Um espelho irlandês
Bem, de alguma forma a simples escala da crise – a maneira como afectou muito do mundo, embora não todo – é uma ajuda, para a investigação pelo menos. Podemos olhar para países que evitaram o pior, como o Canadá, e perguntar o que fizeram de certo – tal como limitar a alavancagem 1, proteger os consumidores e, acima de tudo, evitar ficar preso numa ideologia que nega qualquer necessidade de regulação. Podemos também olhar para países cujas instituições e políticas financeiras pareciam muito diferentes das dos Estados-Unidos, mas que contudo estouraram da mesma forma e tentar discernir causas comuns.
Então falemos da Irlanda.
Como aponta um novo relatório de investigação dos economistas irlandeses Gregory Connor, Thomas Flavin e Brian O’Kelly «Quase todas os factores causais aparentes da crise dos EUA não estão presentes no caso irlandês e vice-versa. Porém, a forma da crise irlandesa foi muito similar: uma bolha no imobiliário – os preços subiram mais em Dublin do que em Los Angeles ou Miami – seguida por um sério colapso bancário que foi contido apenas por uma dispendiosa salvação financeira.
Na Irlanda não havia nenhum dos vilões favoritos da direita: não houve um Community Reinvestment Act 2 nem Fannie Mae ou Freddie Mac3. Mais surpreendente ainda, talvez, foi a falta de importância da finança invulgar: o estouro irlandês não foi uma historinha de obrigações de dívida colateralizada nem de «credit default swaps» 4; foi um caso à moda-antiga e banal de excesso, em que os bancos fizeram grandes empréstimos a beneficiários questionáveis e em que os contribuintes acabaram de bolsos vazios.
Então que tiveram em comum? Os autores do novo estudo sugerem quatro factores causais «profundos».
Primeiro, a exuberância irracional: em ambos os países compradores e emprestadores convenceram-se de que os preços da propriedade, embora nos píncaros segundo os padrões históricos, continuariam a subir.
Segundo, houve um afluxo enorme de dinheiro barato. No caso da América, muito do dinheiro barato veio da China; no caso da Irlanda veio sobretudo do resto da zona Euro, onde a Alemanha se tornou um gigantesco exportador de capital.
Terceiro, os actores-chave tiveram um incentivo a tomar grandes riscos porque se saísse cara ganhavam, se saísse coroa um outro qualquer perdia. Na Irlanda este risco moral foi largamente pessoal: «Dirigentes de bancos embusteiros aposentaram-se com as suas grandes fortunas intactas».
Houve muito disto nos Estados-Unidos também: conforme Lucian Bebchuck de Harvard e outros apontaram, os executivos de topo de companhias financeiras em falta receberam milhares de milhões em pagamentos por «desempenho» antes das suas empresas ficarem de papo para o ar.
Mas a semelhança que mais ressalta entre a Irlanda e a América foi a «imprudência reguladora»: as pessoas encarregues de manter os bancos a salvo não fizeram o seu trabalho. Na Irlanda os reguladores olharam para o lado, em parte porque o país estava tentar atrair empresas estrangeiras, em parte por amiguismo: os banqueiros e os promotores imobiliários tinham laços estreitos com o grupo da regulação.
Havia muito disso também, mas a questão maior foi a ideologia. Efectivamente os autores do relatório irlandês não acertam nisto, ao sublinharem a maneira como os políticos dos EUA celebraram o ideal de ser proprietário; sim, fizeram discursos nessa linha mas isso não teve muito efeito nos incentivos dos emprestadores.
O que realmente contou foi o fundamentalismo do mercado-livre. Isto foi o que levou Ronald Reagan a declarar que a regulação resolveria os problemas de instituições prósperas – o resultado real foram perdas enormes seguidas duma gigantesca salvação financeira pelo contribuinte – e Alan Greenspan a insistir que a proliferação de derivativos tinha efectivamente fortalecido o sistema financeiro. Foi largamente devido a esta ideologia que os reguladores ignoraram os riscos em escalada.
O que podemos então aprender com a maneira como a Irlanda teve uma crise financeira tipo EUA tendo instituições financeiras muito diferentes? Acima de tudo que temos de nos concentrar tanto nos reguladores como nas regulações. Certamente vamos limitar tanto a alavancagem como o uso da titularização – que foram parte do que o Canadá fez bem. Mas tais medidas não interessam se não forem executadas por pessoas que vêem como sua obrigação dizer não a banqueiros poderosos. Por isso é que precisamos duma agência independente que proteja os consumidores financeiros – de novo outro coisa que o Canadá fez bem – em vez de deixar esse trabalho a agências que têm outras prioridades. E além disso precisamos dum mar de mudança nas atitudes, dum reconhecimento de que deixar os banqueiros fazerem o que querem é a receita para o desastre. Se isso não acontecer teremos falhado em aprender com a História recente – e estaremos condenados a repeti-la.
1 uso do crédito para aumentar a capacidade especulativa
2 O Community Reinvestment Act é uma lei federal dos Estado-Unidos destinada a encorajar os bancos comerciais e caixas de crédito imobiliário a responder às necessidades dos solicitantes de empréstimo em todos os segmentos das suas comunidades, incluindo os bairros com rendimento baixo e moderado (Wikipedia)
3 instituições financeiras criadas pelo Congresso, depois da Grande Depressão, para conceder crédito à habitação a famílias de baixos rendimentos, ou a reunir fundos para esse fim
4 um credit default swap (CDS) é um contrato de swap no qual o comprador do CDS faz uma série de pagamentos ao vendedor e recebe em troca lucros se um instrumento de crédito (normalmente uma obrigação ou um empréstimo) passar por um determinado evento de crédito, muitas vezes descrito como uma falha (falha de pagamento ou falência, por exº) (com base na Wikipedia)
Tradução de Paula Sequeiros