O Partido Comunista Português opôs-se a um voto, apresentado pelo Bloco de Esquerda em 28 de novembro de 2013, que condenava os assassinatos de Alves Kamulingue, Isaías Cassule e Manuel Ganga e apelava à libertação imediata de todos os presos políticos em Angola.
Numa declaração de voto, o Grupo Parlamentar do partido explicou os seus motivos. No texto assinado pelo deputado António Filipe, afirma-se que “os trágicos acontecimentos que conduziram à morte dos três cidadãos angolanos” estão a ser “aproveitados por forças políticas (designadamente, a UNITA) com o objetivo de criar um clima de desestabilização que, declaradamente, visa pôr em causa o normal funcionamento das instituições angolanas”.
Os factos
Façamos então um resumo dos acontecimentos que levaram a este voto.
A 27 e 29 de maio de 2012, Alves Kamulingue e Isaías Cassule desapareceram no seguimento de uma manifestação de veteranos e desmobilizados do exército angolano. O governo e as forças de segurança sempre negaram que eles tivessem sido presos.
Mas diante dos protestos exigindo a sua libertação ou aparecimento com vida, o governo respondeu com a repressão.
Foi o caso da manifestação convocada para o dia 22 de dezembro de 2012 em Luanda, que foi dispersa pela polícia usando gás lacrimogéneo e bastonadas. Seis jovens foram detidos, sendo libertados mais tarde, quando o seu advogado conseguiu provar que a detenção fora ilegal. Todos se queixaram dos maus tratos a que foram submetidos.
No dia 30 de março de 2013, nova manifestação exigindo a libertação ou o aparecimento com vida dos dois ativistas foi reprimida antes sequer de se iniciar, apesar de estar legalizada. Vinte jovens foram detidos. A polícia usou um helicóptero, polícias a cavalo, brigada canina e mais de cem agentes fardados e à paisana, para impedir que a manifestação pelo “Direito à Vida e Liberdade para Quem Pensa Diferente” chegasse a ocorrer.
No dia 27 de maio ocorreu uma vigília para assinalar que decorrera um ano sobre o desaparecimento dos ativistas. Apesar de a vigília não exibir faixas e de os seus integrantes não gritarem palavras de ordem, a polícia mais uma vez dispersou à bastonada as cerca de 30 pessoas reunidas no largo da Independência.
Até que em 9 de novembro, o portal Clube K informou sobre a existência de um relatório do Ministério do Interior responsabilizando o Serviços de Inteligência e Segurança de Estado (SINSE) pela detenção e morte dos dois ativistas que, veio a saber-se depois, teve requintes de crueldade: Kamulingue foi executado com um tiro na nuca e Cassule foi morto à pancada e o seu corpo atirado a um rio infestado de crocodilos. Na sequência desta informação, o diretor do SINSE, Sebastião Martins, foi demitido.
Até então, a UNITA não tivera qualquer papel nos protestos. A partir desta informação, que, como é evidente, causou uma grande comoção na sociedade angolana, o maior partido de oposição convocou uma manifestação para o dia 23 de novembro, que contou com o apoio de outros partidos, como o CASA-CE, o PRS e o Bloco Democrático. Goste-se ou não da UNITA, o certo é que a manifestação era pacífica e absolutamente legal.
O governo, porém, usou um expediente ditatorial para proibi-la. Com o pretexto de que outra manifestação fora convocada pelo MPLA para o mesmo dia, o Ministério do Interior decidiu proibir “as duas”. O MPLA terá imediatamente acatado a decisão, e a UNITA manteve a convocatória... Ora, como o governo é do MPLA, este expediente pode sempre ser usado para proibir qualquer manifestação, em qualquer ocasião – basta alegar que o MPLA convocou uma manifestação para a mesma data e que, assim, há perigo de confronto.
Na madrugada do dia marcado, a Guarda Presidencial matou um ativista da CASA-CE, Manuel Ganga, que colava cartazes convocando a manifestação. Apesar da proibição, esta ocorreu e foi barbaramente dispersa pela polícia, mais uma vez com gás lacrimogéneo, bastonadas, balas de borracha, o uso de blindados e helicópteros. Cerca de 300 ativistas foram presos.
Finalmente, a 27 de novembro, a polícia mais uma vez reprimiu o próprio funeral de Manuel Ganga.
Os factos são estes. Onde é que o PCP vê aqui um aproveitamento para criar um clima de desestabilização que ponha em causa as instituições? Não serão, pelo contrário, estes factos uma demonstração de que o regime angolano é uma ditadura repressiva e que, diante da sua gravidade – três mortes! –, a UNITA teve até uma atuação totalmente tímida?
Angola é a Líbia?
Mas o PCP invoca o contexto internacional e afirma que “tais factos ocorrem no momento em que vários países do continente africano são alvo de manobras de ingerência e desestabilização de pendor neocolonialista que, como aconteceu na Líbia ou na Somália, visam a quebra da sua unidade interna, independência e soberania nacionais, procurando colocar em causa caminhos de desenvolvimento soberano e alcançar um ainda maior domínio dos seus recursos e riquezas, e em que se assiste a uma onda de militarização deste continente e de profusão de conflitos e agressões atentatórios da soberania e independência de vários países, nomeadamente por via da intervenção dos Estados Unidos da América através do seu AFRICOM”.
Lê-se e não se acredita. Onde há em Angola alguma coisa que se possa parecer com isto? O regime angolano é combatido por Washington, como era o de Kadhafi? Os EUA denunciam José Eduardo dos Santos? Onde? Quando?
Mais uma vez, os factos nada têm a ver com o que diz a declaração de voto do PCP. Os Estados Unidos comemoram em 2013 vinte anos de relações diplomáticas com Angola, às quais dão a maior importância. O Conselho de Relações Exteriores dos EUA afirmou em 2007 que poucos países africano são mais importantes para os interesses dos Estados Unidos que Angola. Assim, os EUA estabeleceram com Luanda uma Parceria Estratégica, logo após uma visita de Hillary Clinton. Angola exporta 24,5% do seu petróleo para os Estados Unidos. O MPLA é membro da Internacional Socialista. De onde sai então essa comparação com a Líbia e a Somália?
Mais: apesar de dois integrantes do Movimento Revolucionário dos jovens angolanos terem ido a Dar-Es-Salam entregar uma carta chamando a atenção de Obama ao caráter repressivo do regime angolano, Washington nada disse e, pelo contrário, no dia 11 de novembro, Obama enviou a José Eduardo dos Santos uma mensagem em que afirma continuar impressionado pelo robusto crescimento de Angola e diz acolher, favoravelmente, “oportunidades para uma parceria ativa em áreas de interesse estratégico como a energia, a segurança alimentar, a democracia e a estabilidade regional”.
Não ingerência é desculpa?
O PCP afirma ainda que “de acordo com a Constituição da República Portuguesa, as relações entre Portugal e Angola devem pautar-se pelo estrito respeito pela independência e soberania de ambos os países, bem como das suas instituições, e tais relações devem rejeitar quaisquer intentos de ingerência ou traços de neocolonialismo”.
Mas então a condenação de um atentado aos direitos humanos, como o assassinato de três pessoas, noutro país é uma ingerência? O PCP sabe bem que não. É legítimo e até obrigatório pronunciar-se contra os atropelos aos direitos humanos em qualquer lugar. O parlamento português não se pronunciou contra o apartheid? O PCP votaria contra a condenação da repressão da ditadura chilena, argentina ou uruguaia dos anos 70/80? Ou à repressão do reino de Marrocos contra os saharauis? É claro que não. Qual então a diferença com o regime angolano?
Finalmente, soa muito mal a “preocupação subjacente à necessidade de apurar responsabilidades pela morte dos cidadãos angolanos referidos” quando durante um ano inteiro o partido se calou diante da repressão àqueles que exigiam, justamente, que se apurassem essas responsabilidades.