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A Terceira Onda – A Nova Constituição da Hungria

Neste texto, o Instituto de Política Eotvos Karoly, a União Húngara para as Liberdades Civis (UHLC) e o Comité Helsinki Húngaro (CHH) analisam a nova “Lei Fundamental” da Hungria, considerando que “põe em causa a competição política democrática”, “diminui o nível de proteção dos direitos fundamentais” e salienta que “a adoção da Lei Fundamental será apenas o início de processo de construção, não o seu fim”.
Manifestação de toda a oposição ao governo na entrada em vigor da nova Constituição, 2 de janeiro de 2012

Durante a sua terceira e presente análise do trabalho legislativo do Parlamento Húngaro, o Instituto de Política Eotvos Karoly, a União Húngara para as Liberdades Civis (UHLC) e o Comité Helsinki Húngaro (CHH), examinam se o processo de revisão da constituição vai de encontro ao requisitos do princípio do Direito e compara o esboço da “Lei Fundamental” (isto é, rascunho da nova Constituição) submetido ao Parlamento no dia 14 de Março de 2011 com o atual sistema constitucional.

O rascunho “Lei Fundamental” põe em causa a competição política democrática e torna as mudanças políticas mais difíceis ao transformar as estruturas institucionais, enfraquece o sistema de controlos e equilíbrios e altera o enquadramento da comunidade política ao expandir o direito de voto. Diminui o nível de proteção dos direitos fundamentais e reduz significativamente o reforço dos mesmos ao diminuir os poderes do Tribunal Constitucional. Uma vez que não há informação disponível sobre o conteúdo dos chamados atos primordiais (isto é, atos do Parlamento que requerem uma maioria qualificada de dois terços), pode dizer-se que a adoção da Lei Fundamental será apenas o início de processo de construção, não o seu fim.

1. O processo de construção não cumpre os requisitos do Princípio do Estado de Direito

A necessidade de uma nova Constituição não foi fundada em razões claras e conclusivas, os objetivos permanecem desconhecidos e a comunidade política não teve oportunidade de declarar se quer ou não um novo documento. A Lei Fundamental tem sido preparada em segredo e os nomes daqueles que estão a redigi-la não foram revelados. O Projeto Conceptual preparado pelo Comité Parlamentar ad-hoc - a única instituição política oficialmente incumbida da tarefa de preparar a nova Constituição – não teve influência nenhuma no esboço da Lei Fundamental, enquanto que os políticos que o estão a desenhar não têm, na verdade, nenhuma legitimidade democrática para desempenhar essa tarefa. Perante a ausência de um debate minucioso, aquele texto poderá tornar-se numa constituição instável a longo prazo. O processo de construção falhou na criação de um debate profissional ou público. Mais, o seu ritmo é tão rápido que a discussão é impossível: o debate parlamentar começou no dia 14 de Março de 2011 e a Lei Fundamental iria ser adotada no dia 18 de Abril de 2011. A janela de um mês e o debate parlamentar de nove dias não deu qualquer hipótese para aprofundar o assunto.

A Lei Fundamental da Hungria é fruto de um partido só, uma vez que o único partido a participar ativamente no processo é o Fidesz-KDNP. A oposição devotada aos valores democráticos afirma que o processo é inaceitável e decidiu não participar no debate parlamentar. Perante estas circunstâncias, a Lei Fundamental corre o risco de tornar-se um documento não amplamente aceite por cada membro da comunidade política. Começa então com um severa falta de legitimidade.

A Comissão de Veneza do Concelho da Europa deu voz ao mesmo criticismo na sua opinião de 28 de Março de 2011, redigida sob pedido do Governo Húngaro. (Veja-se: http://www.venice.coe.int/docs/2011/CDL-AD%282011%29001-e.pdf)

2. Adotar a Lei Fundamental será apenas o início do processo de elaboração, não o seu fim

Há um leque de problemas que não são claramente regulados pela Lei Fundamental, assim, uma série de atos primordiais modificarão os atuais fundamentos democráticos ao definir as novas regras eleitorais, o alargamento do direito de voto, a administração do poder judicial e as normas de direitos fundamentais. Não existe informação disponível sobre o conteúdo destes atos primordiais ou sobre a data prevista para a sua adoção, portanto, o modo como as instituições fundamentais funcionarão ou o conteúdo dos direitos básicos continuará desconhecido mesmo após a entrada em vigor da Lei Fundamental.

É característico das democracias constitucionais que regras de diferentes maiorias sejam estabelecidas para adotar atos fundamentais e para mudar a Constituição. Contudo, a este respeito o projeto da Lei Fundamental apresenta um défice constitucional: de acordo com o texto, a maioria de votos necessária para alterar a Constituição e para adotar leis que requerem maioria qualificada é a mesma e – adicionalmente – isto coincide com a atual maioria no governo. Assim, as medidas requeridas para alterar a Constituição e para aprovar atos fundamentais não contêm salvaguardas exigindo o consenso entre o Governo e a oposição.

Para decidir sobre quais os atos a aprovar por maioria parlamentar qualificada ou simples, os escritores da Lei Fundamental foram motivados mais por considerações de poder político do que argumentos profissionais. Alguns atos do Parlamento sobre direitos fundamentais, por exemplo, proteção de dados pessoais, liberdade de informação ou a liberdade de reunião e associação, perderam a sua elevada proteção legislativa (ou seja, já não é necessária uma maioria de dois terços para aprovação). Simultaneamente, normas respeitantes a um número de matérias não usuais vão requerer maioria qualificada, por exemplo, bens públicos, proteção da família, impostos e sistema de pensões. Estes são tipicamente decididos pela maioria governativa, assim ao requerer agora dois terços dos votos, a Lei Fundamental estreita o espectro de ação de um futuro governo.

3. O esboço da Lei Fundamental altera a definição geral de comunidade política

A Lei Fundamental preliminar mudará significativamente a definição da fonte do poder do Estado. No atual sistema constitucional, as pessoas que residem no território da Hungria constituem a fonte de poder. Contrariamente, a Lei Fundamental menciona a substituição da palavra “povo” pela palavra “nação” como sujeito do processo de elaboração (“Nós, membros da Nação Húngara) e o direito de participação nas eleições também é concedido a pessoas que residem fora da Hungria. Embora o documento não defina o que é nação, depreende-se que os húngaros a viver no estrangeiro também têm a possibilidade de participar nas eleições parlamentares mesmo não fazendo parte da população-alvo dos atos legislativos, isto é, não sofrendo as consequências das decisões políticas.

4. A Declaração Nacional de Fé é mais do que uma declaração solene uma vez que a Lei Fundamental declara que os direitos fundamentais serão interpretados de acordo com a mesma

Geralmente, os preâmbulos estipulam o objetivo da lei e os seus princípios gerais estruturantes – na lei húngara, e na tradição do direito público, os preâmbulos não têm força normativa. O esboço da Lei Fundamental começa com a Declaração Nacional de Fé a qual, se for considerada preâmbulo, é apenas uma declaração solene sem qualquer efeito legal.

Contudo, a Declaração é bastante problemática devido a dois aspetos. Primeiro, não vai de encontro ao requisito de neutralidade ideológica esperada pelas constituições democráticas modernas e não segue a ideia do Estado secular, assim, nem todas as pessoas poderão reconhecê-la como sua. A Declaração Nacional de Fé representa uma visão Cristã-nacionalista e impõe esse conceito a todos. Por exemplo, o documento diz “Reconhecemos o papel que o Cristianismo desempenhou na preservação da nossa nação” e ainda “Proclamamos que a família e a nação fornecem o enquadramento fundamental para a comunidade na qual os valores essenciais são a lealdade, fé e amor.” A Declaração não se refere à tradição cultural secular, não religiosa.

Segundo, não é apenas um preâmbulo declarativo. De acordo com o Art. Q, parágrafo 3, Lei Fundamental, a Declaração contém elementos normativos pois aquele documento deve ser interpretado de acordo com este. Isto significa que o catálogo dos direitos fundamentais, como a liberdade de expressão ou o direito à dignidade humana serão interpretados e poderão ser restringidos com base nos valores de fé, lealdade ou no papel proeminente do Cristianismo.

5. O esboço da Lei Fundamental põe em causa os estatuto básico dos direitos humanos. Os cidadãos terão direito a uma proteção mais débil

A redação preliminar da Lei Fundamental abandona o princípio de que todos os seres humanos são titulares de direitos porque são seres humanos. As pessoas têm estes direitos sem se ter em conta o cumprimento das suas obrigações, os méritos pessoais ou a sua utilidade social. O documento apresenta condições explícitas para o gozo de certos direitos básicos e não só – esta perspetiva envolve todo o corpo do texto da Lei.

O esboço vai além do estabelecimento de limites ao poder do Estado e ordenar ação positiva pública para garantir a proteção para os direitos fundamentais. Em vez de limitar o poder do Estado ao interferir na vida dos cidadãos e nas relações entre os mesmos, procura influenciar a esfera privada e as relações entre as pessoas. A Lei Fundamental é dominada por uma poderosa ideologia de direita-cristã que põe ênfase no papel do Cristianismo como perseverante da nação através de valores como a família, nação, lealdade, fé e amor. De acordo com o texto estes são os “valores eminentes” que fornecem o “enquadramento necessário para a comunidade”. Aqueles que se recusam a aceitar estes valores selecionados ideologicamente e procurarem a sua felicidade pessoal de forma diferente, são privados da possibilidade de gozarem dos direitos básicos como membro da comunidade. O esboço da Lei priva os cidadãos do direito de definirem eles próprios o que é importante na vida. Portanto, o documento torna-se um instrumento de restrição da liberdade em vez de ser a primeira fonte de direitos humanos.

O texto preliminar da Lei parafraseia partes da Constituição que até agora serviu como fundação dos direitos básicos: a Constituição obriga o Estado a respeitar e proteger estes direitos. De acordo com o esboço da Lei Fundamental, serão “respeitados” (mas não está definido por quem, portanto, a obrigação de o Estado para respeitá-los não é explícita), e apenas a sua proteção aparece como dever do Estado. Além das obrigações dos cidadãos para com o Estado, por exemplo, o serviço militar ou a contribuição tributária, o projeto de Constituição descreve um número de deveres que são relevantes apenas nas relações entre os cidadãos. Por exemplo, é dever dos filhos adultos “fornecer cuidados para os seus pais se estes precisarem”, e ainda determinar que os patrões e trabalhadores cooperarão de forma a “ter em conta os objetivos da comunidade”.

Outra forma de relativizar os direitos fundamentais é o facto de a Lei Fundamental expandir a lista das obrigações dos cidadãos o que resulta numa mudança da ênfase do papel do Estado para os cidadãos perante a comunidade. Neste espírito, o esboço da Lei descrever que “todos (…) contribuirão para o enriquecimento da comunidade através de trabalho desempenhado de acordo com as suas habilidades e possibilidades”.

Primeira parte de  Artigo disponível em inglês no site da União Húngara para as Liberdades Civis (UHLC). Tradução para português de Sofia Gomes para esquerda.net

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