É a 'antiga, mui gourmet, sem plano social e turística cidade do Porto' que resulta da visão comercial de Rui Moreira para o município: crie-se uma marca, promova-se a cidade enquanto produto, mercantilize-se o património histórico e o imaterial, encham-se as ruas de encenações 'disneylandizadas', alimentem-se dinâmicas culturais marcadas pelo efémero, negligencie-se a procura infrutífera de casas para habitar no centro da cidade e ignore-se o direito ao lugar. Há valores mais altos que se levantam.
Direito ao Porto. Ponto.
O mote do “direito à cidade”, outrora desenvolvido por Henri Lefebvre no contexto das celebrações do centenário de O Capital, de Marx, reclamava a apropriação coletiva do espaço urbano, que nasce e se desenvolve como fenómeno de classes. Na verdade, desde Lefebvre e na sua continuidade, ter direito à cidade passa pelo direito de todas as pessoas e de cada uma de intervir, transformar e construir esse espaço partilhado e coletivo a que chamamos cidade. Esta é uma das dimensões truncadas pelo predomínio do olhar turístico em que, subitamente, a cidade passa a definir-se unicamente a partir da adequação a um tipo de procura, que o mercado modela e que o turismo materializa, concretizando-se a partir da linguagem e da procura turística, que se converte na grande bitola organizadora dos espaços urbanos.
Foi subitamente que se normalizou a convivência de uma empobrecida rede de transportes públicos com a abundância de autocarros privados, pequenos comboios, barcos de recreio e até riquexós (imagens da distância entre quem transporta e quem se faz transportar) oferecidos à bolsa dos e das turistas. De repente, a oferta gastronómica adopta como fator concorrencial o exotismo gourmet e a vida noturna dificilmente sobrevive ao by night eufórico que pauta as passagens fugazes por uma cidade que se assemelha demasiadamente a um espaço de recreio. De forma abrupta o som do sino do comboinho turístico que faz uma qualquer tour pela cidade ou as cores berrantes e os slogans de convite para 'conhecer o Porto' invadem o dia a dia de quem trabalha na baixa. Num relance, o poder de compra turístico define as zonas “nobres”, as zonas “dignas” ou as áreas “lucrativas” que excluem as bolsas mais magras e as vivências de sempre.
O Mercado Bom Sucesso de mercado já só tem o nome. Na Rua das Flores as lojas centenárias com as suas montras e letterings históricos desaparecem ofuscados pelos anúncios vibrantes das marcas de cerveja ou dos reptos às visitas turísticas. Os comerciantes do Mercado do Bolhão são confinados a um canto de um Centro Comercial enquanto esperam por obras que não é certo garantirem o regresso ao lugar que sempre foi o seu. São relegados para uma periferia já de si fragilizada os e as vendedoras da Feira da Vandoma. Passou a ser habitual o fecho das mercearias da esquina e das lojas de sempre. E, enfim, vão-se vivendo aqui e ali sobressaltos sobre o desígnio reservado para outros espaços da cidade, como aconteceu com o recente susto sobre a conversão da estação de São Bento num espaço para a economia do franchising. Se não estamos com atenção, piscamos os olhos e o Palácio de Cristal passa a espaço de exploração de privados, mantendo nós, com sorte, o acesso aos jardins e à Biblioteca Municipal Almeida Garrett.
O Porto, na sua dinâmica e crescimento, tem sido exemplo deste fenómeno de turistificação unidimensional. A sua história política recente contribui largamente para o modo acrítico, e até celebratório, com que é acolhida esta transformação. Dificilmente podemos escapar a uma propensão natural de comparar o estado atual da governação da cidade com o cinzentismo do pontificado de Rui Rio e o Porto desértico onde nada se passava para lá das corridas de carrinhos e dos aviõezinhos patrocinados por uma bebida qualquer. Este falacioso exercício de paralelo leva-nos a uma ilusão de cidade festiva e animada que desarma críticas e esvazia alternativas, ainda que para os autóctones as possibilidades oscilem entre compor figurativamente o cenário disposto para turista ver e fotografar, ou confinar-se à invisibilidade das periferias, que se definem como tal enquanto não são turisticamente elegíveis.
Ninguém vive num postal ilustrado.
Imagine-se uma ponte, uma linha de casas velhas ao longo da margem do rio e, entre as casas velhas, um prédio com painéis solares, materiais modernos e acabamentos de luxo. Imagine-se, não muito tempo depois, o mesmo sítio, agora com menos casas velhas – apenas uma ou outra! –, mas com mais prédios modernos, com painéis solares e acabamentos de luxo. As casas antigas, a acompanhar o rio, já não se veem senão em imitação e as pessoas já não moram lá. As novas casas para onde foram estão longe da vista e das vistas, que postais ilustrados são para passear, não para se viver.
Paralelamente, as antigas redes de apoio, proporcionadas pelas próprias relações de vizinhança, dão lugar a formas concorrenciais de relação, alimentadas pela ilusão fugaz da iniciativa privada e do empreendedorismo. É assim que, também no Porto, o arrendamento dá lugar ao “Airbnb”, trocando arrendatários por turistas e moradores ou moradoras por prestadores de serviços.
Também aqui a turistificação é uma parcela significativa do processo excludente da gentrificação, onde a cidade se transforma em zona tomada pelo capitalismo predatório e colonizada pelo interesse exclusivo das clientelas do turismo. Sob este prisma, encontramos os mais agressivos mecanismos neoliberais, em que a segregação das classes populares é docilizada pela ressignificação de palavras como “reabilitação” ou “requalificação”. Palavras dimensionadas apenas pelo lucro, mas capazes de gerar rendas generosas e muito trabalho precário.
No Porto, esta realidade implica viver entre a consternação e a expetativa. Consternação em face da perda dos espaços e das vivências de sempre, da fragilidade da gestão de património e da política cultural (que é diferente de programação cultural) ou da ainda ausente resposta às situações de exclusão e de pobreza que se vivem na cidade. Expetativa em face do potencial da oportunidade, da putativa multiplicação de possibilidades de sobrevivência ou da eventual perspectiva de um horizonte para lá do qual se adivinhe um porvir de alternativas sustentáveis para a cidade e para cada uma das pessoas que a habitam. Ou deveriam habitar.
A urgência da construção de alternativas.
Não é fácil contrariar uma tendência mundial que, mesmo com os identificados exemplos de Barcelona, de Berlin, de Veneza ou mesmo de Lisboa, tendem a solidificar-se cada vez mais. Há que refletir, porém, nas mobilizações e nos movimentos nascidos das vítimas do conjunto de processos excludentes de um urbanismo modelado pelo capital, cuja força reivindicativa tem por raiz justamente os territórios urbanos. Organizados em torno do direito à habitação, da luta contra a especulação imobiliária e contra os despejos, contra a privatização dos serviços públicos, contra a precariedade do trabalho no setor e outras consequências da cidade neoliberal, que a turistificação prepara e concretiza, estes movimentos podem constituir uma base de reflexão e de ação a favor de uma outra organização das cidades e uma mais justa repartição dos espaços.
De Madrid ou de Barcelona, largamente possibilitadas pelos movimentos 15M, chegam-nos exemplos transformadores no que toca à gestão local, com processos de decisão participativos, remunicipalização de serviços contra a privatização, intensificação da relação política entre as pessoas e os órgãos de gestão municipal… Paralelamente, o reforço da solidariedade como parcela do “direito à cidade” surge-nos nos exemplos de apoio e acolhimento de refugiados/as, mostrando que uma cidade não se esgota nos seus habitantes nativos. Curiosamente no Porto, a par de toda a narrativa da cidade global e aberta ao mundo, a Assembleia Municipal rejeitou a proposta de esta ser também uma cidade acolhedora de refugiados.
Aqui também a luta é anti capitalista e interseccional, no sentido de realçar e intensificar experiências contra-hegemónicas, capazes de provocar brechas na ilusão fatalista de que não há alternativas à cidade-mercado, tarefa a assumir em solo urbano, de forma a garantir cidades presentes e futuras de todos e de todas e para todos e para todas. Para turistas inclusive, que o turismo vive melhor e com mais longevidade numa cidade que a ele não se resume.
Susana Constante Pereira - Técnica de educação e intervenção social. Autarca do Porto do Bloco de Esquerda.
Hugo Monteiro - Professor e ativista.