Há 40 anos a PIDE assassinou Ribeiro Santos, mas o povo perdeu o medo!

porAlberto Matos

Olhando 40 anos para trás, não tenho dúvida de que o funeral de Ribeiro Santos foi o dia em que o povo perdeu o medo. O medo que tu próprio perdeste naquele anfiteatro, em 12 de Outubro. E tinhas toda a razão, Ribeirinho: o que nos une é muito mais forte do que o que nos possa dividir. Artigo de Alberto Matos

11 de outubro 2012 - 0:08
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Como se fosse ontem! Era um fim de tarde chuvoso e cinzento duma quinta-feira de Outono. Uma arreliadora gripe, com febre perto dos 40 graus, sem perspetivas de recuperação até ao fim de semana que se anunciava sombrio. Nem eu sonhava quanto…

Bateram à porta, com violência. Com cautela, abrimos. De rompante entrou a Ana Rosa, esbaforida, com a voz embargada. “Acalma-te rapariga, respira fundo.” E as palavras soltaram-se, como balas: “Mataram o Ribeirinho, em Económicas. Eu estava lá!” “O Ribeirinho? Não pode ser!”…

Ribeirinho, diminutivo carinhoso de José António Ribeiro Santos, estudante de Direito, baixa estatura, maturidade invulgar que, aos 26 anos, já transparecia na cabeleira densa e polvilhada de branco.

Dias antes, após uma RIA – Reunião Interassociações de Lisboa – e algumas altercações com o João Isidro, de Direito, um grupo de estudantes do MRPP que integrava Saldanha Sanches, fez uma espera aos POP’s (Por um Ensino Popular) no longo corredor da Sala de Alunos de Medicina, em Santa Maria. A coisa ia dando para o torto, não fora a calma do Ribeirinho: “o que nos une é mais forte do que o que nos divide.” Foram as últimas palavras que trocámos.

Na tarde de 12 de Outubro de 1972 decorria um meeting contra a repressão, numa das escolas mais politizadas da academia de Lisboa – o ISCEF, hoje ISEG. Os estudantes, desconfiados de um dos “bufos” que rondavam as instalações, acabaram por levá-lo para o anfiteatro onde decorria o meeting, com um capuz enfiado na cabeça. Cena caricata: a Direção do Instituto telefonou para a sede da PIDE/DGS para confirmar se o indivíduo era mesmo informador…

E a polícia política enviou dois pides “oficiais” ao ISCEF para identificar o “bufo”! Mais caricato e chocante para os estudantes apinhados no anfiteatro: dois membros da Direção da AEISCEF afeta ao PCP - UEC, Manuel Aranda da Silva e Vasco Cal, serviram de cicerones aos pides no anfiteatro. Estes retiraram o capuz ao “bufo”, viraram-se para os estudantes e menearam a cabeça com ar de gozo: “não, este não é dos nossos”.

A provocação tinha ido longe demais. Aos gritos “Morte à PIDE!”, dezenas de estudantes lançaram-se sobre os dois bandidos armados. Ribeiro Santos foi dos primeiros e caiu varado pelas balas da pistola do assassino António Joaquim Gomes da Rocha que feriram ainda José Lamego, preso após estes trágicos acontecimentos. O Rocha, como tantos outros pides, foi libertado da prisão de Alcoentre em 1975 e nunca pagou por este e outros crimes.

Sexta-feira, 13 de Outubro, foi um vendaval de manifestações de estudantes indignados por toda a cidade de Lisboa. Inventámos novas formas de contacto com a população, como uma distribuição de comunicados em plena luz do dia (não era fácil!) num supermercado Pão de Açúcar da Avenida dos Estados Unidos da América. Por esses dias as vidraças dos bancos transformaram-se em alvo predileto da ira estudantil, como símbolo do poder dos verdadeiros donos do regime. Uma realidade que permanece e uma ideia com potencialidades nesta eram dos especuladores…

Sábado, 14 de Outubro. O funeral de Ribeiro Santos foi a maior manifestação de massas dos últimos anos da ditadura. Ao chegar junto do atual Teatro “A Barraca”, um enorme burburinho no Largo de Santos arrastou-me com centenas de pessoas pela calçada que hoje dá pelo nome Ribeiro Santos. A PIDE e a polícia de choque tinham arrancado à força a urna que os familiares, camaradas e amigos de Ribeiro Santos queriam transportar às costas. Este gesto cobarde fez despertar a fúria da multidão que perseguiu os sequestradores até ao cemitério da Ajuda, cercado pela polícia.

Na batalha campal que se seguiu, entre Santos e a Ajuda, passando pelas Janelas Verdes, Alcântara, Junqueira, Santo Amaro, Aliança Operária, Rio Seco e Boa Hora, tive a plena sensação do que é perder o medo aos esbirros do fascismo. As pedras da calçada foram levantadas e arremessadas contra tudo o que tivesse os tons de azul e cinzento da polícia, estivesse a pé ou nos famosos “níveas” e carrinhas dos “choques”. Durante horas o povo tornou-se dono da cidade e até os habituais “apelos à calma” dos reformistas eram olhados de soslaio e com desprezo.

Nem ao Domingo os manifestantes descansaram, sucedendo-se os comunicados à população. Até que, na noite de segunda-feira, 16 de Outubro, reuniu no Hospital de Santa Maria uma RIA extraordinária, com o objetivo de aprovar um Manifesto à População. Não se tratava de mais um comunicado, mas da posição oficial da RIA, palco de intensa disputa política. Ao fim de horas (como sempre!) de acesa discussão, acabou por ganhar a versão dos POP’s, com o título simples e contundente: VINGAREMOS RIBEIRO SANTOS!

Obviamente ficámos satisfeitos, mal sabendo o que a PIDE nos reservava nessa madrugada. Emprestei o meu velho Fiat 850 ao Pedro Ferraz de Abreu, de Ciências, intuindo sem perguntar (nesse tempo havia perguntas indesejáveis…) que ele iria desempenhar alguma tarefa importante. Curiosamente, ambos escapámos às prisões que a PIDE desencadeou, pelas 7 horas de 17 de Outubro: o Pedro porque não foi dormir a casa, foi avisado pelo piquete de estudantes postado à entrada da sua rua; eu, porque o ficheiro da PIDE estava atrasado duas moradas e a brigada só me bateu à porta às 11 da manhã…

Vinte anos mais tarde, ao consultar o arquivo da PIDE, deu-me um enorme gozo ler a frase, escrita pelo punho do agente Carlos Augusto Martins: “Deslocando-nos à sua atual morada, na Avenida João XXI, apurou-se que o referenciado e seus familiares estavam ausentes de casa. Feitos todos os esforços ao nosso alcance para não prejudicar o serviço, não nos foi possível, todavia, proceder à sua captura”. Felizmente, a burocracia é cega, estúpida e atrasada!

As oito prisões tentadas (três falhadas, incluindo a do Firmino da Costa) atingiram quatro membros da Direção da Associação de Ciências e outros quatro do Técnico, numa tentativa falhada de intimidação e desmobilização dos estudantes. Os nossos camaradas estiveram presos até aos 90 dias permitidos, sem julgamento. E nós andámos três meses “a monte”, numa primeira experiência de clandestinidade que se revelou muito útil. Entre vários amigos solidários, lembro Pedro Botelho, Conceição e Silva, José Calado, João Abel Manta e José Fanha, todos arquitetos, por coincidência...

No nosso caso, éramos membros da anterior Direção da AE, já que a Direção em funções, afeta à UEC e eleita sob enorme chantagem, com o Técnico cercado pela polícia, foi muito “moderada” em todo o processo, a exemplo dos seus camaradas da Direção de Económicas que conduziram os dois pides para dentro do anfiteatro. Para nós, foi uma medalha de mérito antifascista concedida pela PIDE. Só voltou a haver eleições no Técnico depois do 25 de Abril que, obviamente, ganhámos. E, no dia 26 de Abril, o carro do Diretor fascista, Sales Luís, desceu todos os degraus da rampa do Pavilhão Central.

12 de Outubro de 1973, um ano após o assassinato de Ribeiro Santos, foi dia de todas as manifestações, em Lisboa e no Porto: em repúdio por este crime hediondo, mas também contra a guerra colonial e a farsa eleitoral, a última ensaiada pelo fascismo. As manifestações nunca mais pararam e os capitães já conspiravam, mas nós não sabíamos… O 25 de Abril de 1974 estava quase a chegar e, nesse dia glorioso, a PIDE ainda assassinou quatro jovens, disparando da varanda da Rua António Maria Cardoso.

Olhando 40 anos para trás, não tenho dúvida de que o funeral de Ribeiro Santos foi o dia em que o povo perdeu o medo. O medo que tu próprio perdeste naquele anfiteatro, em 12 de Outubro. E tinhas toda a razão, Ribeirinho: o que nos une é muito mais forte do que o que nos possa dividir. Ontem como hoje, em bloco contra todas as troikas que querem dar cabo das nossas vidas. O teu exemplo é precioso para milhares de jovens de todas as idades, indignados e determinados em resgatar o futuro!

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