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Stiglitz: Preservar as instituições financeiras não é um fim em si
Muito pouco está a fazer-se para apoiar os bancos que fazem realmente o que se espera que façam - emprestar dinheiro e autorizar crédito, diz o prémio Nobel da economia Joseph Stiglitz neste artigo publicado no diário britânico Guardian. Para o economista norte-americano, os termos do plano de salvação de Bernanke-Paulson foram desvantajosos para quem paga impostos, e contudo, apesar da sua dimensão, muito pouco foi conseguido para estimular a concessão de crédito.
Preservar as instituições financeiras não é um fim em si, mas um meio para atingir um fim. É o fluxo do crédito que é importante
Por Joseph Stiglitz, publicado originalmente no Guardian.
Agora somos todos keynesianos. Até a direita dos EUA se juntou ao campo keynesiano com desenfreado entusiasmo e a uma escala que ainda há algum tempo seria verdadeiramente inimaginável.
Para aqueles de nós que sempre afirmaram alguma ligação à tradição keynesiana, é um momento de triunfo, depois de termos sido abandonados, quase proscritos, por mais de três décadas. A um determinado nível, o que hoje acontece é um triunfo da razão e da evidência sobre a ideologia e o interesse.
A teoria económica há muito que explicou porque os mercados sem restrições não se auto-corrigem, porque é necessária regulação, porque é que os governos têm um importante papel a desempenhar na economia. Mas muitos houve, em especial dentre os que trabalhavam nos mercados financeiros, que impuseram um certo tipo de "fundamentalismo de mercado". As políticas erróneas que daí advieram - impostas, entre outros, por alguns dos membros da equipe económica do presidente eleito Barack Obama - tinham resultado no passado em enormes custos para os países em desenvolvimento. O momento de iluminação chegou apenas quando essas políticas tiveram agora por resultado custos para os EUA e outros países industriais avançados.
Keynes não só defendeu que os mercados não se auto-corrigem, mas também que em circunstâncias francamente adversas a política monetária seria provavelmente ineficaz. Torna-se necessária uma política fiscal. Mas nem todas as políticas fiscais se equivalem. Na América de hoje, com o acumular das dívidas das famílias e uma elevada incerteza, as reduções fiscais serão provavelmente ineficazes (como o foram no Japão nos anos 90). Muita, senão a maior parte, da descida de impostos de Fevereiro passado nos EUA converteu-se em poupanças.
Com a gigantesca dívida deixada pela administração Bush, os EUA deverão estar especialmente interessados em conseguir o maior estímulo possível de cada dólar investido. O legado de baixo investimento em tecnologia e infra-estruturas, especialmente as verdes, e o crescente fosso entre ricos e pobres, requer congruência entre despesas no imediato e uma visão de longo alcance.
Isso impõe que se reestruturem tanto os impostos como a despesa pública. Baixar os impostos dos pobres e aumentar os subsídios de desemprego, enquanto se aumentam simultaneamente os impostos dos ricos, pode estimular a economia, reduzir o défice e reduzir as desigualdades. Cortar nas despesas com a guerra do Iraque e aumentar as despesas com a educação pode dar dividendos simultaneamente no curto e longo prazo, e reduzir o défice.
Keynes preocupou-se com a armadilha da liquidez - a incapacidade das autoridades em provocar um aumento da oferta de crédito visando incrementar o nível da actividade económica. Ben Bernanke. o presidente da Reserva Federal dos EUA, tentou energicamente evitar que esta fosse apontada como culpada pelo aprofundar da crise, da forma em que o foi em relação à Grande Depressão, que está associada a uma contracção no fornecimento de liquidez e ao colapso da banca.
No entanto, a história e a teoria devem invocar-se com cuidado: preservar as instituições financeiras não é um fim em si, mas um meio para atingir um fim. É o fluxo do crédito que é importante, e a razão porque o colapso da banca durante a Grande Depressão é significativa é porque ela era quem determinava as condições de fiabilidade do crédito, estava nela o repositório da informação necessária para a manutenção do fluxo do crédito.
Mas o sistema financeiro americano mudou de forma dramática desde os anos 30. Muitos dos grandes bancos da América deslocaram-se do negócio de "emprestar" para o "movimento dos negócios". Concentraram-se em comprar títulos, reformatá-los e tornar a vendê-los, enquanto estabeleciam um recorde de incompetência para avaliar riscos e autorizar créditos. Centenas de milhar de milhões foram gastos a preservar estas instituições disfuncionais. Nada foi feito sequer para reformular as suas perversas estruturas de incentivos, que encorajam comportamentos de vistas curtas e o assumir de excessivos riscos. Com recompensas privadas tão marcadamente distintas dos resultados sociais, não é de surpreender que a busca do interesse próprio (ganância) tivesse levado a tais consequências socialmente destrutivas. Nem sequer os interesses dos próprios accionistas foram bem servidos.
No entretanto, muito pouco está a fazer-se para apoiar os bancos que fazem realmente o que se espera que façam - emprestar dinheiro e autorizar crédito.
O governo federal assumiu biliões de dólares de problemas e riscos. Para salvar o sistema financeiro, tal como na política fiscal, temos de preocupar-nos com "tirar bom proveito do nosso dinheiro". De outra forma, o défice - que duplicou em oito anos - vai crescer ainda mais.
Em Setembro, falou-se que o governo iria reaver o seu dinheiro com juros. Quando o plano de salvação foi lançado, tornou-se cada vez mais claro que era meramente outro exemplo de má avaliação de risco dos mercados financeiros - justamente como tinha vindo a fazer-se consistentemente nos anos recentes. Os termos do plano de salvação de Bernanke-Paulson foram desvantajosos para quem paga impostos, e contudo, note-se, apesar da sua dimensão, muito pouco foi conseguido quanto a estimular a concessão de crédito.
A imposição neoliberal da desregulação serviu bem alguns interesses. Os mercados financeiros tiveram sucesso com a liberalização do mercado de capitais. Permitir à América vender os seus produtos financeiros de risco e especular no mundo inteiro serviu bem as suas firmas, mesmo que a um custo muito elevado imposto a outros.
Hoje, existe o risco de que se possa usar e abusar das novas doutrinas keynesianas para servir alguns dos mesmos interesses. Terão os que há 10 anos impuseram a desregulamentação aprendido a sua lição? Ou irão simplesmente apoiar reformas cosméticas - o mínimo que for necessário para justificar o megaplano de salvação de biliões de dólares? Houve uma mudança de intenções, ou só uma mudança na estratégia? No fim de contas, no contexto actual, a defesa de políticas keynesianas parece ser ainda mais lucrativa que a defesa do fundamentalismo de mercado!
Há uma década, no tempo da crise financeira asiática, muito foi discutido quanto à necessidade de reformar a arquitectura financeira global. Pouco foi feito. É imperioso que não só saibamos responder de forma adequada à actual crise, mas também que levemos a cabo reformas de longo prazo, que serão necessárias se quisermos criar uma economia global mais estável, mais próspera e mais equitativa.
5 de Dezembro de 2008
Tradução de José Pedro Fernandes
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