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O reconhecimento da identidade de género como processo emancipatório: percursos legais

Nos últimos anos os movimentos trans (transexuais e transgénero) têm vindo a confluir numa reivindicação base muito concreta, mas nem por isso tão fácil de colocar em prática: o reconhecimento legal da identidade de género. Por Júlia Mendes Pereira
"O casamento p+ara todos é agora": manifestação em França
"O casamento para todos é agora": manifestação em França

Por reconhecimento legal da identidade de género entendemos que a identidade de género1, enquanto característica inalienável da personalidade individual, deve ser reconhecida legalmente pelo Estado. Por outra palavras: pretende-se que o género constante nos documentos de identificação de cada um correspondam à sua própria identificação de género, e não ao sexo atribuído por outros à nascença.

Na Europa, desde o início do século que têm sido dados passos fundamentais no sentido da criação de procedimentos legais de reconhecimento da identidade de género que sejam respeitadores dos direitos humanos das pessoas trans. O primeiro passo foi dado pelo Reino Unido (2004), ao criar um procedimento de reconhecimento do género que prescindia de esterilização forçada (ou seja, de qualquer procedimento médico com vista a "mudança de sexo" que afete os órgãos reprodutores). A este seguiu-se o Estado espanhol (2007), com uma lei de identidade de género que, além de também dispensar a esterilização forçada, desburocratizou bastante o modelo destes procedimentos.

O modelo de lei de identidade de género mais consensual entre os ativistas veio da Argentina. A lei de identidade de género (2012) reconhece a identidade baseada exclusivamente na autodeterminação.

Em 2011, a lei de identidade de género portuguesa foi ainda mais longe: além de dispensar a esterilização forçada, dispensou mesmo qualquer tratamento médico (Reino Unido e Estado espanhol continuam a exigir tratamentos hormonais e que as pessoas comprovem viver segundo as convenções sociais do género a que dizem pertencer) e desburocratizou ainda mais: em Portugal, para ver a sua identidade de género reconhecida, uma pessoa precisa apenas de apresentar um requerimento próprio, acompanhado por um relatório médico assinado por dois profissionais de saúde. E a resposta tem de ser dada num prazo ainda não superado internacionalmente: 8 dias úteis.

No entanto, o modelo de lei de identidade de género mais consensual entre os ativistas viria, não da Europa, mas da Argentina. A corajosa lei de identidade de género argentina (2012) dá um passo essencial ao tornar realidade o sonho de todos os ativistas: o reconhecimento da identidade baseado exclusivamente na autodeterminação. Apenas o requerimento da própria pessoa pedindo para ver o seu verdadeiro género reconhecido é suficiente – porque ninguém, além de nós próprios, sabe melhor qual é o género em que devemos viver.O impacto da lei de identidade de género argentina fez-se rapidamente sentir na Europa. Desde logo pela meritória iniciativa cidadã2 que mobilizou ativistas de todo o mundo no sentido de obrigar a Suécia a alterar o seu procedimento de reconhecimento e abolir a esterilização forçada. A lei foi revogada em 2013 e, apesar de uma burocratização ainda excessiva, o reconhecimento na Suécia baseia-se na autodeterminação (ou seja, como na Argentina, um processo despatologizado, sem intervenção de profissionais de saúde).

Neste processo histórico em curso, foi a Dinamarca quem, já este ano, se aproximou mais perto do modelo argentino. A lei de identidade de género dinamarquesa, aprovada pelo parlamento deste país no presente mês, ao não requerer nenhum diagnóstico de saúde mental ou qualquer intervenção médica, é a primeira lei na Europa a ir sem hesitações de encontro aos direitos humanos das pessoas trans.

Júlia Mendes Pereira

1 Segundo os Princípios de Yoggyakarta, em tradução livre: "A identidade de género refere-se à vivência interna e individual do género tal como cada pessoa o sente, de forma profunda, podendo corresponder ou não com o sexo atribuído à nascença". Os Princípios são consultáveis online, em várias línguas (excluindo o português): http://www.yogyakartaprinciples.org/.

2 Para saber mais sobre a AllOut, fundação que dinamizou a petição internacional que permitiu a alteração da lei sueca, assim como para subscrever outras petições ainda em curso, consulte o site, disponível em português: https://www.allout.org

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