Ao cabo de 40 anos

Os quarenta anos que separam a data dos acontecimentos violentos e armados vividos em Luanda no dia 27 de maio de 1977 dos dias de hoje não chegam para explicar o sucedido, nem para apaziguar a memória. Por Domingos Lopes.

22 de maio 2017 - 15:51
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Não se pode construir o futuro colocando pedras no passado tentando enterrar a História sem que os enterrados e os seus familiares saibam onde estão os seus entes desaparecidos.
Não se pode construir o futuro colocando pedras no passado tentando enterrar a História sem que os enterrados e os seus familiares saibam onde estão os seus entes desaparecidos.

Quarenta anos são uma meia vida e ao cabo deste tempo todo ainda não se sabe o número de vidas ceifadas a quente e as que se foram ceifando nos esconderijos da pura maldade.

No conflito não havia anjos e demónios; eram humanos os que se enfrentaram até à morte, por sinal ancorados num progressismo que as suas vidas testemunharam.

O enfrentamento militar de 27 de maio minou também o futuro de uma Angola já livre do colonialismo, apontando o seu rumo para o progresso social.

Aliás os quadros dirigentes que pegaram em armas para combater o colonialismo português eram, em geral, mulheres e homens que beberam as suas convicções nas correntes marxistas que então impregnavam as elites africanas e de outros países do chamado terceiro mundo.

Quando as divergências passam para as armas normalmente os que vencem acabam mais tarde vencidos.

Chegados aqui não há justificação para persistir na ideia que o desaparecimento de milhares de jovens e militantes da causa angolana morreria com o passar do tempo. Foi um grave erro como comprova o que sucedeu no interior do Partido Socialista Iemenita, no Partido Popular do Afeganistão nos anos setenta do século passado. Quando as divergências passam para as armas normalmente os que vencem acabam mais tarde vencidos.

A ideia dos vencedores de então (invocando uma ideologia que apresentavam como libertadora) de que fariam esquecer com o tempo o que se passou, não funcionou. O erro foi gigantesco.

É dolorosamente insuportável que os vencedores não se dignem sequer dar conta do que aconteceu aos mortos, dos locais onde se encontram os cadáveres e que motivos levaram a que o desvario fosse solto muito para além da defesa; e a vingança e o ajuste de contas não tivessem fim durante tempos sem fim.

Quantos foram os mortos? Onde estão? Como morreram? Quanto tempo estiveram vivos até à hora e ao dia da morte?

Fazer de conta que feridas tão profundas se fecham para todo o sempre só porque o poder constituído assim o determinou é um mal que não cessa de crescer.

Para que a verdade venha ao cimo da vida justificar-se-ia a criação de uma comissão de apuramento da verdade que integrasse cidadãos acima de qualquer suspeita

Nem os angolanos, nem os povos amigos de Angola sabem o que se passou para além das várias versões que vão correndo.

Para que a verdade venha ao cimo da vida justificar-se-ia, como aconteceu em tantas latitudes, a criação de uma comissão de apuramento da verdade que integrasse cidadãos que estivessem acima de qualquer suspeita e que trabalhassem no sentido de erguer um novo tempo entre angolanos e que permitisse que todos se encarassem como compatriotas, independentemente do lugar nas barricadas em que cada um e familiares estiveram.

Não se pode construir o futuro colocando pedras no passado tentando enterrar a História sem que os enterrados e os seus familiares saibam onde estão os seus entes desaparecidos. Se as pedras se limitarem a tapar o vazio, não taparão mais que esse vazio.

A vida, por mais dura que tenha sido ou que seja, não permite a pacificação se os que perderam forem considerados como párias, como se não tivessem existido.

O mais elementar dos direitos humanos integra o direito a não ser executado e viola de modo grosseiro e bárbaro a execução sem que o Estado dê conhecimento dessa execução e esconda os restos mortais dos executados, o que constitui uma prova de maldade a raiar a prepotência mais cruel.

Angola precisa de paz e que as suas vozes diversas se oiçam. Quarenta anos passaram muito depressa, ao contrário da dor de todos os que perderam os seus filhos amados, pois a imensa maioria dos milhares de mortos eram jovens.

O respeito pelos mortos é o mínimo que se pode pedir ao Estado angolano. O primado dos mais elementares direitos humanos impõe-no.

Uma comissão que se debruce de modo insuspeito sobre o que se passou e preste a todos os mortos o enterro condigno permitiria apaziguar a memória e o presente também inquieto com o passado. O respeito pelos mortos é o mínimo que se pode pedir ao Estado angolano. O primado dos mais elementares direitos humanos impõe-no.

O respeito pela verdade é o modo mais adequado e justo de se poder olhar para o passado e encará-lo nas suas mais cruéis circunstâncias.

São os que detêm o poder os que mais podem fazer e dar os passos necessários. Uma coisa será certa: há acontecimentos que o tempo não resolve porque a memória dorida esconde-se dentro do próprio tempo. Só rasgando o véu que caiu sobre o que passou naquele tempo pacificará as consciências doridas. Só a coragem.


Domingos Lopes é advogado, escritor e Presidente do Fórum Português para a Paz e Direitos Humanos.

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