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Morrer sim, mas devagarinho?

"Remontam ao século III antes de Cristo as primeiras referências à prática da eutanásia no território que viria a ser Portugal. Já o historiador...”
É falso. A citação é falsa. A eutanásia é crime e ninguém no nosso país iria praticar crimes e muito menos relatá-los. Há um relato literário sobre o assunto no conto O Alma-Grande de Miguel Torga e é tudo. Ainda por cima, é um crime que não tem vantagens económicas. Seria praticado, muito provavelmente, a pedido da vítima, por misericórdia ou compaixão perante um sofrimento intolerável de um nosso semelhante. É por demais evidente que uma situação dessas não pode existir, nem nunca existiu.
As recentes palavras da bastonária dos enfermeiros no programa de rádio Em Nome da Lei são a prova provada de que tal realidade não existe no nosso país. Na verdade, a bastonária referiu que tinha assistido a médicos sugerirem a administração de insulina para provocar o coma, acrescentando que não estava a dizer que o faziam, mas sim que era preciso falar dessas situações. Inquirida pela pela jornalista, não negou a existência de situações ilegais, dizendo o suficiente para conseguir, como pretendia, que a questão fosse discutida para além do imediato impacto do programa radiofónico em que participava.
Na Ordem dos Médicos (OM), talvez em função de posições individuais relativamente à legalização da eutanásia, as declarações da bastonária foram motivo para uma série de denúncias, como resulta do teor do comunicado imediatamente publicado. A OM participou os factos a diversas instituições, entre elas, o Ministério Público, para — dá sempre gosto lê-lo — “os procedimentos tidos por convenientes”. Salvo melhor parecer, diria que, em vez de fazer “queixinhas”, a OM podia e devia, por si só, informar-se e informar-nos directamente e sem preconceitos.
Declaração de interesses: sou a favor da eutanásia e subscrevi o recente manifesto Direito a Morrer com Dignidade. Não o fiz propriamente por achar que há um direito a morrer ou por qualquer razão jurídica. Não o fiz por considerar que a morte sem recurso à eutanásia e após grande sofrimento não possa ser digna. Claro que pode. E claro que se pode defender que a disposição da nossa Constituição que determina que “a vida humana é inviolável” não permite a legalização da eutanásia. Como, de resto, se afirmou relativamente à legalização da interrupção voluntária da gravidez. Mas são meras construções jurídicas e a questão de fundo não me parece ser jurídica.
É uma questão de concreta humanidade e amor ao próximo. Aceitar a legalização da eutanásia exige-nos a capacidade de aceitar que o “outro em sofrimento” não queira viver um pesadelo existencial sem outra saída que não seja a morte e possa evitar esse pesadelo e pôr termo à vida de uma forma não clandestina e angustiada mas antes, tanto quanto possível, tranquila e em paz. É também a possibilidade de alguém a quem amamos não ter de sofrer absurdamente.
Claro que, se neste drama existencial introduzirmos a religião e, nomeadamente, a convicção de que a vida humana é sagrada e que só Deus a dá e a pode tirar, a equação — que não é fácil — torna-se muito complicada. Compreende-se perfeitamente que o Papa e outros responsáveis religiosos, bem como muitos crentes sejam contra a eutanásia e contra a interrupção voluntária de gravidez, mas também há certamente muitos crentes que não o são. A própria bastonária dos enfermeiros defendeu que, para si, não havia incompatibilidade entre a sua fé e a defesa da eutanásia. Como é evidente, uma eventual legalização da eutanásia exigirá sempre não só uma prudente regulamentação, como o respeito de todas as objecções de consciência.
É certo que, como muitos dos opositores da legalização da eutanásia referem em defesa da sua posição, haverá casos de pessoas que, tendo afirmado o seu desejo de morrer, vêm mais tarde a agradecer o não terem sido ajudadas a morrer. Era o desespero da dor e do momento e tais testemunhos — ainda que relatados por terceiros — são impressivos. Neste campo dos testemunhos, os defensores da legalização estão mais fragilizados, já que os mesmos se revelam muito difíceis de obter: quantos testemunhos e agradecimentos se podem relatar de pessoas que, por terem sido ajudadas a morrer, se viram poupadas a terríveis sofrimentos que não queriam viver e que não viveram?
Verdade seja dita que estou absolutamente convencido de que a maior parte das pessoas tem uma opinião pró ou contra a eutanásia e que não serão mais ou menos debates que a modificarão. A legalização da eutanásia deverá ser decidida na Assembleia da República ou em referendo? Não sendo favorável ao referendo, reconheço que tem, indiscutivelmente, uma enorme vantagem: uma muito maior legitimação da decisão aos olhos da opinião pública e dos transitórios ocupantes das cadeiras do poder, pelo que dificilmente seria revogada sem ser por outro referendo.
Francisco Teixeira da Mota, Advogado
Artigo publicado no jornal Público 04.03.2016
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