A vaga de repressão desencadeada pelo governo de Agostinho Neto a seguir ao 27 de maio vitimou dezenas de milhares de pessoas, destruindo o poder popular, assassinando quadros com formação intelectual e atingindo também duramente a cultura.
A repressão foi muito além dos acusados de “fraccionismo”. Um exemplo flagrante é o de três dos mais importantes músicos angolanos mortos nas perseguições desencadeadas após aquela data fatídica: David Zé, Urbano de Castro e Artur Nunes. Não se conhecem os motivos. Eram os três músicos mais populares da área do MPLA. Simplesmente desapareceram e a sua música deixou de ser tocada nas rádios durante muito tempo.
David Zé, enviado de Agostinho Neto
David Gabriel José Ferreira era um dos músicos míticos da revolução angolana. As suas letras habitualmente eram muito politizadas, defendendo a política do MPLA. Era coordenador do conjunto musical Aliança Fapla-Povo, que acompanhava o Agostinho Neto em todas as suas digressões, fosse no interior ou no estrangeiro, uma espécie de embaixada itinerante da cultura angolana. Foi enviado por Agostinho Neto para assistir aos festejos das independências de Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, onde interpretou, em cada uma delas, a canção "Quem matou Amílcar Cabral".
Iniciou a sua carreira artística em 1966. "Kadica Zé" foi o seu primeiro disco. Gravou um total de 14 singles e um LP em 1975, intitulado "Mutudi Ua Ufolo (Viúva da Liberdade). Tinha 32 anos quando foi morto.
Ouça aqui uma playlist das músicas de David Zé.
Urbano de Castro, autor de “Angola Liberté”
Serralheiro de profissão, trabalhou como operário na empresa União, tendo-se transformado num pequeno proprietário, no ramo da hotelaria, com os rendimentos provenientes da música.
Urbano de Castro fez parte do grupo coral da Igreja Tocoísta, em 1965, experiência que teve um papel importante na afirmação da sua carreira musical.
Foi preso pela PIDE em 1970. Depois de uma primeira tentativa falhada, conseguiu evadir-se para se juntar à guerrilha do MPLA. A canção “Angola liberté”, editada em single, é desta época, e teve um enorme efeito mobilizador nas bases das FAPLA.
Após a independência, integrou, como um dos principais vocalistas, o conjunto musical Aliança FAPLA-POVO. Terá sido fuzilado depois do 27 de maio.
Ouça a música de Urbano de Castro
Artur Nunes, o mais jovem
Era o mais jovem dos três: quando foi morto, tinha apenas 27 anos. Começou a carreira musical pelo ano de 1970 quando fundou os Luanda Show. Depois, lançou-se a solo e colaborou com algumas das melhores bandas da época, Merengues, Jovens do Prenda, Kiezos e África Ritmos. E com os Kissanguela, um grupo musical de intervenção política que passou a dominar o panorama musical do pós-independência.
Leia mais sobre Artur Nunes neste artigo do Buala.
Ouça uma playlist de músicas de Artur Nunes
Um sobrevivente: José da Piedade Agostinho
O secretário-geral da Juventude do MPLA e músico José da Piedade Agostinho teve mais sorte: foi preso, mas escapou da morte.
Salvou-se por ser asmático. “Meteram-no dentro de um saco para depois ser atirado de um avião. Mas como ele tinha aquela asma, estrebuchou tanto, devido à sensação de falta de ar, que tiveram de abrir o saco. E assim se safou, porque já não foi naquela leva”, recorda José Reis, que ouviu a história do próprio. Reis conviveu com o músico no campo de trabalhos forçados do Tari (Quibala, Kuanza do Sul) e, depois de ambos serem libertados, em Lisboa. Foi nesse campo que José Agostinho compôs uma das mais famosas músicas de sua autoria, que seria gravada mais tarde por Cesária Évora a solo e em dueto com Caetano Veloso: “Regresso”, que tem como letra um poema de Amílcar Cabral. (A música é mais conhecida como “Mãe Velha”, pode ouvi-la aqui na versão gravada por Alcione).
Libertado, José da Piedade Agostinho mudou-se para Portugal, onde morreu, nos anos 80, devido à mesma doença que o salvara antes. Estava num bar a tocar, quando comeu um pastel que tinha camarão e lhe provocou um choque alérgico fulminante.
Parceiro de José Agostinho no Duo Misoso, formado por ambos em 1973, Filipe Mukenga homenageou o amigo com a canção “Blues pala nguxi’’. Numa entrevista, Mukenga disse: “É um tema que muito me sensibiliza e que gosto muito. Quando oiço esta canção recordo-me e presto homenagem a um grande amigo e músico com quem tive a felicidade de privar e de trabalhar durante anos, tendo como motivo essencial a nossa música’’. (L.L.)