Molesta-os perceber a centralidade da obra na análise das desigualdades, abespinham-se contra um perigoso bolchevique que se atreve a denunciar a estrutura social que os sustenta e a desmitificar a tese da meritocracia que a justifica. Importa, por isso, perceber o que há de novo em Thomas Piketty e o que de facto incomoda tanta gente.
O registo e estudo das desigualdades foi feito, até aqui, fundamentalmente com base em inquéritos docimiciliários que procuram aferir rendimentos e riquezas dos agregados familiares. É com base nestes inquéritos que organizações internacionais como o Banco Mundial criam as suas bases de dados, apesar dos resultados serem claramente enviesados e condescendentes com a acumulação de grandes fortunas. Não admira que o mesmo aparato social que justifica as desigualdades extremas utilize dados segundo os quais ninguém é realmente rico para mapear as hierarquias sociais de rendimento e riqueza. A metodologia avançada por Thomas Piketty, Emanuel Saez, Athony Atkinson e uma vasta equipa de investigadores, não é nova, mas a capacidade que têm tido nos último 15 anos de agregar registos de impostos e criar o World Top Income Database, principal base de dados do livro, e a maior sobre desequilíbrios sociais, permitiu traçar a evolução da distribuição de riqueza e rendimento ao longo dos último dois séculos, pela qual Piketty nos guia na obra.
A revolução Thatcher-Reagan dos anos 80 deu à luz a conhecida vaga de liberalização dos mercados de bens e serviços e de desregulamentação dos mercados financeiros e de fluxos de capitais, de privatização da economia, transferindo capitais públicos para mãos privadas.
Auxiliado ainda pelos clássicos de Honoré Balzac e Jane Austen, é nos descrita uma sociedade oitocentista profundamente desigual. A estrutura das hierarquias de rendimento e riqueza era tal que não havia homem ou mulher rica que vivesse do rendimento da força do seu trabalho. Como escreve Piketty, o que era verdadeiramente importante era o tamanho da fortuna de uma pessoa, fosse ela alcançada por herança ou casamento. O rendimento do trabalho e estudo não traziam nunca o mesmo nível de conforto de uma riqueza herdade e do seu rendimento. Esta era uma sociedade onde o património transmitido por herança representava 90% do capital existente, e que se concentrava nas mãos dos 10% mais ricos. Os restantes 90% nada possuíam.
Apenas os grandes choques do século XX, a bancarrota da grande depressão, a destruição das duas grandes guerras, e as subsequentes políticas publicas e sociais de recuperação do desastre, o controlo das rendas, as nacionalizações, a inflação que mirrou as dívidas públicas europeias e os rentistas que delas viviam tiveram a capacidade de limpar o passado. Fizeram nascer aquilo a que Piketty chama de classe média patrimonial, que reclamava agora um terço da riqueza nacional, e comprimiram significativamente as desigualdades, criando-se a ilusão de uma estrutural transformação do capitalismo.
No entanto, o contra-ataque do capital privado não se fez esperar. A revolução Thatcher-Reagan dos anos 80 deu à luz a conhecida vaga de liberalização dos mercados de bens e serviços e de desregulamentação dos mercados financeiros e de fluxos de capitais, de privatização da economia, transferindo capitais públicos para mãos privadas. A somar a esta trajetória neoliberal, a tendência de descida do crescimento económico, fazendo com que a economia cresça mais lentamente do que o capital se reproduz, criou as condições para a reascensão do capital privado, que nos anos 70 nos países ricos se situava nos dois a três anos de rendimento nacional anual, e hoje se situa nos entre os 4 e os 7 anos de rendimento anual, evolução demonstrativa da recuperação de importância do capital privado. Este fenómeno, em que o capital privado atingiu os valores verificados há um século atrás, é por Piketty entendida como o estabelecimento de um novo capitalismo patrimonial.
Este reascensão do capital privado foi acompanhada por um aumento brutal das desigualdades. Em todos os países ricos as desigualdades aumentaram, e o percentil da população mais rico viu o seu poder de compra explodir, enquanto que o poder de compra médio estagnou. Entre 1980 e os dias de hoje, os 1% mais ricos dos países da Europa continental apropriaram-se adicionalmente de entre 2% a 4% do rendimento anual. Por exemplo, em Itália nos anos 80 os 1% mais ricos reclamavam 6% do rendimento nacional anual, em 2010 esta fatia ascendia aos 10%. Nos países Anglo-Saxónicos ricos esta explosão do salários altos foi entre quatro a cinco vezes superior. Nos Estados Unidos os 1% mais ricos em 1980 detinham 8% do rendimento nacional anual, um valor já na altura exorbitante, hoje essa fatia corresponde a 18%, o que significa que de entre os 300 milhões de americanos, 3 milhões têm um rendimento anual 18 vezes superior ao rendimento médio, o que dá 870 mil dólares de rendimento. A conclusão é clara, a evolução das desigualdades é política e é consequência da relação de forças, da luta de classes, e, como diria o terceiro homem mais rico do mundo segundo a Forbes, Warren Buffet, a classe dos ricos está a ganhar.
Este reascensão do capital privado foi acompanhada por um aumento brutal das desigualdades. Em todos os países ricos as desigualdades aumentaram, e o percentil da população mais rico viu o seu poder de compra explodir, enquanto que o poder de compra médio estagnou.
Piketty atribui um papel central à relação da taxa de retorno do capital com a taxa de crescimento económico como mecanismo de efectivação das políticas da desigualdade. Só países num processo que o autor designa de aproximação e alcanse do países mais desenvolvidos, processo pelo qual passoaram os países europeus no pós-Segunda Grande Guerra, e pelo qual passam agora os países emergentes, conseguem ter taxas de crescimento económico (g) superiores à taxa de retorno do capital (r). A este quase permanente desequilíbrio, g<r, Piketty define-o de Contradição Central do Capitalismo. Esta é uma poderosa força de divergência de rendimentos, porque aqueles cuja principal fonte de rendimento é afeto ao crescimento da economia, particularmente a força de trabalho, veêm o seu rendimento crescer a uma velocidade inferior aos rentistas, garantindo que a riqueza acumulada no passado cresce mais rapidamente que o produto de uma economia e os seus salários.
Piketty diz-nos entender como essencial uma atualização apropriada do programa social-democrata e fiscal-liberal do século passado, assente em duas instituições fundamentais, o estado social e a taxação progressiva do rendimento. Protegida pela ressalva da inaplicabilidade prática e rápida, a sua proposta central é a da criação de um imposto mundial e progressivo sobre o capital, uma útil utopia que deve servir como ponto de refencia a partir da qual propostas alternativas podem ser avaliadas.
Piketty esceveu um livro fortemente documentado que permite reposicionar o debate político e económico sobre as desigualdades e fez-nos perceber como a nossa realidade não é muito distinta da das obras de Balzac e Austen. É um livro incontornável.
Nota do autor:
Escrevi este texto como introdução ao debate sobre o livro no Fórum Socialismo. Por ser um texto introdutório, a apresentação que fiz estava mais completa e tinha uma dimensão crítica sobre a obra que este texto não tem.
Vale a pena, por isso, completá-lo com algumas ideias que julgo ser importantes na análise da obra.
Piketty define o capital como o valor de mercado do stock de ativos que podem ser transacionados num mercados. Nesta definição não há distinção entre capital físico que está a ser usado ou não. Um terreno ou uma fábrica abandonada, que não fazem parte de nenhum processo produtivo, que não têm nenhuma função social, são contabilizados por Piketty como capital. Esta é uma definição de capital da economia clássica, é uma definição estática, que vê no capital um mero fator de produção.
Piketty está enganado, e esta talvez seja a sua maior falha. Ele não percebe que o capital não é só capital físico, é uma relação social que submete quem só a força de trabalho tem à classe capitalista. O capital é um movimento, um valor que se valoriza infinitamente na passagem de moeda a mercadoria e de mercadoria a moeda. Não o conjunto de ativos duma economia avaliados segundo a lei do casino dos mercados, não um conjunto de valor que só existe no mercado, que não tem nenhuma função produtiva, que não tem nenhuma função social.
O autor diz-se ainda vacinado contra a convencional mas preguiçosa retórica anticapitalista, e que o seu objetivo não é o de denunciar as suas desigualdades e o capitalismo per ser, mas sim contribuir para o debate sobre a melhor forma de organizar a sociedade. Acha essencial a atualização apropriada do programa social-democrata e fiscal-liberal do século passado, assente em duas instituições fundamentais, o estado social e a taxação progressiva do rendimento.
O que Pikketty não entende é que de pouco vale um imposto global sobre o capital para redistribuir a riqueza, a sua proposta central, se não se põe em causa o sistema que produz essa riqueza. É, aliás, de grande ingenuidade achar possível a implementação de um imposto desta natureza no atual quadro das coisas. Não é possível, e é por isso que é preciso fazer crescer a luta social, é por isso que é preciso derrubar o sistema atual.
Mas sobre luta social Piketty nada diz. Nenhuma referência, nenhuma ideia sobre a implementação das suas propostas, nenhuma ideia sobre como viramos a relação de forças, traz-nos apenas um discurso básico sobre como as suas propostas servem apenas para acicatar o debate público, para a reflexão. Nenhuma palavra sobre movimentos sociais, nem sequer sobre o Occupy Wall Street, que nos pôs a todos a falar dos 1% mais ricos, classe que Piketty estudou de forma notável. O seu objetivo máximo é uma violenta abstenção, só quer mesmo mesmo é espicaçar o debate e nada mais.
É com este reformismo de Piketty que a esquerda revolucionária não pode estar de acordo. Não é preciso reformar o capitalismo, não é preciso reformar o programa da social democracia, não é preciso nem é bom regular este sistema mantendo o seu modelo de produção capitalista.
O que é preciso é romper com o capital, romper com o capitalismo, que esse sim é a base das desigualdades.
5/9/2014