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Crescimento e decrescimento
De Kuznets à cegonha Renata
Definir e caracterizar o que é “desenvolvimento”, “progresso” e “inovação” não é tarefa fácil nem pacífica, para mais num mundo onde as palavras verdes e sustentáveis tem sido relativizadas e apropriadas. Contudo podemos partir de um ponto de partida comum à esquerda: mais igualdade social, menos pobreza. A questão é se o crescimento da economia serve esse objectivo.
No mercado ninguém tem dúvidas. Quer se considere que uma economia com maior riqueza permite mais migalhas para as classes mais pobres, quer se considere que assim permita uma maior acumulação de capital, o crescimento é o caminho. Do capitalismo humanista ao hardcore, não se consideram alternativas. Mais, o crescimento é tido como um fenómeno que beneficia toda a sociedade, garantindo uma menor desigualdade. Esta teoria de Kuznets tem estado culturalmente tão enraizada que ainda hoje o recém-criado desenho animado português “cegonha Renata” a apregoa.
À esquerda o debate é mais complexo. Nas esquerdas - partidárias, políticas, sindicais, sociais, e ambientais - as respostas tem sido várias e muitas vezes contraditórias. Da análise à proposta há quem defenda o produtivismo, o desenvolvimento sustentável, o desenvolvimento qualitativo ou o decrescimento. Se este já era um debate essencial à esquerda, a crise social e financeira a que se junta a crise ambiental e alimentar coloca-lhe um limite físico e temporal, acelerando a urgência de respostas e acção.
Crescer gera qualidade?
O crescimento económico é constituído pelo aumento do Produto Interno Bruto (PIB). O PIB representa o valor monetário de todos os bens e serviços finais produzidos numa determinada área num determinado espaço de tempo. O crescimento é assim tão só o aumento do valor da produção económica. Na verdade o PIB é um indicador que reflecte as transacções nos mercados, mas não contabiliza a actividade não comercial nem as externalidades sociais e ambientais. Muito menos qualquer dimensão de distribuição de riqueza.
Crescimento implica qualidade? A privatização de um serviço público, como o abastecimento de água ou um hospital, implica um crescimento da economia. Há mais valor criado no mercado dos serviços. Mas esse valor é precisamente o resultado do empobrecimento de toda a população, que com o seu rendimento paga um novo serviço privado mais caro, mesmo perdendo universalidade no acesso. Noutro exemplo, um país pode produzir e comercializar pão ressequido a um euro e, um outro, pão do dia a um cêntimo. A contribuição para o crescimento será maior no caso do pior pão, não traduzindo qualquer relação com a qualidade ou satisfação.
Podemos argumentar contudo que o crescimento não tem abolido a pobreza e que tem contribuído decisivamente para a acumulação de capital. Nesse sentido não é diferente de qualquer outro fenómeno cuja relação de forças e elos sociais se formam numa sociedade orientada para o lucro. Assim é na produção agrícola e não é por esse motivo que a queremos abolir, mas sim transformar. Mais, apesar do pânico do capitalismo ao decrescimento (no caso recessão) não é por esse motivo que a acumulação é menos intensa, como se pode observar pelos dias que correm. Exemplo disso mesmo é o crescimento em 18% das 25 maiores fortunas nacionais no último ano.
Da mesma forma, o crescimento tem implicado a predação dos recursos naturais, não pela sua natureza de crescimento mas pelas forças que o orientam, a necessidade social ou o lucro privado. O crescimento pode ser resultado de fenómenos tão antagónicos como transformar uma floresta em armários ou florestar uma antiga zona industrial.
A chantagem do emprego
A criação de emprego está intimamente ligada ao crescimento da economia. Logo não é raro o argumento: agradeçam o emprego ao crescimento. Mas será que esta forte correlação não revela também o inverso? Não demonstrará que o trabalho é o factor essencial para a criação de valor? Para o debate imediato desvenda as relações sociais e o modo de produção subjacente à criação de emprego como primeiro gerador de valor para acumulação. Também outro modelo de emprego e outra socialização do mesmo é possível e desejável.
Num planeta onde, por exemplo, 40% da população não tem qualquer sistema de saneamento básico, a transformação para um modelo de produção “regulado” ou de transição – consoante o ponto de chegada desejado – implica necessariamente um enorme investimento, mais assente no trabalho que na cativação de recursos naturais. Transformar e socializar a geração e distribuição de energia, o urbanismo, a forma como nos movemos ou produzimos alimentos, a escola, a saúde, etc, gera por si só emprego. Mais, há novas formas de trabalho. Se num sistema de mobilidade individual cada trabalhador faz o percurso pendular casa-trabalho ao volante, numa nova mobilidade colectiva criar-se-iam postos de trabalho para conduzir os transportes públicos. Antes trabalho não comercial, agora emprego remunerado que até conta para o PIB (mas não foi esse o motivo que levou à sua criação, mas sim a sua utilidade social).
Crescer o quê, para onde e para quem?
Em suma, não cabe à esquerda responder de forma binária à pergunta crescimento ou decrescimento. Não é essa a nossa luta. Aliás, devemos assegurar que as políticas públicas não sejam definidas para orientar o PIB em qualquer dos sentidos, já que não reflecte de qualquer forma a qualidade de vida e a preservação dos ecossistemas.
Interessa qualificar a pergunta: o que queremos que cresça e decresça? Com a consciência de que essa resposta é ditada pela força motriz da sociedade, seja a da acumulação de capital ou a da satisfação das necessidades sociais. Ao responder à questão qualitativa estamos a lutar para definir colectivamente o que é produzido, com que objectivo e através de que conceito de trabalho.
Nelson Peralta
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