I - Entramos numa situação asfixiante. Com duas linhas de força que nos levam a isto: os níveis de desemprego e o crescimento do défice. Os sofrimentos, medos, necessidades da população sofredora parecem conjugar-se com as reivindicações dos ineficientes e obscenos poderes financeiros. Interesses contraditórios que se orientam num mesmo sentido: Façam algo! Façam-no, rápido! Sejam contundentes! Muitos acrescentam: Não temam medidas impopulares!
Perante esta pressão o Governo de Zapatero parece um piloto desnorteado. Não é capaz de apresentar uma linha de actuação vigorosa. E quando anuncia medidas acaba por desdizer-se no dia seguinte. Nesta trajectória errática há muito de desorientação intelectual, diante de um panorama imprevisto. Mas também reflecte a dificuldade de articular uma resposta ao mesmo tempo aceitável pelo cidadão comum (de quem depende fundamentalmente a possibilidade de continuar no Governo após as próximas eleições) e o que pedem "os mercados" (um eufemismo para nomear os interesses do capital financeiro e dos rentistas à escala global). Uma contradição que o próprio Governo é incapaz de explicar e articular, o que reforça a sua imagem de imaturidade e fragilidade, e dá maior credibilidade às vozes que clamam por soluções enérgicas.
II - As situações de emergência são propícias aos promotores de receitas simples. Jogam com a vantagem da contundência das suas propostas e da presumida rapidez dos seus efeitos. E obtêm fácil aceitação de alguns meios de comunicação e de uma população doutrinada na cultura do "pronto a consumir" e no seguidismo dos taumaturgos de plantão.
Não há maior simplicidade da que oferecem as receitas neoliberais se, além disso, vão avalizadas por aqueles que se supõe serem as melhores cabeças da ciência económica nacional. Quem quer que analise em profundidade os problemas da economia espanhola descobre facilmente que não existem respostas simples. Transformar uma estrutura produtiva, que viu ser desmantelado parte do sistema industrial (ou perdeu o seu controlo local) e concentrou a sua actividade em torno da construção, não é uma tarefa que se resolva a curto prazo. Absorver um exército de reserva propiciado pelo modelo de desenvolvimento, agora colapsado, não se pode fazer em pouco tempo. Alterar as enormes desigualdades sociais que estão na base de muitos dos nossos problemas, incluindo o recorrente tema do fracasso escolar, gerará resistências difíceis de minar. Romper com uma cultura fiscal, que converte grande parte da população em cúmplice dos grandes evasores e mantém a depauperação do sistema público, exige um processo de acção sustentado no tempo... Mas esta evidência choca, diante da urgência, com a "matraca" de um discurso facilitista e injustificado que vende, como únicas alternativas, uma velha lista de "reformas estruturais" que na prática se reduzem a cortes nos direitos sociais e laborais, a um emagrecimento do nosso anoréctico sector público e a novas medidas liberalizadoras.
As urgências estão a servir também para legitimar uma cultura política discutivelmente democrática. Começando pela tentativa de legitimar a casa real, apresentando-a como uma solução supra-política que soa mais a cultura absolutista que a mediação efectiva. E continuando pela importuna insistência de alguns meios de comunicação de que é tempo de caminharmos todos juntos e seguir os conselhos da autoridade competente (leia-se Governador do Banco de Espanha, "os 100 peritos", ou qualquer outra figura da mesma camada). Em qualquer destes cenários voltamos ao mundo da solução única, do tecnocrata ou do soberano salvador e do acordo baseado nas imposições dos poderes fácticos (neste caso, mercados financeiros, grandes empresas e tecnocracia neoliberal).
O Governo não está em condições de superar este perigo. Nunca teve uma visão distinta da que oferecem os seus assessores áulicos e da que exigem os poderes económicos que balizam a sua actuação. E é de temer que, no final, a soma de pressões do ambiente e a busca de uma imagem de actuação acabem por propiciar uma política de pactos que signifiquem outra viragem neoliberal. Não deixa de ser preocupante que na actual situação um indivíduo como Duran Lleida, líder de um partido cheio de processos de corrupção (alguns dos quais terminaram em condenações) se apresente como a voz da razão e do bom senso do país. Na presente situação a linha de pactos conduz a um caminho já trilhado, o da reforma laboral de 1994, o de uma política fiscal que socave ainda mais as possibilidades das políticas públicas reduzirem desigualdades e ampliarem direitos sociais.
III - Estamos perante uma "ofensiva do realismo mágico", diante de uma realidade que exige mudanças e de receitas mágicas que impedem que sejam abordadas com seriedade. E perante a realidade o que há é um vazio e umas poucas linhas de resposta que mais têm a ver com instinto do que com a existência de um projecto alternativo mínimo. Rejeitar os cortes na segurança social ou no desmantelamento dos direitos laborais é o mínimo que têm que fazer os sindicatos e o pouco que resta de esquerda organizada. Mas vai ser totalmente insuficiente e retórico se não houver capacidade de articular um plano alternativo para situar os problemas e as respostas e se não se construírem diques defensivos que sejam eficazes perante esta nova ofensiva do capital financeiro.
No plano da cultura económica há vários terrenos onde se perderam batalhas e vários espaços que não se cultivaram. Entre os primeiros a aceitação acrítica do modelo europeu e da cultura da competitividade. O primeiro impede a abordagem, com seriedade, de propostas de resistência e reforma frente a um modelo institucional, o da União Europeia, que constitui uma parte do problema. A segunda confunde os planos nos quais se deve articular a política económica e conduz a uma completa submissão cultural às propostas do capital. Uma submissão que acaba por se cristalizar na forma como se abordam muitos dos problemas reais da nossa sociedade: a questão dos tempos e a interacção entre actividade mercantil e vida social, a estrutura das desigualdades, a reconversão para uma economia ecologicamente sustentável, a política educativa, etc. Há que começar a criar um quadro de referência onde as necessidades humanas (sua relevância, sustentabilidade), a equidade, a cooperação social, a democracia estejam no centro do projecto. O que não evita ter que negociar com resistências e poderes, ainda que permita fazê-lo a partir de posições diferentes e ao mesmo tempo reconheça os obstáculos, as resistências e as necessidades de actuação. Já sugeri noutras notas: a partir de uma abordagem assim não só surgem culturas de resistência, mas também propostas concretas de intervenção no plano económico convencional: sectores e actividades a potenciar, regulações do quadro económico etc. Permite também identificar quem são os responsáveis dos problemas, quais são as resistências reais a uma mudança de modelo. Na crise que temos vivido quase ninguém deu nome e assinalou a responsabilidade que cada um teve no processo que nos conduziu ao desastre.
No plano da proposta concreta creio que há que partir da hipótese que, a curto prazo, vai ser difícil lutar contra a austeridade e as reformas estruturais. Do que se trata é de impedir que este discurso difícil de discutir se converta num "panzer" demolidor de direitos que impossibilite qualquer alternativa. E para isso há que realizar uma manobra envolvente consistente revertendo o discurso dominante e transformando-o em contrapropostas:
Por um lado, convertendo o discurso vazio tipo "este país tem vivido no esbanjamento" no discurso concreto sobre os espaços reais em que esse esbanjamento se produz. Há uma importante possibilidade de gerar resistências nas respostas baseadas na exigência de que os custos do ajustamento se concentrem nos mais favorecidos (para provocar debate: talvez não possamos impedir algum tipo de congelamento de salários no sector público, mas deveríamos evitar que afectassem os níveis inferiores e supusessem o corte de empregos nos sectores mais necessitados de pessoal) e no corte de gastos, subvenções e ajudas realmente desadequadas. E garantir direitos e níveis básicos de bem-estar a todas as pessoas, fazendo o sector financeiro carregar com os gastos que ele próprio provocou.
Por outro lado, transformando as propostas de "reformas estruturais" em propostas de reformas realistas. É, por exemplo, evidente que os problemas da balança de pagamentos se devem a uma desadequação entre produção e consumo, no que tem uma importância crucial tanto o modelo energético como os consumos dos rendimentos mais altos, ou os modelos produtivos de algumas grandes empresas. Defender modelos energéticos alternativos ou promover uma tributação que desencoraje determinados consumos são reformas que podem ir na boa direcção e mudar o quadro do debate.
E há um campo processual que não pode deixar de explorar-se: exigir que os tempos e as formas do debate sejam aceitáveis. Penso na reforma laboral, frente à qual deveria exigir-se um debate público organizado, informado. E na reforma das pensões, onde a questão do envelhecimento da população pode ser um facto iniludível mas não a reforma, nem qualquer ajustamento a curto prazo. (...)
Texto publicado no site de ATTAC Espanha
Tradução de Carlos Santos