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O final do século XIX e o início do século XX são marcados por profundas transformações políticas, económicas e sociais que vêm reconfigurar a face da Europa mas também de Portugal. A industrialização, a proletarização, a terciarização, a urbanização, a entrada das massas na política, a difusão do republicanismo e do socialismo contribuem para o desenvolvimento de novas sensibilidades políticas e novos grupos sociais portadores de novas aspirações e reivindicações.
Este processo da modernidade vem pôr em causa os fundamentos da sociedade e dos sistemas políticos tradicionais, acentuando a crise dos sistemas liberais, na medida em que se traduz na emergência de grupos sociais que não se encaixam no tradicional sistema liberal de finais do século XIX e nele não têm representação política e institucional. Progressivamente estes grupos organizam-se em novos partidos como os republicanos, socialistas, trabalhistas ou operários. Note-se que, internacionalmente, se faz ainda sentir o impacto da Comuna de Paris de 1871 e da emergência enquanto fenómeno de massas do movimento socialista. A partir de 1890, há um crescente peso de uma classe operária em expansão, das massas populares que pretendem entrar na política, e, globalmente, crescem as pressões democratizantes, levando a que haja um alargamento dos sistemas eleitorais em países como a Inglaterra, Bélgica, Noruega, Suíça, Dinamarca, Finlândia e Noruega, sendo Portugal, à imagem, por exemplo, da Espanha, uma das excepções deste processo de abertura dos sistemas políticos europeus. De facto, algumas destas pressões dos extremos começam a ser integradas pelas elites liberais no sistema político, através do alargamento do universo eleitoral e da sua representação parlamentar.
Também no caso português, os processos acima descritos traduzem-se na emergência e protagonismo de novos grupos sociais dotados de objectivos políticos e reivindicações próprias, excluídos do establishment político-partidário liberal, mas empenhados em nele encontrar espaço no sentido de impor as suas aspirações políticas, e que se tornam cada vez mais receptivos à propaganda e contestação republicana que, ao liderar a oposição ao sistema monárquico, se constitui como a expressão de um descontentamento popular, urbano, operário, sindicalista, socialista e anarquista.
No quadro das transformações de finais do século, temos em Lisboa, a par do operariado fabril e oficinal e de uma miríade de trabalhadores indiferenciados, um universo de pequenas profissões composto por artesãos, marçanos, caixeiros, barbeiros, alfaiates, sapateiros, pequenos assalariados, funcionários públicos ou empregados de escritório. Encontramos ainda uma elite urbana de profissões liberais e intelectuais que será a classe dirigente e a elite intelectual do republicanismo composta, sobretudo, por médicos, advogados ou engenheiros. Também relevante neste magma político-social lisboeta é o papel das sociedades secretas na contestação à monarquia e no subsequente processo de implantação republicana, não obstante diferenças importantes na origem, composição social, modus operandi e percurso entre Carbonária e Maçonaria. Tudo isto constitui aquilo que Fernando Rosas designa como o “bloco social do 5 de Outubro” e da própria República. Será na Lisboa proletária, pobre, desprotegida e excluída da vida política, que o discurso da elite intelectual e política do republicanismo encontrará eco. Mais do que uma adesão genuína ao republicanismo ou o culminar de um processo de ascensão sustentada, a aproximação desta vaga de descontentamento e destes grupos sociais ao projecto republicano faz-se, em importante medida, por oposição e desafectação ao regime monárquico cada vez mais impopular e com menos apoios.
Incapaz de integrar e dar resposta às aspirações destes novos grupos sociopolíticos, o regime monárquico vive um processo de crise económica, financeira e política, agravado em definitivo pelo Ultimatum britânico de 1890, golpe decisivo na monarquia constitucional e na sua réstia de legitimidade, marcando o arranque definitivo da ofensiva republicana. De facto, são os republicanos que lideram a contestação e a propaganda e capitalizam o descontentamento face à monarquia, explorando habilmente o nacionalismo, a humilhação, o sobressalto patriótico e a crise económica e financeira.
A crise política, económica e financeira traduzia-se no esgotamento do modelo económico, numa eminente situação de bancarrota, na instabilidade governamental e parlamentar, na sucessão de executivos, nas cisões partidárias, na ausência de reformas de fundo, nas dificuldades em administrar eficazmente e desenvolver economicamente as possessões coloniais e numa posição internacional de crescente subalternidade face à aliada Inglaterra e à Alemanha. A tudo isto acresce a referida crise aberta pelo Ultimatum e um processo de descrédito, não só do sistema político, mas também da família real e da instituição monárquica, desacreditadas, impopulares e envoltas em escândalos. De facto, o regime monárquico, a braços com uma grave crise de legitimidade, estava em processo de esgotamento, repousando o poder invariavelmente nas mãos da mesma elite política do liberalismo monárquico que entre si pouco se diferenciava através da alternância e a partilha do poder entre regeneradores e progressistas. Apesar de se poder falar num processo de “republicanização” da sua cultura e de algumas das suas práticas políticas, registando-se, por exemplo, a cooptação de republicanos moderados pelo sistema monárquico, a monarquia constitucional revela-se incapaz de se auto-reformar, de se abrir e integrar os extremos e de, pelo menos, assegurar o efectivo apoio das várias facções e clientelas monárquicas. Minada pelo caciquismo e o rotativismo, os últimos anos da monarquia são marcados por leis eleitorais mais restritivas e pelo recuo da percentagem de cidadãos com direitos políticos, traduzindo as manipulações tendentes a reduzir ou anular o eleitorado urbano potencialmente republicano, e pela governação em ditadura administrativa de João Franco com apoio do monarca D. Carlos, após anos de rotativismo entre o “regenerador” Hintze Ribeiro e o “progressista” José Luciano de Castro.
O período final da monarquia é de crispação política, de intensa actividade, agitação e propaganda republicana que, em verdadeiro processo de afirmação, se prepara para assaltar o poder. O republicanismo tornara-se um discurso crescentemente aceite nos principais meios urbanos e apresentava-se cada vez mais como uma alternativa real à monarquia constitucional, contando já com uma importante base social urbana de apoio activamente disposta a trabalhar pela vitória da República e uma significativa implantação nos meios políticos, operários e associativos da sociedade lisboeta.
Num país analfabeto, rural, atrasado, católico e que no essencial não era republicano, a Lisboa republicana, operária e revolucionária, sinal da macrocefalia de Portugal, constitui-se como o elemento chave, o alfobre da conspiração republicana que, após o regicídio a 1 de Fevereiro de 1908, instaurará a República a 5 de Outubro de 1910, numa Europa, à excepção da confederação suíça e da III República Francesa, esmagadoramente monárquica.
A República inaugurada em 1910 acaba por se constituir como a derradeira tentativa do sistema liberal se reformar, ultrapassada que estava a sua fórmula monárquica. No entanto, os primeiros anos do republicanismo, marcados pela hegemonia do Partido Republicano Português (também conhecido por Partido Democrático) de Afonso Costa, são complexos e turbulentos. Desde logo por se tratar de um fenómeno que em Portugal era essencialmente urbano e, sobretudo, lisboeta, num país profundamente rural e católico, sendo legítimo falar numa República política, geográfica e socialmente cercada. Depois, porque desde o início entra em rota de colisão com a Igreja católica, num duro braço-de-ferro simbolizado pela Lei de Separação do Estado e das Igrejas, traduzindo os elementos positivistas, cientifistas, anti-clericais e de laicidade de um republicanismo que se opõe desde sempre ao clericalismo anti-moderno, reaccionário e obscurantista e lutará pela laicidade do Estado ao mesmo tempo que perseguirá duramente a Igreja.
Paralelamente, a República vai defraudar as esperanças num sistema político efectivamente mais democrático, mais inclusivo, com um maior universo eleitoral que, na realidade, acaba por diminuir. Não dá resposta às aspirações das classes sociais mais desfavorecidas, nomeadamente o mundo operário, que acaba por alienar e até perseguir.
A participação de Portugal na I Guerra Mundial será o golpe final na primeira etapa da experiência republicana. A impopular entrada na guerra, justificada com a defesa das colónias (Angola e Moçambique) e subordinada à necessidade de reforçar internamente e de legitimar internacionalmente o regime no “concerto das nações”, traz consigo, para além da incompreensão da generalidade dos portugueses e de um estrondoso desastre militar na Flandres em Abril de 1918, profundas e fatais perturbações sociais, económicas, financeiras e políticas, desenhando-se um quadro de fome, carestia, inflação, doença, morte, revoltas, descontentamento, estrangulamento financeiro e agudização da tensão social e da crise política.
Numa situação de crescente tensão política e social, destacando-se a forte dinâmica grevista, e de instabilidade política e governativa, a República traduziu-se, apesar de tudo, numa importante modernização cívica, consubstanciada na liberdade de consciência, na laicização do Estado, no registo civil obrigatório e no ensino obrigatório, gratuito e laico. Não obstante a importância dada à educação, à cidadania e aos direitos e liberdades, alguma legislação avançada no domínio laboral ou da família, a dinamização cultural, associativa e da sociedade civil e as mudanças operadas ao nível dos grandes símbolos identitários (hino e bandeira), a República não encetara reformas estruturais a nível económico e social que lhe permitissem alterar a face de uma economia atrasada e debilmente industrializada, garantir alguma paz social e alargar a sua base social e manter o apoio do seu bloco inicial.
O republicanismo, enquanto filosofia da história e projecto ético, intelectual e cultural, imbuído do cientifismo e positivismo iluminista, da crença no progresso e na evolução e perfectibilidade da Humanidade, e de uma ética social e comunitária que confere um papel central do Estado e assenta na ideia de prevalência do interesse geral sobre os interesses particulares, de bem comum, de soberania popular e de serviço público, não se traduzira numa concretização política, económica e social susceptível de garantir um efectiva transformação, democratização e reforma estrutural do país.
Não garantira a paz social, ou seja, a “ordem” nas ruas, argumento abundantemente utilizado pelo país conservador que perfilhava as soluções de superação autoritária do sistema liberal e difunde a narrativa, adoptada pela propaganda do Estado Novo, de uma Primeira República reduzida a uma imagem de agitação social, violência, anarquia e desordem. Não tendo conseguido ser uma via bem sucedida de democratização e reforma do país, a experiência republicana está, todavia, muito longe desta ideia de caos construída para legitimar e glorificar a “ordem” assegurada pelo Estado Novo.
O prenúncio destas aventuras de pendor autoritário acontece com a breve experiência protagonizada por Sidónio Pais em 1917-1918, a que se seguirá uma nova etapa da Primeira República (1919-1926) marcada pela pesada herança do pós-guerra, difícil situação económica, inflação, instabilidade política e sucessão vertiginosa de governos, mas também de importantes reformas económicas, sociais e financeiras, que cairá pela acção do golpe de 28 de Maio de 1926. Inicia-se o período de ditadura militar, onde a presença republicana ainda se faz sentir e tenta resistir, mas vai perdendo força e capitulando perante as forças de direita conservadora e as soluções autoritárias de superação do impasse do sistema liberal, abrindo-se o caminho a Salazar e à institucionalização do Estado Novo, numa Europa que entrava na “era fascista” e assistia ao fim de muitos dos seus regimes liberais ante o avanço de uma direita antiliberal, autoritária, reaccionária e anticomunista que capitalizava a desestabilização e os reajustamentos do pós-guerra, a crise económica e a crise da velha ordem liberal.
Francisco Bairrão Ruivo
Obras consultadas:
António Reis (Coord.), A República Ontem e Hoje, Lisboa, Edições Colibri, 2000.
Eric J. Hobsbawm, A Era do Império 1875-1914, Lisboa, Presença, 1990.
Fernando Catroga, O Republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910, Editorial Notícias, Lisboa, 2000.
Fernando Rosas, Maria Fernando Rollo (Coord.), História da Primeira República Portuguesa, Lisboa, Edições Tinta da China, 2009.
Rui Ramos (Coord.), Bernardo Vasconcelos e Sousa, Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal, Lisboa, Esfera dos Livros, 2010.