Os Panama Papers, magnífico nome à Le Carré, abundam pelo número mas também pela distinção da lista dos utilizadores: estrelas de futebol, primeiro-ministro da Islândia e presidentes da Argentina, da Ucrânia e da Federação Russa (com eles, são 72 presidentes e ex-presidentes), gente do cinema, rei saudita e familiares de reis e governantes, tudo gente fina. Ainda não sabemos os valores e muitos dos detalhes picantes que vão transformar estes milhões de documentos em informação e indignação, mas sabemos que é uma gota de água no oceano: são só cerca de 200 mil empresas criadas por um escritório do Panamá (há paraísos fiscais muito mais impressionantes: um edifício nas ilhas Cayman que regista 50 mil; um apartamento no Funchal que regista duas mil; e os mais suculentos serão os que não são conhecidos).
Mas desconfiamos – ou sou só eu? – de uma coisa: o mais certo é isto não dar em nada. Pode haver umas demissões, umas explicações, uns constrangimentos, mas acabar os paraísos fiscais? Terminar com a criação de empresas anónimas? Perturbar o planeamento fiscal, ou seja, a fuga ao pagamento de impostos de cada país? Controlar a circulação de capitais, o princípio de toda a tentação? Combater o crime económico? Não pense nisso. Não acontecerá num país nem acontecerá à escala internacional, enquanto o mundo não der uma volta.
Levei anos no parlamento português a assistir a esta paródia: sempre que surge um escândalo financeiro e dinheiro escondido em offshores, ouvem-se vozes de fingida surpresa e até de comovida indignação, pois olha querem lá ver que os paraísos fiscais servem mesmo para não pagar impostos? Nos dias normais, nem pensar em admitir sequer que se fale deste assunto (quando houve uma comissão de inquérito sobre umas malfeitorias no BCP com paraísos fiscais, o PS, que então tinha maioria absoluta, entendeu que não havia forma mais diligente de proteger o segredo do que impedir que qualquer pessoa fosse convocada a depor, exceto aqueles que estavam fora do seu alcance por serem convocados pelos escassos poderes impositivos das esquerdas). Se, em contrapartida, surge um alarme na capa de um jornal, resolve-se o susto com uns gritos de oh da guarda, esperando que logo à noite jogue o Benfica e depressa fique tudo esquecido.
O certo é que não houve um único escândalo bancário que não envolvesse paraísos fiscais: o BPN, o BPP, o BCP, o BES, o BESA, agora o BANIF, em todos se registaram transações e figurantes que usaram empresas e contas offshore. E, caros leitores, registaram alguma mudança nas regras para as saídas de capital? Em dez anos desta farândola? Nada de nada. Já sabe qual é a desculpa: só podemos agir se os outros países amigos, e até o Butão e o Burkina Faso também impuserem regras ao capital, caso contrário estamos perdidos. Têm que ser todos em conjunto, todos ao mesmo tempo. Ou seja, nunca; a desculpa só não é perfeita porque tem sido usada demasiadas vezes.
A nível internacional, também não pense nessa aventura que seria impor regras à circulação de capitais pelos paraísos fiscais. Pois como, se são os Estados europeus quem organiza a maior parte desses paraísos fiscais, do Luxemburgo à Suíça e do Reino Unido aos outros países da União? E os paraísos fiscais servem justamente para isto, como se viu no ilustrativo caso do Luxemburgo: para captarem depósitos com a contrapartida de fugirem aos impostos (ou de esconderem o dinheiro sujo). O ex-primeiro ministro desta operação, Juncker, foi mesmo premiado e tornou-se o novo presidente da Comissão Europeia.
A União Europeia, aliás, regista oficialmente como “jurisdições não cooperantes”, ou seja, que não dão informação aos tribunais de outros países, Andorra, Guernsey (um território de Sua Majestade a Rainha Isabel II), o Liechtenstein e o Mónaco. Como ontem João Cravinho veio lembrar, a Diretiva sobre a Poupança, com que a União Europeia encheu o peito para mostrar que agora é que era e ia meter os paraísos fiscais na ordem, definiu desde logo exceções saborosas (os offshores têm que registar os juros mas não os dividendos, têm que o fazer em relação a pessoas mas não em relação a empresas e, além de tudo, a Áustria e o Luxemburgo têm um tratamento especial), que tornam a lei inútil e até prejudicial, pois só serve para ensinar o dinheiro a fugir. Assim vai o negócio da Europa.
Nos Estados Unidos, a concorrência vai ser forte: Devin Nunes, o presidente da comissão do Congresso norte-americano sobre tributação, declarou recentemente que o objetivo é que a “América seja o maior paraíso fiscal da história da humanidade”. O estado do Delaware já regista 945 mil empresas fictícias, é o grande paraíso fiscal dos EUA (The Economist, 22 Agosto 2015; 7 Novembro 2015; 20 Fevereiro 2016).
Paradoxalmente, nem sempre foi assim – pelo menos de conversa. George Bush declarou, na sequência imediata dos ataques de 11 de Setembro, que a sua prioridade era fechar os paraísos fiscais. Fechar, mesmo fechados. Pudera, sem eles Bin Laden nunca teria conseguido movimentar em segredo os fundos para a operação, nem esconder a sua fortuna para os efeitos que se conhecem. Não aconteceu nada. Barack Obama foi eleito garantindo que ia agir contra os paraísos fiscais e o seu exemplo sobre as Ilhas Cayman ficou famoso. Não aconteceu nada.
Os investigadores registam que pelo menos 8% da riqueza mundial estão escondidos em paraísos fiscais, e nada. Os criminologistas detetam que o tráfico e droga ou a corrupção não poderiam ter a sua dimensão atual sem os paraísos fiscais, e que importa a justiça. Não acontece nada.
Então porquê esperar que mais uma tropelia fiscal de Messi produza algum efeito que não seja na auto-estima de Ronaldo? Porquê esperar que a descoberta dos dinheiros de Putin ou da família do presidente chinês produza mais do que o discurso sobre a conspiração internacional contra os presidentes queridos do seu povo? Porquê pensar que o presidente ucraniano, menino-bonito da Nato, se incomode com este sarilho? Porquê esperar que o presidente da Argentina, milionário aventureiro, ache estranho este planeamento de fortuna? Porquê pensar que os políticos brasileiros que são indicados nesta lista, todos eles da frente anti-Dilma, se sentirão limitados por um segundo no seu movimento derrubista?
O mais provável é que não aconteça mesmo nada, que as leis continuem a proteger os paraísos fiscais e a liberdade de fuga de capitais. Entendamo-nos bem: a finança que move o mundo não desiste do seu poder.
Na próxima crise voltar-se-á a falar do escândalo. E assim sucessivamente.
Artigo de Francisco Louçã, publicado em blogues.publico.pt em 5 de abril de 2016