A despenalização da morte assistida ou a cultura do respeito

Aqui defende-se que cada uma e cada um possa, (auto)definir-se, escolhendo as suas escolhas, traçando os seus planos de vida, mesmo que nada disto encontre o conforto da maioria da adesão social. Artigo de Isabel Moreira.

10 de março 2016 - 17:46
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Defender a despenalização da morte assistida e a sua regulamentação não se confunde, como tem sido confundido, com o suicídio. O suicídio era punido no Código Penal do Estado novo, o que é em si mesmo uma abstração, já que não há como punir quem se suicida. Hoje, o suicídio não é crime. É uma tragédia na qual muitos de nós temos os nomes de amigos, amigas e familiares inscritos. O direito é mudo quando alguém se atira em desespero de uma ponte.

Defender a despenalização da morte assistida é outra coisa: trata-se de defender a vida; trata-se de defender a definição pessoalíssima do que é ainda uma vida materialmente digna; trata-se de não oprimir as opções decorrentes do direito à personalidade do indivíduo concreto que, de forma consciente, informada e reiterada, pede para que a sua morte física inevitável, em sofrimento incomensurável, seja abreviada. E por quê? Porque esse individuo, no respeito pelas convicções dos outros, mas esperando respeito pelas suas, quer que a sua vida não seja uma abstração, mas um acontecimento que tenha como parte fundamental do seu significado a dignidade do mesmo. Porque esse indivíduo reclama para si a autonomia de dizer da medida do que é a sua vida.

É difícil discutir uma matéria que exija de todos o desprendimento das conceções éticas, religiosas, sociais ou morais de cada um em prol da exigência de se colocar no lugar do outro, dizendo eu não sou esse outro e não dito o seu comportamento pelo meu.

A exigência é colocar a questão no concreto da indisponibilidade geral do indivíduo e não numa definição impositiva e abstrata dos valores da autonomia e da liberdade nas mãos do Poder ou da coletividade ou de uma maioria política ou de sufrágio.

Ninguém defende um Estado selvagem sem limites à dignidade constitucional da pessoa humana (como a tortura, ainda que consentida), mas aqui defendemos os limites opostos: defendemos que a coletividade não pode invocar a dignidade abstratamente, sem conexão com a personalidade individualíssima, para impedir que cada um tenha o direito de ser tratado como um cidadão singular e não como um modelo abstrato de comportamento.

Aqui defende-se que cada uma e cada um possa, (auto)definir-se, escolhendo as suas escolhas, traçando os seus planos de vida, mesmo que nada disto encontre o conforto da maioria da adesão social.

Viver é um direito e proteger a vida é um dever do Estado, ninguém o contesta. Contesta-se que não haja o direito à renúncia de uma vida que para o habitante dessa vida é a forma de proteger a dignidade da mesma até ao seu termo.

Nada disto é redutor ou adesão a uma alegada cultura da morte. Tudo isto é expansivo na humanidade da não imposição da padronização moral. Tudo isto é a fundamentação do que nos torna únicos e irrepetíveis num mundo secular que, precisamente em nome da definição individual e autónoma de vida digna, não pode ter a crueldade de fazer uma remissão para a utilização confessional da dignidade da pessoa humana.

Isso seria uma cultura de imposição.

Estamos a falar de uma cultura de respeito.

Isabel Moreira, deputada.

 

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