Está aqui

Neto pôs Nito sob vigilância 10 meses antes do 27 de Maio

Relatório do chefe da Missão Civil de Cuba em Angola a Fidel Castro revela que dez meses antes dos acontecimentos fatídicos que marcaram para sempre a história de Angola as ações de Nito Alves já eram vigiadas. Por Luis Leiria.
No primeiro plano, Raúl e Fidel Castro; Jorge Risquet aparece atrás, à esquerda.
No primeiro plano, Raúl e Fidel Castro; Jorge Risquet aparece atrás, à esquerda.

Apenas sete meses após a independência, Agostinho Neto tinha posto Nito Alves sob vigilância. O presidente de Angola considerava o seu próprio ministro da Administração Interna “um problema”, por tender a “criar uma fração dentro do MPLA”. Numa conversa com o chefe da Missão Civil em Cuba, Jorge Risquet, Neto afirma não saber se “Nito é uma pessoa recuperável”, e acusa-o de se ter rodeado de “pessoas que se dizem membros do Partido Comunista de Portugal, mas que na verdade são pessoas que nunca fizeram nada pela revolução no seu país.”

A conversa é relatada num memorando enviado por Risquet a Fidel Castro em 13 de julho de 1976. Este e outros documentos do arquivo de Cuba, fechado à investigação, foram trazidos a público pelo professor e investigador Piero Gleijeses, que conseguiu convencer as autoridades cubanas a permitir a publicação dos documentos por ele citados no livro “Visions of Freedom: Havana, Washington, Pretoria and the Struggle for Southern Africa, 1976-1991”. São eles que compõem um arquivo digital disponível desde outubro de 2013 no Wilson Center.

Memorando relata conversas entre Jorge Risquet e Agostinho Neto
Memorando relata conversas entre Jorge Risquet e Agostinho Neto. Note-se que no topo do documento está escrito: "Segredo de Estado".

Apesar de serem públicos há três anos e meio, estes documentos, importantes para a compreensão da história recente de Angola e do que realmente ocorreu no 27 de Maio de 1977, passaram desapercebidos ao público português. (Veja também neste dossier do Esquerda.net “Memorando de Raúl a Fidel Castro relata desconfianças sobre papel da URSS”).

Não posso dizer agora se Nito é uma pessoa recuperável”

Na conversa com o presidente de Angola, é o chefe da Missão Civil em Cuba que aborda o assunto, ao dar conta das sucessivas aproximações de Nito Alves a Risquet, propondo-lhe um intercâmbio de experiências e opiniões, “como internacionalistas, ultrapassando o estreito chauvinismo”. O cubano pondera que não podia continuar a esquivar-se, já que se tratava de um membro do Bureau Político e ministro.

Neto explica então que Nito Alves é para ele um problema, porque “fala muito e a sua atividade tende a criar uma fração dentro do MPLA e sabemos que há gente dentro do Movimento que o apoia.” E acrescenta: “Não posso dizer agora se Nito é uma pessoa recuperável. Estamos a vigiar as coisas de Nito.” Para o presidente angolano, tratava-se de alguém que fez algumas leituras mas não as digeriu bem.

Sabemos que Nito está rodeado de um grupo de pessoas que se dizem membros do Partido Comunista de Portugal, diz Agostinho Neto a Risquet

“Tenta copiar mecanicamente algumas situações, fazendo comparações se este é igual a Kamenev, este a Zinoviev e este a Trotsky”, descreve, acusando o seu ministro da Administração Interna de achar que tem sempre razão. “Ainda agora critiquei-o por tomar posições que não são as do MPLA e não reagiu muito bem, por isso temos de estudá-lo.”

“Sabemos que Nito está rodeado de um grupo de pessoas que se dizem membros do Partido Comunista de Portugal, mas que na verdade são pessoas que nunca fizeram nada pela revolução no seu país”, prossegue Agostinho Neto, dando a entender que foi uma dessas pessoas que escreveu parte do último discurso de Nito Alves.

Só confia no poder popular dos bairros de Luanda”

Outra acusação do presidente de Angola a Nito Alves que consta no relatório é a de desconhecer o papel das FAPLA, de não dar qualquer importância aos problemas económicos e de “só confiar no poder popular dos bairros de Luanda, como se Luanda fosse toda a Angola.”

Risquet pergunta-lhe então sobre as relações entre Nito Alves e Monstro Imortal (João Jacob Caetano), o chefe de Estado-Maior das FAPLA, ao que Agostinho Neto responde que “havia relações entre ambos, pois vinham da Primeira Região, mas que Monstro tinha um caráter muito diferente de Nito.”

Jorge Risquet: propôs-se falar com Nito Alves e manter Agostinho Neto informado do teor das conversas
Jorge Risquet: propôs-se falar com Nito Alves e manter Agostinho Neto informado do teor das conversas

O chefe da Missão Civil de Cuba em Angola propõe então ao presidente angolano aproveitar a oportunidade que “Nito me oferece insistentemente” para “explicar-lhe as nossas experiências e criticar fraternal e cuidadosamente os pontos de vista falsos e nocivos que podem encontrar-se nos seus discursos.” Isto, se Neto autorizasse e mantendo-o informado. “Se Nito for uma pessoa recuperável que procura honestamente as nossas experiências e opiniões, isto era útil”, ponderou Risquet. “Se Nito o que procura é congraçar-se connosco para obter apoio às suas posições falsas, então também seria útil, pois se daria conta de que estas não terão o nosso apoio e isto o faria necessariamente refletir.”

Agostinho Neto aceitou a proposta.

Infelizmente, não sabemos se a conversa entre Risquet e Nito Alves realmente aconteceu. Mas sabemos que três meses depois, em outubro (de 23 a 29), o Comité Central do MPLA decidiu extinguir o Ministério da Administração Interna, afastando Nito Alves do governo, e acusou Nito e José Van Dunem de “fraccionismo”. Formou-se então uma comissão de inquérito, presidida por José Eduardo dos Santos, para investigar a existência de fraccionismo no MPLA.

Menos de um ano após esta conversa, Nito Alves, José Van Dunem e Monstro Imortal já tinham sido fuzilados.

(...)

Neste dossier:

Tanque cubano barra o acesso à Rádio Nacional de Angola. Foto publicada na 1ª página de O Jornal da época

O 27 de Maio de 1977 em Angola

Há 40 anos, Agostinho Neto, vencedor da disputa entre duas alas do MPLA, deu luz verde a uma chacina que terá chegado às 30 mil vítimas. Neste dossier, o Esquerda.net ouve sobreviventes, relembra os acontecimentos, apresenta documentos praticamente inéditos, discute a urgência de resolver uma grave questão de direitos humanos. Dossier coordenado por Luis Leiria.

 

Jorge Fernandes

“Nito Alves foi uma vítima do maquiavélico Agostinho Neto”

Num depoimento ao Esquerda.net, o engenheiro Jorge Fernandes, sobrevivente do 27 de Maio, relata como viveu os tempos da independência, da organização do MPLA em Angola, e os dois anos e meio de prisão e campo de trabalhos forçados sem acusação nem julgamento. E partilha as conclusões políticas a que chegou após 40 anos. Por Luis Leiria.

Rui Coelho

Será demasiado querer saber porque morreu, e como morreu, o meu irmão?

Depoimento de Maria da Conceição Coelho – irmã de Rui Coelho, um dos desaparecidos no período de repressão que se seguiu ao 27 de Maio em Angola – na audição pública promovida pelo Bloco de Esquerda.

27 de Maio: Lembrar para não esquecer

Depoimento de José Reis, autor de "Memórias de um sobrevivente" na audição pública organizada pelo Bloco de Esquerda sobre os acontecimentos do 27 de Maio em Angola e a repressão que se seguiu.

João Ernesto Valles Van Dunem

Angola: 24 órfãos do 27 de Maio dirigem carta à Presidência

Primeiro signatário é João Ernesto Valles Van Dunem. Órfãos reivindicam a elaboração de uma lista de desaparecidos, exames de ADN para reconhecer as ossadas, a emissão de certidões de óbito, entre outras medidas.

As duas revoluções de Sita Valles

A sua curta vida apresenta todos os ingredientes de uma tragédia grega. A militante que se entregou sem rodeios às revoluções portuguesa e angolana foi devorada por esta última. Pior ainda, o seu nome tornou-se maldito em ambos países. Nenhum argumento pode justificar que se lhe retire o direito à memória. Recordemo-la, pois. Por Luis Leiria.

Capa do livro de Dalila e Álvaro Mateus

"Ainda hoje tenho pesadelos com este horror"

No dia 27 de maio de 1977, começou um dos períodos mais macabros de Angola. Neste dia houve manifestações em Luanda a favor de Nito Alves. A seguir, milhares de angolanos foram torturados e assassinados. Primeira parte da entrevista da Deutsche Welle a Dalila Mateus.

Artigos como este do Jornal de Angola incitavam à violência, à delação e ao ódio

"O MPLA sempre tratou os dissidentes da pior forma"

Vamos tentar perceber os contornos internos e externos da perseguição violenta dos chamados "fraccionistas" pelo MPLA de Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola, durante a qual morreram milhares de pessoas. Segunda parte da entrevista da Deutsche Welle à historiadora Dalila Mateus.

Não se pode construir o futuro colocando pedras no passado tentando enterrar a História sem que os enterrados e os seus familiares saibam onde estão os seus entes desaparecidos.

Ao cabo de 40 anos

Os quarenta anos que separam a data dos acontecimentos violentos e armados vividos em Luanda no dia 27 de maio de 1977 dos dias de hoje não chegam para explicar o sucedido, nem para apaziguar a memória. Por Domingos Lopes.

David Zé: enviado por Agostinho Neto para assistir aos festejos das independências de Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, onde interpretou, em cada uma delas, a canção "Quem matou Amílcar Cabral".

Vítimas: os três músicos mais populares do MPLA

As mortes na chacina desencadeada após o 27 de maio foram muito além dos simpatizantes de Nito Alves, atingindo até os mais famosos músicos da área do MPLA. David Zé, que até então cumprira o papel de embaixador cultural de Angola, foi um deles. Já José da Piedade Agostinho salvou-se por ser asmático.

Raúl Castro (à direita na foto) relatou a Fidel as desconfianças de Agostinho Neto em relação aos soviéticos

Memorando de Raúl a Fidel Castro relata desconfianças sobre papel da URSS

Documento até agora desconhecido revela preocupação da liderança cubana devido às suspeitas de Agostinho Neto de que a ação de Nito Alves tivera a simpatia dos soviéticos. Por Luis Leiria.

No primeiro plano, Raúl e Fidel Castro; Jorge Risquet aparece atrás, à esquerda.

Neto pôs Nito sob vigilância 10 meses antes do 27 de Maio

Relatório do chefe da Missão Civil de Cuba em Angola a Fidel Castro revela que dez meses antes dos acontecimentos fatídicos que marcaram para sempre a história de Angola as ações de Nito Alves já eram vigiadas. Por Luis Leiria.

Agostinho Neto e Nito Alves

Cronologia

Para além dos acontecimentos no dia 27 de maio de 1977 e dos seus antecedentes e consequências, optámos por ampliar um pouco a cronologia para oferecer ao leitor um enquadramento geral dos acontecimentos na história de Angola.

Protagonistas do 27 de Maio

Veja aqui quem foram os principais protagonistas do golpe de 27 de Maio, do lado dos vencedores e dos vencidos.

Angola - o 27 de Maio - Memórias de um Sobrevivente

Sobrevivente do 27 de Maio lança livro

Lançamento de “Angola – o 27 de Maio – Memórias de um Sobrevivente”, de José Reis, será no sábado, dia 27, na casa de Goa, às 17 horas.