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“A anarquia progride por todo o lado. O ano passado havia um só anarquista em Lisboa. Hoje, são já suficientemente numerosos para difundir milhares de brochuras e editar um jornal”1
Creio que a citação é relativamente conhecida. Trata-se de uma carta do militante anarquista Elisée Reclus, escrita de França, depois de uma segunda viagem a Portugal, em Abril de 1886.
Nessa altura, os anarquistas portugueses podiam ser suficientemente numerosos para aquelas tarefas de propaganda; a sua presença podia ter a expressão mínima que permitisse doravante falar em movimento libertário no país, mas estavam ainda efectivamente muito longe de serem hegemónicos no movimento social.
Terão, aliás, nesses anos até ao final do século, particularmente na última década de Oitocentos, grandes dificuldades de afirmação, emparedados que estavam entre um movimento sindical completamente hegemonizado pelo velho Partido Socialista Português e acossados por fortes bátegas repressivas com que o Governo reagia a um conjunto de acções violentas e atentados.
Na prática era a proibição das organizações e da imprensa anarquista. Era a chamada lei celerada, que João Franco, na altura ministro, tratara de fazer aprovar. O seu impacto seria tão forte que não se conseguiria mais livrar do seu espectro, mesmo quando quis revê-la, oito anos mais tarde, já como Presidente do Conselho de Ministros.
Dezenas, porventura centenas mesmo, de militantes anarquistas, ou suspeitos de o serem, foram assim deportados para Timor, Moçambique, para a Guiné… Muitos morreram por lá, outros só regressaram passados muitos anos, alguns tentaram fugas espantosas.
Em reacção, constituir-se-ia uma Liga contra a Lei de 13 de Fevereiro, funcionando na Confederação Metalúrgica, envolvendo associações de classe, mas também centros republicanos.
Do ponto de vista das condições de vida dos trabalhadores, a situação não era também a melhor. Entre 1888 e 1901, a ração alimentar teria aumentado 25%, tanto quanto o preço do trigo de 1892 a 1900. Na última década de Oitocentos ter-se-ia registado estagnação e quebra nos consumos populares.
Nos salários, nalguns sectores, a tendência tinha sido mesmo de depreciação. Nos metalúrgicos, por exemplo, entre 1890 e 1905, consideradas cinco das principais categorias profissionais, em todas elas o valor nominal do salário baixou. Um caldeireiro que em 1890 auferia 700 reis/dia, em 1905 auferia 670. Do mesmo modo os ferreiros ou os torneiros que de 980 e 950 reis diários passavam nesse período de 15 anos para 750 e 780, respectivamente.
A oscilação do défice nas contas públicas, com contracções fortíssimas em 1900-1901 ou em 1903-1904, bem como o superavit registado no ano económico seguinte, apontam para reduções enormes na despesa pública o que equivalia à fortes constrangimentos sobre o emprego nas obras públicas e ao aumento da pressão fiscal, com consequências pesadas nos trabalhadores.
Porém, na viragem do século, assiste-se a um crescimento industrial, que sendo incipiente, se traduz no aumento das unidades fabris, designadamente de média dimensão, e na incorporação crescente do maquinismo, processo que teve implicações significativas na reconfiguração do proletariado, se bem que, em 1907, mais de metade do que se considerava como população industrial fossem artesãos.
É neste contexto que, entre a resistência à repressão política e o envolvimento no movimento social, se vão desenvolver em relativa pluralidade as ideias anarquistas, nem sempre coincidentes, nem sempre suficientemente diferenciadas, mas evidenciando grande vigor e efervescência.
Entre 1900 e 1910 são criados 166 novos grupos anarquistas e apenas extintos 12. São grupos pequenos, de composição restrita, fundados em relações de proximidade muito fortes, cuja capacidade de consolidação depende fundamentalmente desse carácter, que os torna fechados, assentes numa organização simples, funcionando em assembleia, reunindo em regra semanalmente na casa de um dos seus membros ou em salas cedidas pelas associações de classe.
São fundamentalmente grupos de propaganda, culturais em menor número e menos ainda os ligados a temas ou objectivos específicos. Só em poucos casos evoluem para formas de organização mais complexa, promovendo por exemplo a edição de um jornal ou uma revista.
É o caso dos grupos Conquista do Pão e Juventude Consciente que se fundem em 1906, constituindo o grupo Acção Directa para, dois anos depois, darem origem ao Grupo Editor da revista anarquista A Sementeira, uma revista notável, dirigida pelo operário arsenalista Hilário Marques, com 36 números publicados na sua primeira série, entre Setembro de 1908 e Agosto de 1911, onde colabora a elite da intelectualidade anarquista da época – Campos Lima, Emílio Costa, Neno Vasco, José Carlos de Sousa, Severino de Carvalho, Adolfo Lima, Sobral de Campos e que publica dezenas de textos de Malatesta, Réclus ou Kropotkine.
As suas páginas são repositórios extraordinários da divulgação doutrinária empreendida, dos temas internacionais, das polémicas, dos ritmos de aparecimento de novos grupos anarquistas e associações de classe, das reclamações operárias e do movimento de greves, que adquirem novo fôlego na viragem do século, nos primeiros anos de Novecentos.
O movimento sindical cresce. Em 1905 há 161 associações de classe, em 1910 são 223, concentrando-se esmagadoramente no sector industrial, residuais e de crescimento muito lento no sector agrícola.
Está-se a passar de um padrão de greve dispersa, isolada, circunscrita a uma fábrica quase artesanal, com escasso número de trabalhadores, para movimentações mais vastas. A greve dos têxteis da Covilhã, no verão de 1902, pontua o arranque dessa evolução. Oitocentos operários reclamam pelas suas antigas tabelas salariais, pela reposição de fatias elevadas que chegavam aos 75% no caso das mulheres e aos 70% nos homens.
As reivindicações salariais serão aceites, mas 22 dos operários que mais se haviam destacado na greve serão despedidos. Ficava no entanto inscrito o exemplo da combatividade e da radicalização.
As negociações, intermediadas pelo governador civil e pelo próprio presidente da Associação Industrial Portuense, são completamente improcedentes e suspensas. As tentativas de reabrir as fábricas com gente estranha a substituir os grevistas sob a protecção da tropa descambam em violência – são presos 220 operários, colocados num navio fundeado no rio.
Cresce a solidariedade, imensa, do Porto operário e popular – entram em greve chapeleiros, sapateiros, metalúrgicos, tabaqueiros, tanoeiros… A greve torna-se praticamente geral no Porto e o número dos envolvidos galga para os 40 mil. Recolhem-se fundos e donativos pelas ruas da cidade.
Mas era um novo ciclo que se abria. Iam longe os tempos em que nas páginas da imprensa operária se reconheciam as virtudes da acção parlamentar e se aconselhavam os trabalhadores ao voto. O discurso sindical, de classe, tornara-se radical, anti-político.
As divergências entre anarquistas e socialistas no movimento sindical tornavam-se irredutíveis, num processo que fragmentaria o Partido Socialista e que geraria um veio com expressão suficiente para reconfigurar o próprio campo do anarquismo, ainda que caminhando numa nebulosa de sensibilidades e tendências.
Se todas essas sensibilidades se reconheciam como antimilitaristas, se todos aceitavam o papel de uma educação nova, moderna, “racionalista”, se havia um acordo consideravelmente largo sobre o papel dos sindicatos, dividia-os no entanto duas questões fundamentais – a atitude face ao regime, por um lado e a violência, por outro.
Puristas e intervencionistas, pacifistas tolstoianos e partidários do direito à revolta, partidários da greve geral ou adeptos da acção directa ao tiro e à bomba, debatiam-se, em tensão, mas num universo que além de restrito era suficientemente sincrético, para que nenhuma dessas correntes despontasse ainda, hegemónica.
No entanto, o que essa reconfiguração do campo anarquista traz de fundamental é justamente a constituição de uma corrente intervencionista, presente nas associações de classe, engrossando através da aliança entre correntes possibilistas dissidentes do Partido Socialista e militantes anarquistas num percurso que os leva ao campo de um socialismo revolucionário, evoluindo daí para o campo do anarquismo.
Entendiam a República como um regime mais avançado que a Monarquia, espécie de etapa necessária no caminho da libertação.
A Federação Socialista Livre, constituída em 1901 e refundada em 1905 é a expressão dessa aliança e desse intervencionismo libertário que se vai desenhando no espectro do movimento anarquista. O jornal O Germinal de Setúbal, ao aderir em 1906 à Federação, tornar-se-á no principal arauto desta corrente, que tanta crítica e polémica levantará nos meios anarquistas.
Neste sentido, é esta corrente que alimenta como útil a ideia dos operários votarem nos republicanos e só desta forma se poderá perceber como o Partido Republicano quintuplicou os seus resultados eleitorais entre 1901 e 1910, atingindo níveis de votação substancialmente acima da sua base social e política de apoio. Já não eram só lojistas ou farmacêuticos a votar no PRP, mas também operários cuja capacidade eleitoral resultava do saber ler e escrever.
Anarquistas intervencionistas e republicanos haviam-se aliás encontrado desde finais do século XIX também nos ambientes carbonários. Reprimidos violentamente na viragem do século por virtude da lei celerada de Fevereiro de 1896 reagem também pela acção clandestina, escudando-se em sociedades secretas, como a Carbonária dos anarquistas, que Heliodoro Salgado funda por esses anos de final do século.
De início, estes carbonários são operários, caixeiros e alguns intelectuais sublimados. Criam a Liga Progresso e Liberdade, o Grémio da Liberdade, cujo carácter para-legal permitia a polarização e o crescimento. A avaliar pela evolução das quotizações individuais é possível perceber o seu extraordinário crescimento, aumentando essas quotizações em 1905 mais de dez vezes em relação a 1896, ano da fundação.
Nos últimos anos do século, é recomendada a abertura da organização a todas as tendências políticas, com excepção de monárquicos e é nesse contexto que se dá a adesão dos republicanos radicais.
A Loja e a Carbonária dos anarquistas, entretanto reorganizada sob o nome de Carbonária Lusitana, acabarão hegemonizados pelos republicanos radicais, com os anarquistas remetidos a uma posição secundária. A repressão policial sobre esta organização vai ocorrer no rescaldo dos rebentamentos de bombas da Rua do Carrião e na escada de um prédio na zona da Estrela, em Lisboa, em 1907, o que levará igualmente ao desmantelamento da Loja Obreiros do Futuro.
O que restou desta organizações transferir-se-á para a Carbonária Portuguesa, criada paralelamente, também no final do século, na herança da Carbonária Académica, com Luz de Almeida, entre outros e cujo papel destacado nas jornadas de Outubro de 1910 é conhecido.
Alfredo da Costa, o regicida de Casével, empregado de comércio teria, como Aquilino Ribeiro, ligações a esta rede orgânica e, por extensão aos anarquistas intervencionistas. Como dizia:
“Sou pelas greves como sou por todos os métodos de resistência utilizados pelos fracos, pelos oprimidos, em defesa dos seus interesses”, esclarecendo que “o meu ódio maior, a minha mais viva repulsa, dirige-se aos patrões burgueses que nos exploram e que sem altivez servimos”2
Esta porosidade entre republicanos e anarquistas, entre diferentes sensibilidades intervencionistas, entre organizações semi-legais e ilegais, no seio de múltiplos jornais anarquistas e sindicalistas criou um caldo denso que nunca deixou de ter no movimento social expressão privilegiada.
As 173 greves ocorridas em 1909, ano em que é registado maior número antes da República, assim como a crescente radicalização que agravava o processo de diferenciação entre socialistas e anarquistas no movimento sindical, aliás bem patente no Congresso operário de 1909, mostram bem como a instabilidade social, o desejo de melhorar a vida, constituiu um factor favorável à própria revolução republicana.
Este “despertar dos famintos”, que os anarquistas se encarregaram de ampliar e enquadrar no dealbar do século está, por isso, indissociavelmente ligado, por múltiplos poros e canais de comunicação, ao processo de desagregação e queda da Monarquia, mesmo que distintamente encarados.
1 Cit. por Edgar Rodrigues, O despertar operário em Portugal 1834-1911, Lisboa, Sementeira, 1980, p. 197
2 Cit.por Carlos da Fonseca, Para uma análise do movimento libertário e da sua história, Lisboa, Antígona, 1988, p. 24