Yayo Herrero: “Não há economia, tecnologia, política ou sociedade sem natureza e sem cuidados”

Uma das mais importantes pensadoras sobre o ecofeminismo fala sobre a importância do pensamento global sobre os fenómenos de exploração e extração, e da sua ligação ao Sul global.

13 de março 2025 - 16:53
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Yayo Herrero
Fotografia de Álvaro Minguito/El Salto

Antropóloga, engenheira, professora e ativista, Yayo Herrero estabeleceu-se como uma das principais defensoras do ecofeminismo em Espanha, uma teoria e prática que nos permite ligar opressões e compreender o mundo, combinando as ferramentas da ecologia social e do feminismo. 

Declarar guerra aos que declararam guerra à vida. O ecofeminismo é uma teoria ou conjunto de teorias que nos permite ligar várias opressões, mas é também um movimento social, embora, segundo a ativista Yayo Herrero, os "rótulos" não sejam o que é importante. O que importa é "o que está no fundo", ou seja, "a defesa da terra e, por outro lado, um processo emancipatório de mulheres que se apresentam e se configuram como agentes-chave para defender e proteger a vida". 

Yayo Herrero explica nesta entrevista a história, o presente e o futuro desta teoria que tenta ligar as ideias do feminismo e da ecologia com uma única missão: colocar no "centro o que é necessário para sustentar a vida".  


O que é que a ecologia tem a ver com o feminismo? 

A ligação entre ecologia e feminismo, e o seu potencial diálogo, tem a ver com a questão de "o que é que sustenta a vida". E se nos perguntarmos o que sustenta a vida, temos que reconhecer que somos seres radicalmente dependentes de um planeta Terra que tem limites físicos e somos dependentes, além disso, daqueles bens que não são fabricados ou controlados à vontade pelos seres humanos. Isto significa que não há economia, tecnologia, política ou sociedade sem natureza.

Mas, por outro lado, os seres humanos também vivem encarnados em corpos, em corpos vulneráveis, em corpos finitos, em corpos que têm de ser cuidados ao longo da vida e especialmente em alguns momentos do ciclo de vida, como a infância, a velhice, momentos de doença ou toda a vida em alguns casos de diversidade funcional. O que acontece é que, ao longo da história, aquelas que mais lidaram com corpos vulneráveis foram e são mulheres, e não porque estejamos geneticamente mais bem equipadas para o fazer, mas porque vivemos em sociedades que se distribuem de forma não livre, no momento do nascimento, em que é atribuído a um determinado sexo a tarefa de cuidar. 

Quando nos perguntamos o que sustenta a vida, deparamo-nos diretamente com as reivindicações e lutas historicamente mantidas, por muito mais tempo, pelo movimento feminista na sua ânsia de distribuir, de desfeminizar o cuidado, de tornar o todo social corresponsável pela reprodução cotidiana e geracional da vida dos seres humanos e pelas reivindicações do ambientalismo. 

De meados dos anos 90 até agora, houve uma série de lutas ambientais lideradas por mulheres, especialmente na América Latina, mas também na África ou na Índia. Pode ser-se uma ecofeminista sem se saber? 

A verdade é que atribuir o rótulo de ecofeminista às lutas honestamente não importa para mim. O que me interessa é ver o que está em segundo plano e o que todas estas lutas exigem. Assim como há ambientalismos que não pretendem ser ambientalismos, que, segundo Martínez Alier, são os ambientalismos do Sul ou os ambientalismos dos pobres. São muitas as lutas lideradas por mulheres que não se reivindicaram ecofeministas, mas nessas lutas está presente, por um lado, a defesa da terra e, por outro, um processo emancipatório de mulheres que se apresentam e se configuram como agentes-chave para defender e proteger a vida. Nesse sentido, seja qual for a sua designação, encontramos um nexo, um elo e uma cumplicidade com todas estas lutas. 

As mães ou mesmo as avós dessas mulheres também lideraram um movimento em defesa da vida, mas a vida dose seus familiares, dos seus filhos, dos seus netos, que desapareceram nas ditaduras. Qual é a ligação entre esta geração de defensores da vida e as atuais? 

Consideramo-nos aprendizes e ligadas por uma genealogia a todas essas mulheres. Quando olhamos para as Mães da Plaza Mayo e encontramos mulheres que começam a entrar de gabinete em gabinete, numa das ditaduras mais sangrentas que conhecemos, exigindo o aparecimento dos seus filhos desaparecidos, o que vemos muitas vezes são mulheres que, da tarefa de cuidar, de um papel tradicionalmente desprezado e subordinado como o de ser mãe, conseguem combater uma das ditaduras mais ferozes do mundo. Muitas das mulheres que lutam contra o extrativismo ou muitas das mulheres que lutam para respirar ar que possa ser respirado, também são mulheres que estão a confrontar interesses muito importantes, colocando no centro o que é necessário para sustentar a vida. Há um fio de continuidade em todas estas formas de defesa do que é importante para nos mantermos vivos. 

Para uma comunidade afetada por uma mina ou um acidente como o de Bhopal, parece bastante claro para que o ecofeminismo pode ser usado, mas será que uma sociedade urbana nos pode ajudar a compreender essa visão de mundo? 

As sociedades ocidentais e urbanas também têm uma parte importante das lutas que são ecofeministas, ou que têm traços ecofeministas. Por exemplo, é impressionante como encontramos conexões importantes e uma harmonia importante com todos os movimentos em defesa da habitação. Defender a sua casa é o mais próximo de defender o território vizinho no quadro da sociedade urbana, porque defender a sua casa não é apenas defender os muros onde cozinha, dorme ou faz sexo, mas é também defender um espaço que o liga ao território próximo, é manter os laços de vizinhança, manter a pertença ao bairro em que se encontra. Mas, além disso, temos lutas que têm a ver com a qualidade do ar, que têm a ver com parar as ondas de calor, por exemplo, que ocorrem no ambiente urbano com as alterações climáticas. 

Também dentro do espaço semi-urbano estamos a aprender sobre algumas lutas contra o extrativismo, por exemplo, a plataforma contra a mina de cobre que fica junto a Santiago de Compostela, as minas de lítio em Cáceres... Todas estas lutas são lutas que estão ligadas às outras e que são maioritariamente lideradas por mulheres. Há muitas mulheres nessas plataformas. Se acrescentarmos a isto tudo o que tem a ver com a poluição química, produtos que são desreguladores endócrinos ou desreguladores hormonais, que afetam mais o corpo das mulheres e, quando não, afetam pessoas mais jovens ou mais velhas, que são maioritariamente cuidadas por mulheres, vemos que existem realmente muitas lutas. 

Além disso, e acima disso, ser solidário com as mulheres que lutam contra o extrativismo no Sul global, que lutam contra a incidência de um sistema e modelo extrativista capitalista e predatório, racista e colonial, depende muito da mudança de hábitos e visões de consumo. Aqui depende de parar o TTIP (Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento), depende de parar o CETA (Acordo Económico e Comercial Global entre a UE e o Canadá), o TiSA (Acordo sobre o Comércio de Serviços), e depende de pôr fim a essas políticas também muitas vezes lideradas por empresas Ibex35 que massacram a vida de outras mulheres. Não há solidariedade feminista sem esses movimentos aqui que também tentam parar e proteger o que está lá. 

Com essa defesa da figura da "mãe coragem", da mulher defensora da vida e dos filhos, do meio ambiente e da saúde, esses papéis que o patriarcado reserva para as mulheres não estão enraizados? 

Claramente. Se a abordagem é dar tapinhas nas costas das mulheres – "Como cuidas bem da vida!" — sem que ocorra qualquer tipo de processo emancipatório, especialmente sem que haja uma corresponsabilidade no cuidado dos corpos que são assumidos pelas pessoas, pelos homens, pelas mulheres, que se definem como são definidas, que não são assumidas pelas instituições, se não pelas comunidades, porque estamos fazendo uma política de defesa da vida,  mas isso continua a ser fundamentalmente cobrado aos corpos das mulheres. Ou seja, esta redistribuição das obrigações que ter um corpo e ser uma espécie implica, esta desfeminização do trabalho de cuidado sobre os corpos, especialmente os femininos, é absolutamente fundamental. 


Entrevista publicada originalmente em El Salto, em 2020. Traduzida por Daniel Moura Borges.

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