A guerra do imperialismo russo na Ucrânia não dá sinais de abrandar. Neste verão e outono, assistimos a duas ofensivas, a primeira da Ucrânia para libertar os seus territórios ocupados e uma contra-ofensiva da Rússia para se apoderar de mais território, que continua até hoje.
A Rússia tem meio milhão de soldados na linha da frente a defender a sua ocupação e precisará de mais para a ofensiva total que poderá começar na primavera.
Vladimir Putin e a classe dirigente russa estão determinados a levar esta guerra até ao fim. Putin deixou isso claro na sua sessão anual de perguntas e respostas "Linha Direta com Vladimir Putin", em 14 de dezembro, durante a qual passou várias horas a responder a perguntas cuidadosamente selecionadas da audiência.
Declarou que o objetivo da auto-proclamada operação militar especial continua a ser a chamada desnazificação e desmilitarização da Ucrânia. Isto significa que tenciona continuar a guerra até conseguir a mudança de regime na Ucrânia e a transformação da Ucrânia numa semi-colónia russa.
Para o conseguir, o seu regime está a tentar estabilizar a sociedade russa, suscitar conflitos políticos com os Estados Unidos e os países da NATO, legitimar o seu poder através das eleições presidenciais de março e mobilizar as tropas russas para uma nova ofensiva na primavera.
A estabilização da sociedade russa
O regime mobilizou-se numa intensa campanha para estabilizar a sociedade russa após a tentativa de golpe liderada por Evgeniy Prigozhin e o seu grupo Wagner no verão passado. Putin ultrapassou este grande desafio ao seu poder combinando a cenoura e o pau.
Propôs acordos para trazer os mercenários de Wagner de volta ao seio do regime. Alguns generais do exército próximos do Wagner foram presos. Quanto a Prigozhin, Putin mandou matá-lo em agosto, num ataque com mísseis que fez explodir o avião do senhor da guerra não muito longe de Moscovo.
De seguida, desmantelou o próprio grupo Wagner, integrando algumas partes no Ministério da Defesa russo e permitindo que outras fossem conservadas pelo filho de Prigozhin e por outras empresas militares privadas.
A continuação da existência destas empresas pode constituir um problema para o regime, sobretudo se a guerra correr mal. Pode levar a uma dissensão entre o Estado e as empresas sobre a estratégia e as táticas militares, o que poderia desestabilizar novamente o regime.
Por outro lado, o golpe de Prigozhin demonstrou a existência de uma dissidência oculta entre os oficiais do exército. Mas, para já, a estratégia de cooptação e repressão de Putin permitiu ultrapassar a crise provocada por Prigozhin.
Putin também conseguiu estabilizar a economia, pelo menos por enquanto. O regime de sanções do Ocidente não prejudicou a economia russa tanto quanto se esperava. O regime e as empresas do país encontraram várias formas de contornar as sanções.
Aumentaram o comércio e investimento através de Estados neutros, como os países da Ásia Central, a Turquia, os Emirados Árabes e muitos outros, particularmente no Sul. Estes países resistiram à pressão dos EUA para se conformarem ao regime de sanções.
Para além disso, as empresas petrolíferas estatais russas assinaram novos acordos de exportação com muitos países, incluindo a China, o que também ajudou a manter a economia em funcionamento. As sanções não mergulharam, portanto, a economia russa numa crise, nem impediram o Estado de continuar a guerra na Ucrânia.
Apesar da resiliência da economia russa, esta enfrenta uma série de problemas. Por exemplo, a inflação está a aumentar e a colocar sérias dificuldades económicas à maioria dos russos comuns.
O Banco Central russo reagiu aumentando as taxas de juro para controlar a inflação. Mas isso pode levar a um abrandamento da economia, a um aumento do desemprego e a um novo golpe para a classe trabalhadora.
Para manter a sua hegemonia sobre a população, Putin recorreu à repressão e à ideologia neo-fascista. Reprimiu quase todos os dissidentes de esquerda, especialmente os ativistas anti-guerra.
Ao mesmo tempo, tentou obter a aprovação do público apoiando-se no nacionalismo étnico russo e diabolizando todos os grupos que o ameaçam. Por exemplo, afirmou que os migrantes muçulmanos da Ásia Central para a Rússia estavam a ameaçar o equilíbrio étnico do país.
O chefe da Igreja Ortodoxa Russa, o Patriarca Kirill, ultrapassou Putin no que diz respeito à islamofobia. Num discurso recente, que poderia ter sido proferido por Trump ou Enoch Powell, alertou para a ameaça civilizacional que representam os muçulmanos e os migrantes em geral.
Se o regime e a Igreja utilizarem este nacionalismo étnico para consolidar a sua base, o tiro pode sair pela culatra. Este sectarismo poderia causar dissensões entre os cerca de 15 milhões de cidadãos muçulmanos do país, que representam 10% da população.
Putin lançou também uma intensa campanha para impor os chamados valores da família tradicional. Tem apontado as feministas e as pessoas LGBTQ como ameaças à sociedade russa.
O regime está prestes a impor uma proibição total do direito ao aborto, tendo-o recentemente proibido em clínicas privadas. Anunciou também a proibição total de grupos, de eventos e até de clubes noturnos LGBTQ.
Nesta fase, Putin conseguiu estabilizar a sociedade russa através da repressão e de campanhas ideológicas.
Conquistar a Ucrânia
Apoiando-se nessa estabilidade, ele quer intensificar a guerra na Ucrânia. O seu objetivo imediato é apoderar-se do resto da região do Donbass, que tem uma importância simbólica na imaginação imperial de Putin e nas suas justificações para a guerra.
A ofensiva, que provavelmente terá lugar na primavera, será levada a cabo por etapas. O objetivo é tomar Kharkiv, a segunda cidade da Ucrânia, e estabelecer uma nova frente no rio Dnipro.
O plano poderia consistir em dividir a Ucrânia em duas partes. Por um lado, a Rússia anexaria todo o território a leste do rio Dniepr. Depois, tentaria transformar o resto do país a oeste do rio num Estado neutro "desnazificado", ou seja, dependente da Rússia.
Mas este seria apenas um objetivo temporário. O Estado russo continua determinado a alargar o seu império ao resto do espaço pós-soviético.
Atiçar os conflitos no seio dos Estados Unidos e da NATO
Putin está a contar com a ascensão da direita nos EUA e na NATO para minar a oposição a si e ao seu expansionismo imperial. Durante a sessão de perguntas e respostas, Putin também sublinhou que o Ocidente está muito dividido relativamente à ajuda à Ucrânia.
Citou, nomeadamente o conflito entre os republicanos e a administração Biden sobre o programa de ajuda proposto para o país. Indicou clararamente que veria com bons olhos uma vitória dos republicanos, em particular de Trump, nas eleições presidenciais dos EUA, uma vez que a nova administração iria provavelmente reduzir ou mesmo suspender todo o apoio à Ucrânia e até retirar-se da NATO.
Também está a cortejar a extrema-direita noutros países da NATO. Atiça as tensões com a Finlândia, um novo membro do pacto. Seguindo o exemplo do Presidente Lukashenko da Bielorrússia, Putin acolheu migrantes do Iraque, Afeganistão, Líbia e outros países, encorajando-os depois a entrar na União Europeia através da fronteira finlandesa.
Está a fazer isto para provocar uma crise na política dominante e alimentar o crescimento da extrema-direita anti-migrante na Finlândia e na União Europeia em geral.
Espera que o seu crescimento e sucesso enfraqueçam a NATO a partir do seu interior. Por exemplo, os meios de comunicação social oficiais russos celebraram a recente vitória do político de extrema-direita Geert Wilders nas eleições holandesas, que concorreu com um programa islamófobo e anti-migrantes.
Por último, Putin está a tentar explorar a guerra brutal de Israel em Gaza em seu benefício contra os Estados Unidos e os seus aliados da NATO, que armaram e apoiaram Israel. Oficialmente, a Rússia apela a uma solução de dois Estados, apoia um cessar-fogo e a ajuda humanitária da ONU.
É claro que tudo isto é hipócrita. A Rússia está envolvida no mesmo tipo de guerra de anexação na Ucrânia que Israel está a travar em Gaza. E, nos bastidores, Putin mantém relações políticas, diplomáticas e económicas com Israel.
Mas, apesar disso, aproveita a terrível guerra de Israel para se reabilitar, nomeadamente no Sul, e para enfraquecer os Estados Unidos e a NATO. Espera que isso lhe dê mais espaço para prosseguir as suas próprias ambições imperialistas na Ucrânia e no resto da Europa de Leste e da Ásia Central.
Mobilização e recrutamento para a ofensiva da Primavera
O compromisso de Putin com este projeto irá forçá-lo a impor uma maior mobilização de tropas e possivelmente um recrutamento. Terá que recrutar centenas de milhares de pessoas para fortalecer o exército e conseguir novas conquistas. Isto poderia representar grandes problemas políticos para Putin. Ele não fará nada disto antes das eleições presidenciais russas em março. Ele e o resto do Estado querem manter um clima positivo na sociedade russa até esta data.
Depois das eleições, é muito provável que aumentem a mobilização para a frente. Atualmente, apenas cerca de 40% dos soldados russos na Ucrânia são profissionais, sendo os restantes "voluntários", ou seja, pessoas comuns que se juntaram ao exército para ganhar melhor a vida.
Os soldados ganham muito mais que os trabalhadores comuns. O salário médio oficial é de cerca de 600 dólares, mas a maioria das pessoas ganha cerca de 300 por mês. Nas forças armadas, por seu turno, os soldados podem ganhar entre 2.000 e 3.000 dólares por mês.
Para milhões de russos, especialmente nas cidades industriais da província, o exército é, portanto, um meio de escapar à pobreza. Isto explica o sucesso do alistamento dos chamados voluntários.
Na realidade, trata-se de um recrutamento destinado aos pobres. Mas o governo utiliza-o para redistribuir a riqueza e criar um grande sector da população que beneficia da guerra. É claro que muitos pagaram caro por isso, perdendo a saúde, membros e a sua vida.
A situação dos recrutados é e será totalmente diferente. Não são muito bem pagos e, ao contrário dos soldados profissionais, o seu tempo de serviço não é limitado. O recrutamento a já suscitou protestos, em particular por parte das famílias e entes queridos das pessoas forçadas ao serviço militar. Organizaram petições e até enviaram centenas de perguntas para o evento “Linha Direta” de Putin. É claro que todas essas questões foram deixadas de lado e não foram feitas. Isto mostra que há motivos para oposição a qualquer novo projeto. Provavelmente assumirá a forma de um protesto espontâneo e auto-organizado. E isto abriria caminho à criação de um movimento anti-guerra na Rússia.
Eleições falseadas para legitimar o regime
Mas tudo isto só se desenvolverá após as próximas eleições presidenciais. É claro que não será uma eleição genuína. Não haverá verdadeiras campanhas ou debates e o resultado está predeterminado. Putin vai ganhar.
Mas a eleição é, no entanto, importante para ele, para dar ao seu governo um ar de legitimidade e demonstrar o apoio popular a ele e à sua guerra. Os meios de comunicação do Kremlin já estão a prever os melhores resultados da sua carreira política.
As estimativas apontam para que cerca de 70% dos cidadãos compareçam às eleições e, entre eles, 80% votarão provavelmente em Putin. É claro que não devemos confiar nestes números nem nos resultados das eleições.
Todo o processo se baseia na supressão de oposição genuína e na exclusão e detenção de dissidentes como Alexey Navalny [este artigo foi escrito antes da morte deste, nota da tradução]. É claro que haverá candidatos cuidadosamente controlados autorizados a concorrer para dar a aparência de democracia.
A votação propriamente dita decorrerá durante três dias, presencialmente e por via eletrónica. Ambas serão fortemente policiadas pelo Estado, sem qualquer controlo por parte de observadores independentes.
Todas as redes de monitorização eleitoral foram destruídas. Por exemplo, este verão, a maior rede, a Voice, foi proibida e um dos seus principais organizadores foi preso.
Assim, estas eleições são o oposto de eleições livres, abertas e justas. De facto, são um meio de o Estado coagir a população à obediência política.
A maioria das pessoas empregadas no sector público e nas empresas estatais será forçada a votar eletronicamente nos seus locais de trabalho. Se votarem dessa forma, todos os vossos dados pessoais serão acessíveis para o Estado.
Assim, tanto as autoridades do Estado como os patrões poderão controlar os votos e "corrigir" o resultado, se necessário. No entanto, os eleitores terão a ilusão de poder escolher.
Outros candidatos, cuidadosamente selecionados, serão autorizados a concorrer, provenientes de partidos da pseudo-oposição leal, como o Partido Comunista. Todos os candidatos autorizados a concorrer têm posições agressivas e favoráveis à guerra.
Não serão admitidos no boletim de voto quaisquer candidatos ou partidos genuinamente anti-guerra. Assim, não representam de facto qualquer desafio a Putin, nem exprimem qualquer sentimento anti-guerra. Vão concorrer uns contra os outros, dividindo os 20% de votos que não vão para Putin.
A oposição russa, que se encontra na clandestinidade ou no exílio, está a debater a forma de abordar as eleições. Os apoiantes de Navalny já apelaram ao voto em qualquer candidato que não seja Putin.
Não é uma estratégia má. Pelo menos, oferece às pessoas, que estão muito atomizadas e receosas, uma oportunidade de expressarem a sua oposição, mesmo que de forma distorcida.
Resistir à guerra e à fascização
As pessoas têm todas as razões para ter medo do regime. O regime esmagou qualquer expressão pública de dissidência relativamente à guerra e empurrou-a para a clandestinidade. Fez o mesmo com todo e qualquer grupo de ativistas, fossem de qualquer tipo fossem.
Isto faz parte da fascização do regime. Não se trata apenas de propaganda; está a tentar impor uma forma brutal de ditadura e mudar a sociedade de uma forma fundamental. A proibição da comunidade LGBT e as restrições ao direito ao aborto, a histeria contra os imigrantes e a censura rigorosa contra qualquer crítica ao regime têm como objetivo homogeneizar a sociedade e transformar a Rússia numa "civilização de Estado" fechada.
Nestas condições, a tarefa da esquerda internacional continua a ser a oposição ao imperialismo de Putin, a solidariedade com a resistência ucraniana, a oposição ao imperialismo ocidental e o apoio à luta na Rússia a partir de baixo contra o regime neofascista de Putin.
Ilya Budraitskis é o autor de Dissidents Among Dissidents: Ideology, Politics, and the Left in Post-Soviet Russia. Escreve regularmente sobre política, arte, cinema e filosofia para a revista e-flux, Open Democracy, Jacobin e outras publicações. Ensina na Escola de Ciências Sociais e Económicas de Moscovo e no Instituto de Arte Contemporânea de Moscovo.