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Palavras que nos governam: o caso do "interesse nacional"
A fórmula "interesse nacional" tem ocupado a linha da frente das palavras que nos governam. A expressão é de uso recorrente por quem subscreve as medidas de austeridade implementadas ao longo do último ano. Para estes, o "interesse nacional" é quem mais ordena. Em seu nome justificam-se medidas tidas como as menos desejáveis pela população que habita o território do país por cujo interesse se pretende zelar.
O poder da fórmula "interesse nacional" é, porém, especialmente assinalável por fundamentar o próprio discurso de muitos dos actores políticos que têm combatido as medidas de austeridade. É o caso de quem aponta a defesa da soberania nacional como uma das primeiras razões para que combatamos as medidas de austeridade. De acordo com estes, a implementação de tais medidas exprime a subordinação de Portugal aos interesses de mercados internacionais e de países estrangeiros.
Esta crítica à economia de austeridade em nome do "interesse nacional" tem vindo a ser repetida pela actual direcção do PCP, mas também por personalidades como Carvalho da Silva ou Boaventura de Sousa Santos e até por partidos como o BE. Todas estas esquerdas tendem a alertar contra o que designam como um processo de imposição colonialista de uma agenda político-económica. Infelizmente, entre os críticos da economia de austeridade e da ingerência externa, poucos são os que têm abdicado de fazer apelo a um orgulho português.
As razões por que as esquerdas apostam no patriotismo são diversas e o espaço desta coluna não permite discutir o tema com a seriedade que ele merece, mas há um grito de alerta que daqui pode ser dirigido a todos os que se reconhecem nesse espaço político, como é, aliás, o meu próprio caso.
Os que defendem a possibilidade de um patriotismo de esquerda dizem, e com razão, que o patriotismo é permeável a ideologias diversas. Por exemplo, a fórmula "interesse nacional" não terá um e o mesmo conteúdo político quando invocada por Sócrates e Passos Coelho e quando reclamada por Jerónimo de Sousa, Carvalho da Silva ou Francisco Louçã. Assim sendo, dizem que o facto de as esquerdas recorrerem a um imaginário patriótico tem a vantagem de impedir que a pátria seja um tema exclusivamente embandeirado e capitalizado pelos políticos do centro ou da direita.
Há, porém, um efeito perverso desta nacionalização da esquerda que é raramente atendida pelos defensores de uma via patriótica para o socialismo: o de o patriotismo levar a que a esquerda se aproxime do centro e da direita, assim como da extrema-direita. Esta hipótese ganha razão de ser se concordarmos que a aposta da esquerda no patriotismo em parte repete o gesto táctico do centro e da direita na hora de lidarem com a extrema-direita. É deste gesto exemplo o facto de, no quadro da actual crise, governos europeus de centro e de direita justificarem o seu tímido apoio aos países europeus do Sul sugerindo que tal retracção é condição necessária para que, a nível interno, impeçam que uma parte do seu eleitorado seja atraído pelas forças da extrema-direita. Ou seja, aqueles governos fazem-se nacionalistas para não deixar que o nacionalismo fique nas mãos da extrema-direita, à semelhança da esquerda que se afirma patriótica para não deixar que o patriotismo seja monopólio do centro e da direita.
No meio desta infernal sequência, determinada entre outros factores por mercados eleitorais nacionalizados, o papel de uma esquerda que preze tanto a ideia de internacionalismo proletário como a de cosmopolitismo universal só poderá ser, à partida, recusar as regras do jogo. Para a esquerda, o problema económico inadiável é a desigualdade social no país e no mundo, e não a questão do crescimento da economia nacional. E o desafio político que nos mobiliza não é restaurar a soberania nacional, mas uma democracia ilimitada, que não se fica nem à porta da fábrica nem numa linha de fronteira.
José Neves, Historiador
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