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Neoliberalismo, fetichismo técnico-cientificista e ciência
A ideologia política do neoliberalismo, a arma política da ofensiva ideológica na senda de um capitalismo sem qualquer tipo de freios, é amplamente reconhecida como tendo influenciado a organização das economias nacionais e globais e as políticas públicas desde os anos 70. O neoliberalismo é baseado na subordinação da totalidade das estruturas e instituições sociais, incluindo as instituições científicas, ao processo de acumulação, pelo que, as funções económicas, como, por exemplo, criar um ambiente empresarial “desejável”, passam a ocupar claramente a posição dominante dentro do Estado e o desenho das suas políticas, incluindo as científicas. A intensificação da lógica neoliberal do capitalismo faz com que o Estado (com a perda quase total de autonomia relativa) use os impostos do factor trabalho para consolidar o sistema financeiro e, como resultado, estenda e intensifique os cortes orçamentais, originando um empobrecimento por via da degradação salarial, da precariedade e do desemprego estrutural elevado que se arrisca a ser crónico, da subjugação à dívida e do despejar das funções sociais do Estado, na segurança social, na educação, na saúde e no investimento nas instituições académicas e científicas e ainda mais nos seus recursos humanos.
A sociedade neoliberal é a sociedade dos ditames do mercado capitalista que tenta subjugar as instituições académicas e científicas às necessidades do actual modo de produção (e respectivas instituições financeiras), e esvaziar a noção de ciência enquanto bem público.
Por arrasto, são também as instituições académicas e científicas que têm perdido autonomia relativa face aos imperativos dos mercados e da lógica capitalista (veja-se o caso mais lapidar das escolas de economia e gestão que, com os seus modelos matemáticos, reduzem a realidade social a abstrações caricaturais e ilustram também aquilo que apelidarei de fetichismo técnico-cientificista), o que, no momento actual, parece desfazer o ganho e a construção histórica e institucional do campo científico e académico como campo semi-autónomo de poder e de construção de conhecimento amplamente útil (não só no campo económico), crítico e reflexivo. Se, por um lado, se criticou a perspectiva, no momento histórico do capitalismo burocratizado e organizado, de que as elites dirigentes pressionariam o sistema de produção de conhecimento, para que este inevitavelmente beneficiasse interesses de classe dessas elites (por exemplo, Hessen, 1971), por outro, a ofensiva neoliberal parece tornar essa pressão evidente sob a forma de uma putativa “racionalização” do sistema científico e tecnológico nacional (que se tem traduzido na asfixia financeira das instituições, na elevadíssima precarização dos recursos humanos e nas possibilidades de vida dos produtores ou potenciais produtores de conhecimento) e da propalada falta de articulação e de retorno de investimento na relação entre ciência e sociedade, reduzida esta última às vislumbradas necessidades da economia e do mercado. Deste modo, é colocada em causa uma ideia de ciência como campo quase-autónomo de poder, que, nunca tendo sido liberto da influência de outros campos, parecia possuir um grau de auto-governação (Fournier, Germain e Maheu 1975; Bourdieu, 2001). Em suma, a sociedade neoliberal é a sociedade dos ditames do mercado capitalista que tenta subjugar as instituições académicas e científicas às necessidades do actual modo de produção (e respectivas instituições financeiras), e esvaziar a noção de ciência enquanto bem público, para além da contribuição para as empresas, amputando assim os laços entre ciência e outras esferas como a cultura, a política e o debate público, a dita sociedade civil, os movimentos e associações sociais, etc.
Aqui chegamos a uma ideia de fetichismo técnico-cientificista que tem como uma das suas características a redução da relação entre ciência e sociedade à relação entre ciência/conhecimento (preferencialmente tecnificado) e tecido económico (incluindo a finança), relegando para segundo plano, ou mesmo descartando, tudo o que não se compraz a esta última relação, por ser entendido como socialmente inútil e, portanto, não merecedor de financiamento público, constituindo uma gordura a ser estripada. Isto desemboca numa reacção desdenhosa, cheia de violência simbólica, face às humanidades, às ciências sociais e humanas e mesmo à ciência fundamental que se mostre incapaz de se traduzir em mercadorização. As actuais políticas científicas transparecem ainda outras características desse fetichismo cientificista. A saber: a transfiguração de uma atitude positivista de pensar as ciências experimentais como capazes de fornecer um conhecimento da natureza (resumida essencialmente à categoria de mercadoria), do homem (desejavelmente empreendedor e agente capaz e autónomo no mercado) e da sociedade (moldada segundo os ditames da teoria económica mainstream), resolvendo todos os problemas económicos e estruturais do mercado capitalista (o que na mentalidade neoliberal equivale a resolver todos os problemas das pessoas); e ainda outro corolário cientificista de cariz metodológico - considerar o método quantitativo e experimental das ciências ditas duras como o único válido em todos os campos do conhecimento, incluindo as ciências sociais e humanas. Constitui também uma mistificação ideológica que recusa quaisquer laços entre factos e normas, para usar os termos de Habermas, de pensar a ciência para além de uma racionalidade instrumental, obscurecendo a relação entre ciência e sociedade e um potencial enriquecimento da experiência humana.
As atuais políticas científicas não constituem apenas um fenómeno nacional mas inserem-se no bloco neoliberal europeu conhecido como União Europeia e inscritas em programas como o Horizonte 2020. O impacto da política de ciência e gestão neoliberal estende-se muito além da mercadorização levada a cabo pelo sistema de patentes nos métodos, organização e conteúdo da ciência. Os resultados comuns da relação entre o aprofundamento das características estruturais do capitalismo, incluindo o eixo ideológico, e as instituições académicas e científicas incluem: a reversão do financiamento público para as universidades; a separação das missões de pesquisa e ensino; o aumento do número de docentes temporários e à exploração (levada ao infinito segundo a famosa equação marxista) dos investigadores que dão aulas de forma “voluntária” sem remuneração; o estreitamento das agendas de investigação para se concentrarem nas necessidades dos operadores comerciais/empresariais; uma crescente dependência da aceitação pelo mercado para julgar disputas intelectuais e moldar projectos, programas e currículos; e o fortalecimento intenso da propriedade intelectual, na tentativa de comercializar o conhecimento, o que dificulta a produção e difusão da ciência e o restabelecimento dos laços com o debate e o esclarecimento públicos, a cultura, as associações e outras organizações não comerciais e não-governamentais da dita sociedade civil.
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