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Para onde caminha a Lisboa cultural?

A ideia de uma cidade que se reinventa para o exterior, fazendo-se pouco atenta às subtilezas de um tempo presente de necessidades e quotidianos sociais, bem como de que nem sempre se faz cuidadosa das matérias da sua herança cultural, faz questionar o que se quer como futuro para a cidade. Por Marluci Menezes.
Foto de Paulete Matos.

Lisboa mudou: de cidade que, a par do seu rico património histórico e cultural, tendia a ser identificada também pelos problemas de perda e envelhecimento da sua população, desvitalização socio-económica e degradação do seu edificado, mais recentemente, volta a ser tema público por motivos de uma outra dinâmica social e urbana. Mais animada, com mais e mais pessoas de falas e jeitos diferentes, obras e mais obras, com muitos eventos culturais, Lisboa e, sobretudo, o seu centro histórico, parece viver um tempo de férias, uma cidade time out.

Assente num marketing urbano que liga-se às inovações de uma economia tida como cultural e criativa, esta nova dinâmica urbana realiza-se num ideal de revitalização socio-económica focada no sector turístico, na requalificação de espaços públicos, numa reconversão funcional do seu património e em lógicas de atractabilidade e oferta habitacional orientadas para segmentos sociais de média/alta renda.

Uma dinâmica urbana que não é exclusiva a Lisboa e, como sabemos, afecta não só outras cidades do País, como muitas outras cidades do mundo contemporâneo. É também incontestável para Lisboa, bem como para o País, que estas novas dinâmicas são, em potencial, activos revigorantes da economia nacional.

Todavia, a ideia de uma cidade que se reinventa para o exterior, fazendo-se pouco atenta às subtilezas de um tempo presente de necessidades e quotidianos sociais, bem como de que nem sempre se faz cuidadosa das matérias da sua herança cultural, faz questionar o que se quer como futuro para a cidade. O que, em termos de uma estratégia pública do fazer urbano, traz à tona as tão prementes questões do urbanismo e do planeamento urbano.

Isto porque, no âmbito do plano, da política e da intervenção urbana, se observa uma instrumentalização da cultura que, a par de uma significativa alteração do seu papel no quadro mais amplo das questões urbanas, expõe uma distorção na sua relação com o património, a cidadania e o território. Assim, os processos de culturalização do planeamento e da cidade, intervenções urbano-culturais ou de urbanismo cenográfico, não são imunes aos riscos que a estetização do planeamento pode ter na invenção de uma cidadania contemplativa e esvaziada, como se os conflitos, as desigualdades e a segregação deixassem de existir nos espaços que, pouco a pouco, se tornam mais sofisticados, porque involucrados por uma ‘aura cultural’. Muito mais do que o instrumentalizar da cultura como meio de transformação urbana, urge (re)inventar uma cultura de planeamento urbano que saiba restituir o apreço público da cidade.

O que, evidencia a importância de uma cultura da cidade num sentido mais lato: se é que a integração social e urbana de todos os habitantes deve ser uma condição regular das políticas urbanas, importa considerar alternativas que permitam suprir as necessidades daqueles que, face à precariedade socio-económica e monetária, não têm como ter acesso ao mercado que institui a oferta de serviços e infraestruturas. Estas preocupações assentam numa perspetiva de desenvolvimento de abordagens e iniciativas que ressaltam as questões ligadas à justiça social e à justiça espacial.

Importa, assim, cuidar da sustentabilidade urbana enquanto lógica assente em três pilares – sociedade, ambiente e economia. Aí reside a possibilidade de estabelecer-se uma mediação entre conservar e desenvolver, entre qualificar e promover cidadania através do direito à cidade. Isto porque, muito embora em Lisboa a cultura se tenha tornado num instrumento de intervenção urbana, a forma como vem sendo mobilizada nem sempre permite indiciar desenvolvimento social e urbano sustentável, nomeadamente quando dos eminentes riscos de patrimonialização, culturalização, turistificação e mercadorização da cidade, às custas de uma desqualificada periferização de quem nela não consegue viver. Isto é, mais do que preocupar-nos com a sustentabilidade cultural em si própria, urde inventar políticas e estratégias que contribuam para uma cultura de sustentabilidade urbana que, efetivamente, promova um desenvolvimento social e económico devidamente confirmado pela salvaguarda do património cultural e urbano da cidade.

 


 

*Marluci Menezes é Antropóloga, Investigadora dos temas da Cidade, Património e Cultura.

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