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Os irlandeses votaram por todos os povos da Europa
O povo irlandês acaba de pôr um grão de areia numa mecânica, apesar disso, bem oleada. Parecia que os governos europeus e os dirigentes da União tinham tomado todas as precauções, a seguir ao duplo não francês e holandês ao Tratado Constitucional europeu (TCE) em 2005. O novo tratado, irmão gémeo do anterior, foi redigido e adoptado à pressa, sem qualquer debate público e para não ser sujeito a nenhuma consulta popular.
Artigo de Pierre Khalfa, publicado em Politis a 19 de Junho de 2008.
Assim, evitavam-se as surpresas e o assunto ficava resolvido. Mas a constituição irlandesa previa um referendo e o que devia acontecer aconteceu. Fez-se um real debate político e apesar da, ou por causa da, unanimidade da classe política irlandesa que se tinha pronunciado pelo "sim", o povo irlandês votou "não", maciçamente nas classes populares.
O que os irlandeses acabam de recusar, o que já tinham recusado os franceses e os holandeses e o que provavelmente a maioria dos povos da Europa teria recusado se lhes tivessem dado oportunidade, é uma Europa anti-social e anti-democrática. Anti-social porque, dos últimos acórdãos do Tribunal de Justiça Europeu, que autorizam o dumping social, ao recente projecto de directiva do tempo de trabalho, que oficializa de facto as 65 horas por semana, passando pelas directivas de abertura à concorrência dos serviços públicos, a União Europeia constrói-se na base da extensão sem fim da concorrência de todos contra todos. Anti-democrática porque, na maior parte das vezes, os cidadãos europeus não podem pronunciar-se sobre o futuro da União Europeia, são excluídos das decisões ou, pior ainda, o seu voto é negado, como no caso do Tratado da Constituição Europeia (TCE).
Debaixo da emoção, o ministro dos Assuntos Europeus da França Jean-Pierre Jouey declarou que "isto mostra uma diferença entre o projecto europeu e as expectativas e a compreensão dos cidadãos". Se, contrariamente ao que ele possa pensar os cidadãos compreenderam perfeitamente a natureza do projecto europeu actual, o relâmpago de lucidez de que ele fez prova terá efeitos práticos? Pode-se duvidar disso face ao que se passou perante o duplo não francês e holandês ao TCE e é muito provável que, para além das palavras, o curso da construção europeia não mude em nada.
Nesta situação, o movimento altermundialista, o movimento social e as forças progressistas em geral têm uma responsabilidade considerável. Em primeiro lugar, a de aproveitar esta oportunidade para impulsionar à escala da União um real debate público sobre o futuro da construção europeia. Não devemos deixar os governos juntar os cacos, como aconteceu após o "não" francês e holandês. Naquela ocasião, por múltiplas razões, o "não" ficou sem sequência. Esse foi o grande falhanço de uma batalha política em tudo o resto notável. Hoje é preciso propor um objectivo e um método.
O objectivo deve ser uma refundação democrática, social e ecológica da União Europeia, que quebre a actual primazia do direito da concorrência. O método deve permitir associar todos os habitantes da União e afirmar assim o destino comum dos povos da Europa. Portanto é um processo constituinte popular que é preciso construir.
Uma tal perspectiva pode permitir mostrar que existe um outro caminho face às manobras dos governos e da Comissão Europeia, que vão tentar contornar o "não" irlandês. Ela opõe-se, aos que esquecendo que a Europa actual foi feita pelos Estados e que o problema não é a Europa mas o neoliberalismo, apostam simplesmente no fim da União Europeia.
Mas aquela perspectiva deve também apoiar-se nas mobilizações concretas. Porque, com tratado de Lisboa ou não, a ofensiva neoliberal continua e aprofunda-se. Vamos deixar a Comissão Europeia preparar tranquilamente os seus projectos para aumentar ainda mais a flexibilidade do trabalho? Vamos deixar os governos aumentar a duração do trabalho? Vamos deixar o Tribunal de Justiça Europeu desmantelar, acórdão após acórdão, o direito do trabalho a nível nacional? Vamos deixar o Banco Central Europeu aplicar uma política monetária restritiva e preconizar a austeridade salarial? Sobre todas estas questões existem alternativas, mas são necessárias mobilizações europeias para as defender. É preciso para isso ser capaz de construir as alianças mais vastas. O Fórum Social Europeu (FSE) é hoje o quadro unitário mais amplo que existe à escala europeia, pelo número e pela diversidade das organizações que nele participam. O FSE deve ser o quadro em que todas estas questões são discutidas, onde os processos de mobilização podem ser construídos. É este o principal desafio da próxima edição do FSE que terá lugar em Malmöe na Suécia de 17 a 21 de Setembro.
Pierre Khalfa
Traduzido de francês para português por Carlos Santos
Pierre Khalfa é secretário nacional da união sindical francesa Solidaires e membro do Conselho Cientifico da Attac-França.
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