“O desespero fez com que me tornasse um kamikaze
agora sou persona non grata e amizade indesejada
Sou um kamikaze angolano e esta é a minha missão
não tenho tempo para repetição
não tenho tempo para refrão”.
Ikonoklasta (Luaty Beirão), Sou Um Kamikaze Angolano E Esta É A Minha Missão
A entrada na cena da política angolana de Luaty Beirão teve o ímpeto de um kamikaze. Foi num concerto que reuniu cerca de 3 mil jovens, a 27 de fevereiro de 2011, que Luaty, também conhecido como Ikonoklasta e Brigadeiro Mata Fracuzx, surpreendeu os amigos e o público com um discurso em que clamou pelo fim do regime. “Explorador dos oprimidos! Zédu!”, gritou o rapper, ouvindo a assistência gritar: “Foraaaa!” (Zédu é a alcunha do presidente José Eduardo dos Santos).
Antes pedira a um dos filhos do presidente, Danilo, presente na sala, que dissesse “ao papá”: “Não queremos mais ele aqui. 32 [anos de poder] é muito. É muito!” Em seguida, mandou “pro caralho” Dino Matross (secretário-geral do MPLA), Virgílio de Fontes Pereira (líder da bancada parlamentar do MPLA) e exibiu uma faixa onde se lia “Ti Zé tira o pé – Tô prazo expirou há bwé!”, convocando uma manifestação pacífica pela democracia para o dia 7 de março. (Ver vídeo aqui)
Dias depois, Luaty usou um vídeo posto nas redes sociais para esclarecer aqueles 2 minutos no Cine Atlântico, no concerto em que a principal estrela era o também angolano Bob da Rage, afirmando que assumia e mantinha tudo o que dissera e apenas achava necessário pedir desculpas ao filho do presidente: “É injusto porque ele não me fez nada e não havia necessidade de o expor daquela maneira”, reconheceu. Quanto aos outros, além de não ver motivos para desculpas, só lamentou ter-se esquecido de mais nomes e citou outros dois: Rui Falcão (governador da província de Namibe) e Bento Bento (então governador da província de Luanda).
No mesmo vídeo, respondeu aos que o acusavam de ser um “filho do regime”: “Eu chamo-me Luaty Beirão, sou filho de João Beirão, o primeiro diretor da FESA, Fundação Eduardo dos Santos, sou portanto, como me acusam, um filho do regime, mas não vejo porque isso me obrigaria a seguir a linha de pensamento do meu pai. (…) Tenho o meu próprio cérebro.”
Regime em polvorosa
A manifestação de 7 de março fracassou, mas conseguiu pôr o regime em polvorosa. À televisão pública acorreram todos os figurões do regime para denunciar a convocatória dos jovens revolucionários, que ficariam conhecidos como os “revus”. No dia marcado, um enorme dispositivo de segurança deteria 12 pessoas, ente elas o próprio Luaty e uma jornalista do Novo Jornal.
Mesmo assim, entrevistado pela jornalista Marta Lança, do Buala, o rapper destacaria que a convocatória provocara “uma certa tomada de consciência da sociedade civil para os problemas que a assolam”, sublinhando que “quer se fosse a favor ou contra (…) ninguém ficou indiferente ao assunto, os jovens sentiram uma euforia que não me recordo de testemunhar, a não ser quando Angola ganha jogos importantes de futebol”. E o mais importante: “Foram mais flagrantes as evidências das fragilidades do regime, que revelou, ao descontrolar-se, não ter assim tanta certeza da sua popularidade e adoração”.
Quanto às acusações devido à linguagem que usara na intervenção durante o concerto, Luaty, justificou-se, na mesma entrevista: “não preparei o meu comício com escolha sábia de palavras polidas, não tive o sangue-frio suficiente para manter o tom de voz dentro dos limites que se diz publicamente aceitáveis”, reconheceu, justificando: “Foi assim que saiu. Se o uso de palavrões num ato público me descredibiliza ou me tira a razão, deixo ao livre arbítrio dos meus pares”.
“Velho narcisista
assim que a prole cair,
vais sair do dinheiro
vais sair do BI.
Vais recolher os teus filhos
e fugir do país
e com um pouco de sorte
acabas no TPI.”
DJ Pelé c. Ikonoklasta - Fortificando a Desobediência
Duas licenciaturas e uma viagem à boleia
[caption align="right"] Luaty Beirão[/caption]
Henrique Luaty da Silva Beirão nasceu em Luanda a 19 de novembro de 1981 e já faz parte de uma terceira geração de angolanos, da sua família, nascidos em Angola. Licenciou-se em engenharia eletrotécnica em Plymouth, no Reino Unido. “Queria estar num sítio onde pudesse aprender o mais possível, onde pudesse estar em contacto com uma língua diferente, com pessoas de vários pontos do mundo”, justificou numa entrevista ao Maka Angola.
Um marco para o despertar da sua consciência política seriam a participação na megamanifestação contra a invasão do Iraque, em Londres, em 2003, e o bloqueio da universidade de Montpellier, França, onde tiraria uma segunda licenciatura em Economia. Passou duas semanas a dormir nas instalações ocupadas, “mais por uma questão de solidariedade”.
Concluída a segunda licenciatura, Luaty Beirão empreendeu uma viagem à boleia entre Lisboa e Luanda. Saiu da capital portuguesa com 115 euros, quatro t-shirts, dois ou três calções, um saco de dois quilos de frutos secos que seriam a sua refeição quando não aparecesse outra coisa. “Queria palmilhar por terra o máximo de países africanos possíveis, beber da experiência, enriquecer-me espiritualmente”, explicou.
Foi com a certeza de ir encontrar solidariedade, da “gente simples de África, (…) que é igual à gente simples um bocado por todo o mundo”. De tal forma a encontrou que, ao chegar ao destino, ainda levava um quilo dos frutos secos iniciais.
Crente na bondade do ser humano
Na mesma entrevista faria uma profissão de fé no ser humano que é a chave para se compreender o o seu pensamento e a sua ação posteriores:
“Eu não sou crente, mas acredito no ser humano, acredito que existe a bondade ainda suficiente para nos inspirar, para nos servir de combustível, para sermos também pessoas melhores. E isso para mim é que é a manifestação do divino. Porque não tenho religião, não acredito em Deus, sou ateu, mas acredito nos seres humanos.”
A ligação à música vinha de muito cedo, dos 13 anos de idade, e encontrou no hip hop a sua influência. “É uma corrente que existe [em Angola] desde o fim dos anos 90, princípio dos anos 2000” explicou Luaty, destacando que a música de intervenção naquele momento, era quase única e exclusivamente “um braço dentro do hip hop”, e apontando como primeira grande influência o grupo Filhos da Ala Este, cinco jovens “com um tal discernimento, uma tal clareza de ideias, eu senti-me um autêntico ignorante. Eles tiveram essa força com a música deles. Fizeram-me sentir estúpido e totalmente desconhecedor do país”.
Noutra entrevista ao jornal Mapa, Luaty desenvolveria esta ligação do hip hop ao movimento dos jovens revolucionários: “Tu vens do hip hop, daquilo a que se pode chamar o hip hop verdadeiro, underground por natureza. O hip hop é político, foi assim que surgiu, como uma arma, um meio para expressar a revolta. Desde Dead Prez, passando por Chullage, até ao MC K, são vários os MC’s e os temas que nos fizeram pensar, que nos despertaram a consciência para problemas urgentes da sociedade. A cena em Angola pareceu-me ser bastante interessante e original. Num concerto em que estive, a sala estava cheia de pessoal atento às letras e havia vários rappers a rimarem sobre o quotidiano e a vida do povo, o que só por si já é uma denúncia da pobreza em que as pessoas vivem. Estarei a romantizar? Ou poderá o movimento de hip hop angolano ser também um movimento de resistência? O movimento hip hop angolano é a força motriz por detrás desta juventude que agora começa a rasgar a manta do medo e a gritar a plenos pulmões José Eduardo Fora! […] Aqui em Angola o hip hop consciente, vulgo underground, vulgo revolucionário, é sem sombra de dúvida a banda sonora desta juventude que está nas ruas e isso digo-o porque o testemunhei de forma inequívoca.”
“E por mais cocaína que me enfiem na roda
defendo a minha utopia
armado só de retórica
e mesmo que resolvam calar-me agora,
as palavras estão soltas
e não há anti-motim que as controla!”
DJ Pelé c. Ikonoklasta - Fortificando a Desobediência
Armadilha fracassada
Em junho de 2012, Luaty viajou para Lisboa e foi alertado por dois funcionários do handling do aeroporto que a polícia mexera numa roda de bicicleta que ele despachara como bagagem. Quando chegou ao destino, a polícia portuguesa já recebera uma denúncia das autoridades angolanas e encontrou 1,7 quilos de cocaína num saco agarrado à bicicleta.
Mas o interrogatório judicial de Luaty Beirão demorou apenas 30 minutos – com o juiz de instrução criminal, por proposta do DIAP de Lisboa, a deixar sair o músico em liberdade diante das evidências de que caíra numa cilada.
Apesar disso, não houve qualquer reação do governo português perante a tentativa de incriminação de um cidadão, que também a nacionalidade portuguesa, com a introdução ilegal de cocaína em Portugal.
Neste vídeo, o músico explicou o que acontecera.
A absurda acusação de tentativa de golpe de Estado
Em 21 de junho deste ano, a polícia angolana prendeu 15 pessoas, a quem as autoridades acusam de preparação de rebelião e atentado contra o presidente da República.
Além de Luaty Beirão, os presos foram Nito Alves, Afonso Matias “Mbanza Hamza”, José Hata, HItler Samussuko, Inocêncio Brito “Drux”, Sedrick de Carvalho, Albano Bingo, Fernando Tomás “Nicola”, Nelson Dibango, Arante Kivuvu, Nuno Álvaro Dala, Benedito Jeremias, Domingos da Cruz e Osvaldo Caholo.
Durante três horas, o procurador-geral, general João Maria Moreira de Sousa, e o ministro do Interior, Ângelo Tavares justificaram a medida. Apresentaram um vídeo secretamente filmado por um agente governamental infiltrado, como prova inequívoca do ato de preparação da rebelião.
No vídeo, disse o Maka Angola, Domingos da Cruz e Luaty Beirão discutem formas de mobilização popular e divergem sobre as consequências. Domingos da Cruz defende a desmobilização imediata em caso de reação armada por parte das autoridades contra manifestantes. Por sua vez, Luaty Beirão opina que a violência institucional não deve intimidar os manifestantes, mesmo que as forças policiais e os militares disparem contra os manifestantes.
Em comunicado de imprensa, a Procuradoria-Geral da República afirmou que os jovens se reuniam regularmente desde o dia 16 de Maio, com o objetivo “de formar formadores para mobilizar a população de Luanda para uma insurreição e desobediência coletiva”.
Os instrumentos para a realização do alegado golpe de Estado seriam “manuais de instruções e outros documentos, bem como escritos em cadernos com teores comprovativos das intenções criminosas do grupo”. Os detidos foram interrogados por terem participado numa série de três debates semanais baseados na obra de Gene Sharp, famoso académico pacifista norte-americano, “From Dictatorship to Democracy: A Conceptual Framework for Liberation” (Da Ditadura à Democracia: Uma Abordagem Conceptual para a Libertação), uma obra básica para estratégias de luta não-violenta contra ditaduras no mundo, conhecido como um modelo para a resistência não-violenta contra regimes repressivos.
Mais absurdo foi o comunicado da Polícia Nacional afirmando que os jovens foram detidos em flagrante delito, enquanto supostamente preparavam atos contra a ordem pública e atentados contra a segurança de Estado.
O próprio Presidente da República, José Eduardo dos Santos, defendeu, num discurso ao Comité Central do MPLA, a 2 de julho, a acusação de tentativa de golpe de Estado, comparando o sucedido com os acontecimentos de 27 de maio de 1977, na sequência dos quais o regime de Agostinho Neto desencadeou uma vaga repressiva, de extrema violência, que custou a vida de milhares de angolanos.
Greve de fome
Em 21 de setembro, Luaty Beirão iniciou uma greve de fome para que seja aplicado o direito dele e dos outros detidos de aguardar o julgamento em Liberdade. Ao fim de 28 dias, teme-se pela sua vida. Outro preso, Albano Bingobingo está há 10 dias também em greve de fome. As denúncias afirmam que “Os olhos do Bingobingo já estão bem fundos. Ele está muito doente, tem a perna inflamada e está praticamente encarcerado numa pocilga humana, sem qualquer assistência médica ou medicamentosa”.
A prisão dos 15 jovens desencadeou um enorme movimento de solidariedade a partir das redes sociais. Alguns dos mais ativos elementos são muito conhecidos na vida cultural angolana, como o ator Orlando Sérgio, o primeiro negro a representar o Othelo em Portugal; o artista plástico Kiluangi kia Henda, o escritor Ondjaki, o fotógrafo Rui Sérgio Afonso, os músicos Pedro Coquenão e Aline Frazão, a arquiteta e curadora Paula Nascimento e o cineasta Mário Bastos. Nos primeiros vídeos produzidos pelo grupo participaram personalidades angolanas como os músicos Kalaf Epalanga e Paulo Flores, o artista plástico Nastio Mosquito, e ainda figuras públicas de outras nacionalidades, como o escritor moçambicano Mia Couto, o cantor e compositor brasileiro Chico César, ou a espanhola Pilar del Rio, presidente da Fundação Saramago.
Como diz o escritor José Eduardo Agualusa, num artigo do Expresso, “a cada hora que passa, à medida que se deteriora o estado de saúde de Luaty, deteriora-se também a imagem de José Eduardo dos Santos”.
“E só uma mente entorpecida, com 30 anos de anestesia
É incapaz de encontrar UM angolano de alternativa.
Mas que porra de país sem perspetiva,
Que acha que sem o zé escorregamos na ravina.
E ver quem engrossa o coro é o mais angustiante,
Pois lá estão os diplomados cantando "instabilidade"!
Mas a instabilidade só quem pode promover,
É a irresponsabilidade de quem se agarra no poder.
E nem consegue mais fingir que não sabe aceitar crítica,
Vai logo reagir, punindo com raiva e malícia
E o que se está a conseguir com a constituição atípica
É metê-la ao mesmo nível do que um livro do Patinhas!”
Ikonoklasta - Nós e os Outros
Artigo de Luis Leiria, para esquerda.net