Muito do que direi nesta intervenção não é pessoal no sentido de ideias construídas apenas por mim, mas antes reflexões coletivas que provém das experiências no mundo associativo ou nos movimentos sociais, que decorrem das incursões académicas ou das discussões infindáveis com gente insatisfeita e gente improvável. Falo-vos também, como é óbvio, da vivência como cabeça-de-lista num movimento independente em Braga, onde pude experimentar o lado bonito e o lado negro da vida política.
Perante a pergunta: “de que é que a esquerda não deve abdicar?” a primeira e óbvia resposta que me vem à cabeça é de “a esquerda não deve abdicar de existir”.
Dizia-me há dias um desconhecido, num desses encontros improváveis que, “se deixássemos seguir o seu curso natural, o mundo seria de direita, porque se regeria pela lei do mais forte. E que, portanto, “a esquerda era a única forma de contrapor esse caminho”.
Claro que tal afirmação é questionável, sobretudo quando se aplica o adjetivo “natural” e claro que, felizmente, o mundo tem dado mostras de muito mais contradição no seu interior. Mas o que é facto é que a esquerda tem servido como força contrária ao individualismo, à ganância ou ao darwinismo social.
Mas existir não chega e se mais do que nunca a esquerda nos parece imprescindível, as condições atuais parecem pouco favoráveis à sua existência, deixando cada vez menos espaços de resistência.
É certo também de que nem sempre estaremos a falar da mesma esquerda. A esquerda que abandona o Estado Social, que cede às privatizações, que nos arremessa com os chavões da competitividade, do empreendedorismo, da empregabilidade pode ser considerada de esquerda? Não creio.
Mas existir não chega e se mais do que nunca a esquerda nos parece imprescindível, as condições atuais parecem pouco favoráveis à sua existência, deixando cada vez menos espaços de resistência.
Todos sabemos as linhas com que nos cosemos atualmente. Um país estrangulado pela dívida, esmagado pelo medo, paralisado pela falta de perspectivas de futuro. Direitos sociais e políticos conquistados - pelos meus pais, pelos vossos pais - continuamente atirados para a gaveta. Números que nunca conseguimos verdadeiramente contar: da precariedade, do desemprego, da emigração. E envolvendo tudo isso, um enorme pano consensual, inquestionável, cobre todas as dimensões da nossa vida: não há alternativa. E com isto as lutas vão arrefecendo. Quem condena o desempregado por não ir para a rua gritar? Quem culpa a mulher em dupla, tripla jornada, por não estar presente nos plenários do sindicato? Quem diz ao jovem que tem de batalhar pelo seu futuro se ele não consegue sequer mover-se no presente? O espírito de Salazar parece voltar a sussurrar: “a minha política é o meu trabalho.”
É por tudo isto que a esquerda não deve abdicar de existir, reagir e resistir. De que forma? Eis as minhas (nossas) hipóteses:
1. A esquerda não pode abdicar da crítica.
Já muitas vezes ouvimos que crítica e crise partem da mesma raiz da palavra. Não quero trazer à tona a retórica empreendedora de que é em tempos de crise que se criam oportunidades. Isso não é oportunidade, é oportunismo. Mas de facto, é em períodos de grave crise – económica, social, cultural, política – como os que atravessamos hoje que mais nos parece indispensável um olhar e uma ação crítica sobre a realidade. No sentido marxista do termo, mais do que nunca, precisamos de ferramentas críticas e radicais que nos permitam interpretar a realidade para a poder transformar. O desmontar do pensamento único e dos consensos fabricados e a procura de alternativas concretas são uma tarefa fundamental nesta era de austeridade e, felizmente, o Bloco de Esquerda não se tem mantido alheio a isso. Nem sempre com o sucesso que era necessário. Crítica também no sentido de auto-crítica e isso significa saber olhar para dentro, pensar em conjunto, despertos, inquietos e sem pudores, para descobrir o que está a falhar no interior desta esquerda, qual o seu papel perante o avolumar do polvo conservador e neoliberal? Qual o lugar da esquerda quando não lhe querem dar lugar?
E para isso...
2. A esquerda não pode abdicar de um projeto
De um horizonte que seja claro e credível, ancorado em princípios fortes que deem corpo a estratégias consistentes e a propostas concretas. Esse projeto socialista implica reivindicar e ser parte da luta de classes, nas suas várias formas – na empresa e no trabalho, nos sindicatos e nos novos movimentos laborais, mas também da luta contra a apropriação privada pela classe capitalista dos nossos bens comuns. Implica construir esse projeto com as armas críticas mais fortes que temos para compreender o mundo: os marxismos e as teorias críticas em diálogo com eles. Implica sermos intransigentes. Intransigentes e coerentes a cada momento. Porque a justiça, a liberdade, a democracia não são apanágios de uns ou palavras ocas, mas conceitos e práticas que não podem fugir nunca do nosso horizonte. E, por isso, também não há causas menores, como parece haver para determinadas esquerdas neste país. Os direitos das mulheres, das minorias étnicas, dos gays, lésbicas, transsexuais não podem ficar fechados em armários, à espera que a dívida pública desça ou que o desemprego diminua.
3. A esquerda não deve abdicar das pessoas.
A esquerda – em que eu acredito – tem a obrigação de quebrar o “monopólio dos profissionais” políticos, em que a uns é dada a função de fazer a política e a outros é dada a possibilidade de os seguir ou apoiar. A esquerda deve ser capaz de envolver todos e todas, deve ser inclusiva, pedagógica. Basta lembrar os tempos do PREC, as canções do GAC ou os cadernos de educação popular, para perceber que uma verdadeira esquerda quer – autenticamente – que todos as pessoas se assumam como atores políticos. E para isso procura formas, processos, espaços que abram oportunidades para que essa demanda se torne realidade. As campanhas dos movimentos independentes de Braga, Coimbra, mas também do Bloco de Esquerda, no Porto e outras que não tive oportunidade de conhecer tão de perto, são um claro exemplo de que como não só é possível, como é desejável e urgente.
Porque...
4. A esquerda não deve abdicar da democracia.
Se como dizia Humpty Dumpty, na Alice, o poder das palavras está no poder daqueles que as proferem, é mais que tempo que recuperar essa palavra, que tem convivido muito bem com o neoliberalismo e que ao longo dos tempos se tem tornado cada vez mais vazia, gasta, abusada. Antes de tudo, significa pensar a democracia – sempre – como algo polifacetado. A democracia não se refere apenas ao momento em que exercemos o nosso direito de voto, ou até quando participamos numa assembleia ou assinamos uma petição. Não há democracia se não temos acesso a cuidados de saúde, à educação ou à cultura. Não há democracia se não podemos fazer greve porque corremos o risco de ser dispensados. Não há democracia se não temos como pagar o pão. Isso tem de ser claro. Reabilitar a democracia significa também fazer aquilo a que Boaventura Sousa Santos chama de “democratização da democracia”, essa “mobilização da imaginação política”, através do recriar e reinventar de espaços, experiências e processos de exercício da cidadania, onde cada pessoa possa ter voz.
E por isso,
5. A esquerda não deve abdicar do diálogo.
Diálogo em contraponto com o monólogo opressor, como sempre nos lembrava Paulo Freire. Um diálogo que se baseia numa postura de escuta atenta e que, portanto, se adapta aos interlocutores, porque realmente os quer perceber e porque acredita que o seu contributo é importante. Quando, durante a campanha, fizemos o Fórum Participativo com crianças e adolescentes para discutir a cidade ou os círculos de discussão com a população cigana dos bairros sociais – experiências que para mim fizeram parte do lado bonito da política – foi absolutamente visível como é fácil – quando se empenha nesse sentido – transformar ideias difusas ou pouco elaboradas em propostas concretas, válidas e necessárias. Essa capacidade de diálogo e esses processos de mobilização não podem ser desperdiçados.
Porque...
6. A esquerda também não pode abdicar do poder.
Dizia-me há dias um amigo, mais um improvável, que até já desistiu de votar, que “a esquerda não se deve sentir pequena.” De facto, se a esquerda quer alcançar algum propósito, se quer contribuir para a transformação, terá de subir nos seus tamancos, terá de ser maior e mais forte. Terá de ser capaz de influenciar o espaço público. E, para isso, são inevitáveis as convergências - essa expressão que começa já a causar arrepios e nós no estômago. Mas convergências não é o mesmo que ceder a pressões internas ou externas, nem embrenhar-se em consensos e negociações hesitantes ou hipócritas. Convergência é a possibilidade de um diálogo crítico, consciente, criativo, coletivo e comprometido, em torno de um projeto comum, que possibilite a construção de alternativas e de uma contra-hegemonia de esquerda. Implica, portanto, acolher os insatisfeitos, os que acreditaram e deixaram de acreditar, os que foram embora, os improváveis de que vos falo. Implica também adaptar as estruturas, abrir espaço a outras formas de militância mais fluídas, mais intermitentes. Porque todos juntos somos poucos.
7. A esquerda não deve abdicar da esperança.
Não a esperança disneyland, romântica, naif, o “estamos no bom caminho”, do Passos Coelho. Mas a esperança politizada com projeto emancipatório e que busca futuros possíveis, através do exercício da resistência. O inédito-viável de que – novamente – Paulo Freire nos falava e que reporta para um olhar sobre a História não como pré-determinado, mas como repleto de possibilidades, apoiado na crença da capacidade do homem e da mulher de assumirem o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. A esperança que arruma com o ideologia fatalista e imobilizante, não há alternativa. Há pois! A política – no meu entender – faz-se acreditando. Nas palavras de Brecht, “nada deve parecer impossível de mudar.” E é também responsabilidade da esquerda reabilitar a esperança e a confiança das pessoas na democracia, na política e na sua própria capacidade – e legitimidade – para agir e transformar.
E como não podia deixar de ser,
8. A esquerda não pode, não deve, abdicar da revolução.
Não sabemos em que moldes, por que protagonistas ou em que tempo. Não sabemos sequer se voltaremos a ter uma revolução daquelas com direito a ficar marcada nos livros de História. Mas é preciso manter a revolução no horizonte. E para isso temos de ser radicais. E inconformados e exigentes. Não queremos passar um pano de pó nas injustiças, não queremos fintar as opressões, não queremos retoques cosméticos em tudo o que de mal grassa neste mundo. Queremos uma transformação radical na forma como a sociedade se estrutura. Queremos uma sociedade anti-capitalista, anti-patriarcal, anti-colonialista, anti-homofóbica. E esse é o nosso maior compromisso. Façamos pois, o exercício que Daniel Bensaid nos propõe, a “lenta impaciência” de uma revolução permanente, que seja processo e seja fim, “ruptura e continuidade”, feita de micro-resistências que não nos impedem de ver onde queremos chegar no combate final.
Da minha experiência que é pouca, do meu conhecimento que é insuficiente, do meu olhar que é externo, estes seriam os pedidos que faria ao Bloco de Esquerda. Afinal, é por causa dele que aqui estamos todos hoje. Como já tive oportunidade de vos dizer um dia, este é um partido de pessoas que pensa muito. E que acredita e que luta. Com o coração, com as mãos, com os dentes cerrados. E muitas vezes ao contrário. Façamos uso disso para ajudar a dar a volta. Está mais do que na hora.
Inês Barbosa
29.08.2014