiados dessas ditaduras mas que na sua política interna aplicava uma “guerra suja” implacável contra os grupos guerrilheiros, tão cruel e terrível como a das ditaduras. A López Portillo coube-lhe administrar o auge petrolífero que se deu em finais dos anos setenta e princípios dos oitenta e que o dotou da margem de manobra necessária para pôr em prática uma “reforma política”, que manteve a pressão democratizadora sob controle durante mais de uma década, canalizando para a via parlamentar grande parte da oposição.

Cinquenta anos depois

Nos cinquenta anos que decorreram o país mudou muito. Especialmente nestes dias, em que se celebra o cinquentenário do início do Movimento estudantil-popular, teve lugar outro marco da luta do povo mexicano: nas eleições gerais de 1° de julho um tsunami de mais de 30 milhões de votos de mexicanos e mexicanas impôs a pior derrota histórica aos representantes dos donos do México: o que a vox populi chama de PRIAN, a união dos principais partidos da direita, PRI e PAN, que nos últimos trinta anos constituíram a reciclagem do regime presidencialista. Tanto o PAN como o PRI entraram em colapso, caindo o segundo numa situação de irrelevância política. O império do PRI foi finalmente enterrado.

A esmagadora vitória eleitoral de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) não significa ainda o desaparecimento do regime. O regime encontra-se em crise com os dois principais partidos apoiantes dos capitalistas colapsados, talvez sem remédio. O Movimento de Regeneração Nacional (Morena) não é ainda um partido estruturado e nele refugiaram-se muitos antigos quadros do PRI e do PAN, assim como grupos heterogéneos provenientes de outras orientações. É um grande conglomerado cujo único denominador comum é o caudilho dirigente. AMLO, o grande árbitro, enfrenta a colossal tarefa de, ao mesmo tempo, ter muito em conta o que por ele próprio foi definido como a “máfia do poder”, que desde 2 de julho o cercou e aceitou como seu novo guia, e os milhões de trabalhadores e povo oprimido que lhe deram a vitória com imensa esperança de que a situação do país vai passar por uma viragem decisiva a favor do bem-estar popular.

Cinquenta anos depois de 1968, há uma situação nova na luta política cujos complexos e profundos enigmas são evidentes desde o primeiro mês da viragem eleitoral do 1° de julho passado. Abriu-se um novo capítulo na história do México.

Não é exagerado concluir que verdadeiramente muito do que acontece hoje tem as suas raízes nas alegres e audazes jornadas das massas juvenis que percorreram as ruas da capital do México e de outras cidades do país, abanando os palácios e apelando ao povo a unir-se na luta por um México democrático e libertário. Foram os heróis populares que ganharam para sempre um lugar de honra na memória coletiva do povo mexicano.

Artigo de Manuel Aguilar Mora*, professor da Universidade Autónoma da Cidade de México (UACM), publicado em 31 de julho de 2018, em Periodistas Unidos. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net


* Manuel Aguilar Mora integrou, em 1968, o Comité de luta de Filosofia e Letras ao lado de José Revueltas, Luis González de Alva e Roberto Escudero. Foi fundador do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) e é autor de numerosos livros sobre a história política e social de México.

Termos relacionados: 1968 – 50 anos depois