Redol, de Vila Franca a Lisboa e de Glória a Gaibéus

Gaibéus marcava o início do percurso de Alves Redol como escritor. No entanto, a sua publicação era, ao mesmo tempo, ponto de chegada e ponto de partida. Texto de João Madeira.

24 de fevereiro 2012 - 15:41
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Alves Redol, regressado de África à sua Vila Franca de origem, onde estivera como jovem emigrado entre 1928 e 1931, está dois anos depois a trabalhar na Procuradoria Geral dos Municípios, em Lisboa.

Passa assim a deslocar-se diariamente a Lisboa, no comboio da 6 da manhã, aproveitando para escrever onde e sempre que podia, colaborando no Mensageiro do Ribatejo, no Notícias Ilustrado, no Goal ou proferindo conferências e palestras para que ia sendo convidado.

A sua permanência em Lisboa permite-lhe alargar contactos, horizontes, aceder mais diretamente aos filmes que se estreavam, aos livros que acabavam de ser editados.

Casa-se em 1936, continuando a residir em Vila Franca. A sua casa passa a ser frequentada pelos amigos, no escritório pontificava um grande retrato de Máximo Gorki, o escritor russo que tanto admirava. Era uma espécie de tertúlia, onde se discutiam as obras que consolidarão o travejamento ideológico deste grupo – o ABC do Comunismo de Nicolai Bukharin, como que uma cartilha de iniciação ao marxismo-leninismo ou A Arte e a Vida Social, de Georgi Plekhanov, que tanto o influenciará.

Será aliás em Junho desse ano de 1936 que profere uma conferência sobre Arte no Grémio Artístico Vilafranquense. Redol segue de perto o texto de Plekhanov, tendo em conta a grande evolução que do ponto de vista artístico vinha ocorrendo na União Soviética, a partir do Congresso dos Escritores de 1934. Critica o futurismo, como corrente artística decadente. Critica a arte pela arte, revelando-se bastante informado no modo incisivo como se refere às correntes pictóricas não-figurativas, como o cubismo ou o neo-impressionismo.

Na conferência cita, além de Plekhanov, Bukharin, Henri Barbusse e Romain Rolland, muito influentes no veio marxista que alimentou a jovem intelectualidade portuguesa, em que Redol, nos seus 25 anos, se integrava.

A demarcação, ainda que não explícita, dos modernistas da Presença é insinuada, defendendo uma arte interventiva, socialmente empenhada, numa aproximação vigorosa aos cânones do realismo socialista tal como haviam sido codificados nesse congresso de 1934.

A obra de Plekhanov, é conhecida no país desde início dos anos 30, parcialmente editada em O Reducto, jornal sindical legal de influência comunista, está patente no semanário Gleba, de 1934 ou na conferência sobre A Arte e a Vida Social, que Vasco Magalhães-Vilhena profere em 1935.

Há, desde início dos anos 30, como que um dispositivo de jornais e revistas legais, que coexistem e se sucedem, como O Reducto, Liberdade, Globo, O Diabo, Gleba, que, com uma rede de circulação discreta de livros marxistas em língua espanhola ou de origem brasileira alimentam doutrinariamente pequenos grupos, formais e informais, que se multiplicam pelo país.

São grupos de intenção mais ou menos política, frequentemente cultural, ao mesmo tempo que, para além das formações políticas e sindicais, como o Partido Comunista, a CGT anarquista ou o já decadente Partido Socialista (Secção Portuguesa da Internacional Operária), começam a surgir novos agrupamentos, como a Renovação Democrática, de existência efémera, mas a expressar o processo de radicalização de sectores da pequena burguesia urbana, designadamente estudantes, profissionais liberais e intelectuais.

A par ainda, multiplicam-se, ou ganham alento acrescido, fortemente tocadas pela situação política nacional e internacional, organizações como o SVI, Socorro Vermelho Internacional ou a LPCGF, Liga Portuguesa Contra a Guerra e o Fascismo, dinamizada por Bento de Jesus Caraça e com contactos com organizações semelhantes criadas em França sob influência do PCF.

A acção de Bento Caraça foi fundamental, não só na articulação destes sectores, como na produção de textos de referência, como foi a Conferência que proferiu, ainda em 1933, a convite da União Cultural Mocidade Livre, intitulada “A Cultura Integral do Indivíduo”, na sequência aliás de outras importantes intervenções e escritos, em particular através da Universidade Popular Portuguesa.

Componente informal de todo este vasto e multiforme processo é o chamado grupo neo-realista de Vila Franca, com Dias Lourenço, Bona da Silva, Garcez da Silva ou Alves Redol entre os principais entusiastas, este em contacto ou com maior acesso, por trabalhar em Lisboa, aos jornais, grupos e tertúlias da cidade, como a do Café Madrid, frequentada, além de Redol, por Jorge Domingues, Paulo Crato, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca ou Piteira Santos.

No grupo neo-realista de Vila Franca, de que Redol era o principal dinamizador, como noutros grupos de província, predominava, contudo, o autodidactismo, em demarcação com o conteúdo livresco tutelado e divorciado da vida e da realidade. A autoformação fazia-se de modo solidário, circulando livros, emprestados uns aos outros, discutidos em conjunto, em função de sensibilidades, interesses, estádios de desenvolvimento intelectual, político, ideológico. Estava-se longe de um grupo composto por jovens licenciados ou de frequência universitária, como em boa medida sucedia em Lisboa ou em Coimbra. Frequência escolar sim, mas que não ultrapassava o curso industrial ou de contabilidade e pouco mais.

Em 1934 havia-se fundado em Lisboa o semanário O Diabo. Era uma iniciativa em clara confrontação com o regime. Foi fundado por Artur Inez, jornalista do República, que se havia envolvido em curta mas azeda polémica com António Ferro no ano anterior. Na sua fase inicial, foi uma tribuna republicana, que o ritmo a que endurecia a situação interna e o ritmo a que se radicalizavam novos sectores sociais fez desajustar-se no tempo e cair num impasse, pois estava longe de ser apenas a questão da República e do seu resgate que estavam em causa.

A nova direcção de Ferreira de Castro, a partir de Setembro de 1935, pouco durou, bem como a de Rodrigues Lapa, que aceita o cargo pouco depois de ter sido expulso da Faculdade de Letras de Lisboa. Este, porém, como director, não hesita em explicitar que a feição literária do semanário não deve valorizar a literatura apenas como “avara fruição da beleza”, mas também como “poderosa força de influição (…) moralmente útil”, assumindo-se como espaço plural à esquerda – a cultura ao serviço da liberdade e da dignidade humana.

Como escrevia Lapa evocando nas suas páginas o 2º aniversário do semanário, até se podia, e devia, pugnar para “edificar de novo uma República que a todos desse o pão de cada dia, e a todos iluminasse de preciosos bens do espírito”. É nesta fase precisamente que Alves Redol começa a colaborar em O Diabo. A escrita do jovem desperta a atenção de Rodrigues Lapa. O prestigiado filólogo, aconselha-o a estudar o Ribatejo, as suas características, o trabalho e a língua, as festas e tradições.

Dessa conversa e desse contacto, Redol não hesita em dizer que teve para si tanta importância como a sua passagem por Angola, tais os horizontes e perspectivas que lhe abriu.

A sua colaboração em O Diabo é esparsa, com expressão designadamente na série de crónicas que publica na rubrica “De Sol a Sol”, mas suficiente para evidenciar o seu interesse e o seu envolvimento num projecto que ultrapassava bastante os limites do grupo de Vila Franca, embora no qual se reflectisse.

Daí as dezenas de jornais que, regularmente, todas as sextas-feiras, trazia de Lisboa para Vila Franca, para vender ou simplesmente distribuir aos que não tinham possibilidade de os comprar. E de Vila Franca surgem novas colaborações – Dias Lourenço, Bona da Silva, Garcez, Rodrigues Faria ou Arquimedes da Silva Santos.

O jornal vai-se afirmando como parte maior de uma rede que se aproxima a um ideário comum, ainda que, naquela conjuntura, polarizasse informalmente diferenciados sectores oposicionistas – comunistas e simpatizantes do comunismo, libertários, republicanos radicais, socialistas.

Dadas as vicissitudes do tempo, com o espectro da censura e da polícia, a frente cultural adquiria particular relevo, aproveitando o mais possível os interstícios da barreira exercida pela Censura.

O Diabo, tal como Sol Nascente, que surgira em Janeiro de 1937 desempenhariam importante papel na estruturação de um novo movimento cultural, fortemente politizado, intervindo em torno da crítica, do ensaísmo e da literatura.

Mas é também o tempo das primeiras polémicas, travadas por este grupo aguerrido, que se reflectiam em O Diabo, mesmo que aflorando e esgrimindo-se noutros jornais e publicações, como a que Cunhal trava com José Régio sobre a função social da arte.

Neste processo, estes semanários evoluem. Através deles afirma-se uma nova corrente literária, directamente extraída do realismo socialista, adaptado às características de um país por industrializar, profundamente rural, com uma pequena burguesia débil e, principalmente, condicionado com o ferrete da ditadura.

Joaquim Namorado, nas páginas de O Diabo, designa-a de neo-realista, para evitar a formalização de realismo socialista, em que efectivamente pensava, do mesmo modo que, nesta imprensa ainda legal, ao referirem-se ao comunismo, é de um neo-humanismo que falam. E é como neo-realismo que ficará doravante conhecida e reconhecida, cuja ressonância e simbolismo a ultrapassa largamente, tornando-se cultura política marxista, mesmo que interpretada e vivida em relativa diversidade.

Em 1936-37, a guerra civil de Espanha teria uma influência avassaladora neste grupo de jovens, propagando-se pelo país. Tinha-se a consciência de que aqui ao lado, na Península, se travava um violento combate entre fascismo e democracia e se decidia o futuro próximo de uma Europa onde se multiplicavam os prenúncios de uma nova guerra.

Internamente, nos próprios termos em que a questão era colocada, percebia-se que a vitória do governo da Frente Popular seria a derrota e a queda de Salazar, por isso o coração destes jovens batia do lado da frente Popular, vibrava com cada avanço e sofria com cada derrota e cada recuo nas frentes de batalha.

Os seus olhos estavam também postos no governo da Frente Popular francesa, com a sua política social avançada e com as realidades culturais aí existentes, como as Casas de Cultura, onde Fernando Lopes Graça trabalhara.

Em O Diabo, a crise de direcção instala-se com a saída de Rodrigues Lapa e com a inoperância de Brás Burity e Adolfo Barbosa, que lhe sucederam. A sua publicação suspende-se face a este quadro adverso, no que vai ser a oportunidade para o grupo de colaboradores, que frequenta a tertúlia do café Portugal, tomar conta do jornal. É o caso de Jorge Domingues ou Mário Dionísio.

Propõem-se, junto de Virgílio Horácio da Cunha, o seu proprietário, relançar o semanário e dinamizá-lo. A direcção do jornal é entregue a Guilherme Morgado. É nesta altura, 1937-39, que as colaborações de elementos deste grupo se multiplicam. Oriundos da pequena burguesia, com percursos escolares e experiências de vida diferenciados passam a colaborar Fernando Piteira Santos, Frederico Alves, Manuel Filipe, Cansado Gonçalves, mais velho e do CC do PCP, Manuel Campos Lima, Fernando Pinto Loureiro, o próprio Álvaro Cunhal, então já dirigente das Juventudes Comunistas ou Manuel da Fonseca. Eram ensaístas, críticos, publicistas, escritores, pintores, poetas.

A sua redacção constitui ela própria uma tertúlia, por onde passavam redactores e colaboradores, mas também amigos, muitos, uns trazidos pelos outros, pelos fins de tarde, à procura de notícias novas, para conversar, discutir. Redol, era um deles. Que depois de largar passava o trabalho passava pelo semanário e por aí se deixava ficar num envolvimento cúmplice, solidário, entre camaradas, antes de regressar a Vila Franca, por vezes já noite fechada.

O Pacto germano-soviético, à boca da 2ª guerra mundial, suscita no debate interno fortes contradições e perplexidades. Guilherme Morgado acaba por se demitir em divergência com a maioria da redacção e dos colaboradores mais próximos.

Cândida Ventura, então jovem estudante da Faculdade de Letras de Lisboa, recorda “que estávamos na redacção de O Diabo quando Alves Redol entra alarmado, depois de ter abandonado o seu emprego, lançando os papéis ao ar, numa manifestação de revolta. Precisava da companhia de amigos e de palavras que o ajudassem a compreender um tal «pacto». Mas nós só tínhamos a grande amizade por Alves Redol. Faltavam-nos as palavras de «explicação» que ele e nós precisávamos”.

Já no ano anterior, quando, no terceiro dos chamados processos de Moscovo, Nicolai Bukharin, que tanta importância tivera na sua formação marxista recente, é executado a mando de Estaline, Redol ficara fortemente perturbado. Colocam-se-lhe interrogações e dúvidas que só a vivência concreta e o combate contra o fascismo em Portugal permitiram superar, mesmo que o abalo dessa dúvida persistisse duradouramente.

Até o jornal ser proibido pela censura em 1940, a direcção de O Diabo é entregue a Manuel Campos Lima, que desenvolve um trabalho abnegado. É a fase mais avançada do semanário, em cujo cabeçalho o vermelho já havia aliás substituído o verde garrafa inicial. As suas páginas abrem-se à publicação de textos que reflectem o posicionamento do movimento comunista face à situação internacional de eclosão do segundo conflito mundial.

É nesse contexto que Álvaro Cunhal, publica em Março e Abril de 1940 os artigos “Nem Siegfried nem Maginot” e a série de textos intitulados “Ricochete”.

O PCP atravessa nesta fase momentos particularmente difíceis. Os efeitos devastadores da repressão, a crise de direcção, as suspeitas de infiltração policial, deixam o partido praticamente isolado, muito enfraquecido. O seu aparelho de imprensa havia sido inclusivamente desmantelado nesse ano. A publicação do Avante! é suspensa.

De algum modo, O Diabo desempenhava a função de um órgão legal, através do qual, e sem que perdesse completamente a sua feição cultural, se difundiam consignas do partido e se procuravam manter agregados os núcleos de colaboradores e leitores..

Pelo endurecimento do regime, numa conjuntura internacional que lhe era favorável, e também pela natureza de alguns dos artigos publicados, a Censura, em Dezembro desse ano, proíbe O Diabo, como já antes, em Abril, havia proibido o Sol Nascente.

No grupo neo-realista de Vila Franca, as preocupações de intervenção cultural mantêm-se, tal como noutros que efervesceram pelo país, a que juntam outros mais jovens, como Arquimedes da Silva Santos ou Mário Rodrigues Faria.

Se as tertúlias de Vila Franca, as colectividades, como o Sport Lisboa e Vila Franca e jornais como o Mensageiro do Ribatejo criavam o ambiente local para que o grupo germinasse, se desenvolvesse, polarizando sensibilidades e vontades, era o ambiente mais geral, o conhecimento e o contacto com novos grupos que permitia adquirir uma dimensão e um sentido muito mais vastos, alargando-se a participação a outros jornais e revistas.

Em 1939, em O Diabo, como também no Sol Nascente, sistematizara-se uma espécie de programa de acção para todo este movimento. Para Manuel Filipe, era fundamental que a cultura fosse um instrumento de libertação, trabalhasse com vista a horizontes de mudança, escorada em sólidos e bem fundamentados princípios teóricos e doutrinários. Ao intelectual cabia, assim, a missão de mergulhar nas massas para consciencializá-las.

Também em O Diabo, Fernando Pinto Loureiro, recorrendo à expressão atribuída a Staline de que os intelectuais são “engenheiros de almas”, define as suas tarefas – aos escritores cabe fazer o inquérito à sociedade portuguesa e trazer à literatura os problemas do povo; aos poetas cumpre cantar os hinos dos novos tempos que se anunciam; aos ensaístas e aos críticos importa combaterem o idealismo e afirmarem os novos valores; aos novos historiadores escreverem a história do povo e dos seus aliados; aos jornalistas trazer ao conhecimento a realidade portuguesa tal como ela é; aos tradutores possibilitarem a divulgação das grandes obras vivas publicadas noutros países e noutras línguas.

Em Vila Franca é em boa medida este programa que continua a ser informalmente aplicado, resultado mais de um feixe de vontades que de uma acção planificada.

Redol prossegue a colaboração no Mensageiro do Ribatejo, que edita sob sua responsabilidade uma Página Literária. Também no Sport Lisboa e Vila Franca, como noutras colectividades e agremiações, a actividade é intensificada com conferências, cursos nocturnos, saraus culturais, dinamização das bibliotecas das colectividades. A ligação a Soeiro Pereira Gomes vem deste período.

Soeiro, chefe de escritório da Cimento Tejo, desenvolvia em Alhandra uma actividade semelhante, empenhado ma construção de uma piscina para os trabalhadores da fábrica e suas famílias. Colabora activamente no Alhandra Sporting Clube ou na Sociedade Euterpe Alhandrense, dinamizando designadamente a formação de bibliotecas.

É neste contexto que Redol lhe escreve, já em 1939, propondo-lhe colaboração na realização de um sarau sobre arte em Alhandra, forma de dinamizar a vida cultural e, ao mesmo tempo, aproximar aquela localidade a Vila Franca, tradicionalmente rivais.

A conversa de António Alves Redol com Rodrigues Lapa, entre finais de 1936 ou inícios do seguinte, viram-no para o Ribatejo. Percorre as vastas lezírias, perscruta rios e ribeiras, salta de uma a outra margem do Tejo, arroja-se às faldas calcárias das serras de Aire, Candeeiros e Montejunto, irrompe pelas terras de montado já coladas aos campos do sul. Contacta as gentes, os seus modos de vida e de trabalho, as suas expressões culturais, tradições, crenças, hábitos, o canto e a música, a poesia popular.

No seu périplo pelo Ribatejo, numa visita a um dos muitos campos de arroz que cresciam nas grandes várzeas inundadas, em que Rodrigues Lapa também participa, “descobrem” Glória do Ribatejo, aldeia sumida entre Marinhais e Coruche, que lhes é revelada na originalidade das suas gentes e dos seus modos de visa. Aguçada a curiosidade, aproveita as férias e passa quase duas semanas seguidas do verão de 1938 inquirindo, recolhendo, fotografando naquele microcosmos escolhido como objecto de trabalho e de escrita.

Tudo lhe interessa nessa comunidade rural. O seu trabalho é o de um etnógrafo. Descreve instrumentos, artefactos, edifícios, fornos, associa-os ao trabalho concreto, à sua função económica e ao respectivo modo social de uso. Resgata costumes e tradições, atém-se às festas e às crenças; não deixa de fora o vestuário ou o cancioneiro, os bordados ou as danças.

O estudo sobre Glória do Ribatejo é publicado ainda nesse ano.

A juventude literária de Alves Redol está em boa medida reflectida nesta que foi a sua primeira obra, reflectindo o entusiasmo colocado na concretização de uma intenção programática, que a aldeia de Glória do Ribatejo vem possibilitar.

Nesse sentido, enleiam-se em tensão a dimensão etnográfica e a escrita “militante”. Não surpreende por isso que Redol nunca assuma plenamente a obra nem como etnográfica nem como estrita obra literária.

Não sendo um etnógrafo por formação abraça no entanto aquela aldeia, que observa e analisa, mas onde também se envolve, se compromete com os homens e as mulheres com quem contacta, de cujas dores e de cujas alegrias se apercebe e que quer tomar como suas.

A intenção etnográfica de Redol, desempenha uma função como que instrumental para chegar mais além, para escrever sobre o povo, sobre os de baixo. O seu estudo é uma forma de resgate a um desconhecimento socialmente desvalorizante.

No fundo, é a necessidade de concretizar intenções que vinham sendo laboriosamente tecidas no próprio processo de afirmação de uma cultura nova, politicamente empenhada e com capacidade de expressão aos mais variados níveis e domínios, como sistematizarão não muito depois Manuel Filipe, Piteira Santos ou Fernando Pinto Loureiro nas páginas de O Diabo e de Sol Nascente.

É aliás na redacção de O Diabo que encontrará um crítico literário latino-americano, com quem conversa diversas vezes, que se interessa pelas suas colaborações na imprensa e pela escrita de Glória, que tem em curso. Porém, mais do que com o pendor etnográfico, entusiasmam-no as potencialidades da escrita de Redol, incentivando-o a escrever obra de maior fôlego e de mais nítido recorte literário, um romance.

Redol está como que numa encruzilhada. Esse era afinal o seu grande sonho, por mais que ponderasse das capacidades para tal empresa, por mais que o fascinasse e o envolvesse o estudo e as pesquisas sobre a História e a Etnografia do Ribatejo. Em longas noites de insónia, revolve-se com o desafio, pensa numa novela, mas um romance…

É pois uma novela que, por Maio de 1938, ainda a braços com Glória, se abalança a escrever, aproveitando as viagens diárias entre Vila Franca e Lisboa oi os tempos livres de que dispõe. Chama-lhe Cio e baseia-se num camponês que conhecia bem, alvoroçado com as moças e mulheres, que lhe atiçavam o desejo. Aproveitando a feição generosa que a primavera sempre trazia à sua escrita, passadas semanas, quando um bom volume de folhas se enchiam com a letra miúda, quis ver a quanto poderiam corresponder em letra de forma, que estima em 72 folhas de livro impresso. É tomado por um entusiasmo enorme. Ganhara a batalha da confiança. Era capaz de escrever mais do que contos e novelas breves para publicação nas páginas da imprensa!

No dia seguinte, começa a escrita do seu primeiro romance, que seria Gaibéus. Tem matéria e ideias para isso. Cio, a novela que acabara suadamente de escrever, bem como outros contos e fragmentos originais serão aproveitados na empresa a que deita mãos.

Em Setembro, aproveita novo período de férias para subir o Tejo e passar uma temporada nas lavras de arroz do lavrador Henrique Honorato, nas terras da Casa Branca, pelas bandas da Azambuja, convivendo com os ranchos de trabalhadores rurais, realidade que de algum modo lhe era relativamente familiar da lezíria quase a perder de vista frente a Vila Franca.

Muito mais tarde, deste seu primeiro romance dirá: “Propus-me com Gaibéus criar um romance anti-assunto, ou, melhor, anti-história, sem personagens principais que só pedissem comparsia às outras. O tema nasce no colectivo de um rancho de ceifeiros migradores, acompanha-lhes os passos desde a chegada à partida da lezíria ribatejana, no drama simples e directo da sua condição, destaca um ou outro para apontar certos fios mais individualizados, mas logo os faz regressar à trama do grupo”.

À escrita convoca o resultado da sua observação nas lavras de Henrique Honorato, mas também um conhecimento que lhe vem das conversas, dos episódios, das atitudes que conhecia da passagem por Vila Franca dos ranchos de gaibéus que desciam das terras pobres e divididas do centro do país para alugarem a sua força em contratas de meses, entre as mondas e a ceifa do arroz.

É com o rigor da observação etnográfica que enquadra na trama narrativa toda a fase final do ciclo produtivo do arroz. Regista cuidadosamente expressões colhidas nos campos alagados, esboça objectos, anota as suas funções, cruza-as com as leituras feitas, escreve pequenos textos explicativos de situações, protagonistas, topónimos.

Durante semanas escreve sofregamente, a um ritmo duro, à mão, no verso de folhas de papel timbrado editadas pela Procuradoria onde trabalha, ocupando as horas de almoço ou, em sua casa, pelas noites e nos tempos que lhe sobram.

Gaibéus surge em Dezembro de 1939 também como edição de autor, conseguida à custa de economias e privações.

A sua edição vinha responder também aos detractores dos esforços e dos planos da jovem geração neo-realista. Aí estava a primeira obra de vulto da nova corrente, que nos últimos anos tanto tinha perorado em doutrinação nas páginas dos seus jornais e revistas, disseminando-se por uma rede de periódicos de província e não perdendo uma oportunidade de polemizar.

Não tardarão a surgir as primeiras críticas, que chegam da boa imprensa cultural, mas que chega também da grande imprensa, que não regateia elogios, como o Diário de Lisboa, que via Gaibéus a par com algumas obras de Ferreira de Castro, “o melhor expoente do romance moderno português”.

A PVDE, a polícia política, ensaia a apreensão do livro, mas sem grande insistência. O livro começava efectivamente a circular, chegando aos meios populares, sendo por vezes lido em voz alta para grupos de ceifeiros, atentamente escutado pelos que não sabiam ler. A primeira edição esgotar-se-á em meses.

Gaibéus marcava o início do percurso de Alves Redol como escritor. No entanto, a sua publicação era, ao mesmo tempo, ponto de chegada e ponto de partida, marco fundamental num percurso em que a criação artística era parte inseparável de uma actividade cultural e política intensa, junto do povo que quis tomar como objecto e destinatário da sua escrita, tomando partido, assumidamente.

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