Em Outubro de 1972, Raimundo Santos era um jovem operário, militante do MRPP, que já tinha sido preso pela PIDE, quando ainda era então militante do PCP e do MJT1.
Como soubeste do assassinato do Ribeiro Santos?
Não sei exatamente como a notícia nos chegou ao bairro (Marvila, Beato). Eu e o Fernando Soares Pinto, que estávamos organizados no MRPP e já tínhamos estado presos, soubemos da notícia do assassinato de um estudante, mas não sabíamos ainda quem era. Decidimos então ir ao Técnico2 e encontrámos um comunicado onde vimos que se tratava do Ribeiro Santos que, nós conhecíamos das assembleias da Livrelco. Apreciávamos muito as prestações dele nessas assembleias, ele e o Sebastião Lima Rego eram as nossas referências nessas assembleias. Como pessoas de bairro que éramos, púnhamos alcunhas às pessoas de quem não queríamos dizer o nome, por razões de defesa. Ao Ribeiro Santos tínhamos-lhe posto a alcunha de “Tremidinho”, por ele ser uma pessoa que se empolgava muito nas intervenções que fazia. E ficámos chocados quando vimos a fotografia, julgo que esse comunicado foi feito pela Associação de Estudantes do Técnico, soubemos mais tarde que até esgotaram o papel, mas o comunicado foi profusamente distribuído pela cidade de Lisboa.
Como receberam a notícia?
Teve um grande impacto. Nós não éramos estudantes, vivíamos outra realidade, mas sentimos que as coisas estavam a tomar outra dimensão, outra violência, e isso tocou-nos muito.
Voltámos para o bairro, fizemos um comunicado. Na altura, tínhamos as “vietnamitas”, que eram maquinetas artesanais, feitas de madeira com uma seda, onde pregávamos o stencil, e com os rolitos conseguíamos fazer até mil comunicados por hora. Éramos uma máquina a imprimir aquilo e distribuímos o comunicado no bairro.
Na noite de sexta feira (13 de outubro de 1972) fomos ao Largo de Santos, que é hoje o Largo Ribeiro Santos, fomos a casa dele e foi tudo muito emotivo. Nesse tempo, os corpos ainda eram velados em casa.
Eu ainda trabalhava ao sábado de manhã, e lembro-me de dizer à minha mãe que queria almoçar cedo. A polícia cometeu um erro incrível, que foi deixar que o funeral acontecesse ao sábado, o que permitiu que nos mobilizássemos e pudesse ir bastante gente.
Quando pedi à minha mãe para fazer o almoço cedo, ela perguntou-me porquê e eu disse-lhe qual era a razão. A minha mãe ainda me disse: “tu não devias ir, és conhecido, já estiveste preso”. Respondi: “Pode começar hoje a revolução!” Eram as coisas em que pensávamos e com que sonhávamos.
Eu e o Fernando Soares Pinto, que éramos as pessoas ali mais ativas, mobilizámos as pessoas e fomos para o funeral, de gabardina e de barra de ferro, debaixo da gabardina.
Como reagiu a tua família?
A minha mãe não me disse nada, deu-me o almoço, mas assim que eu saí, ela vestiu-se para ir ao funeral. O meu pai perguntou-lhe: “Onde vais?” “Eu vou ao funeral do estudante que foi assassinado”. De caminho, o meu pai foi atrás dela. Só à noite é que soube, quando cheguei a casa e os vi todos sujos e esfarrapados, porque depois no contra-ataque da polícia de choque, quando houve a tentativa de levar a urna ao ombro, o meu pai e a minha mãe enfiaram-se numa mercearia/charcutaria que havia em frente à casa do Ribeiro Santos. Então, entrou uma multidão dentro da loja a fugir, que destruiu por completo o estabelecimento. O mais engraçado da história é que quando houve o avanço em direção à urna, a minha mãe pegou no braço do meu pai e levou-o de arrasto. Quando foi a retirada, foi o meu pai que puxou pela minha mãe e lá entraram pela charcutaria.
E depois do funeral?
Com a intervenção da polícia, as pessoas que estavam no funeral partiram-se em vários grupos e eu andei, até altas horas da noite, na zona ocidental da cidade. Lembro-me que estivemos junto ao ministério dos Negócios Estrangeiros, apedrejámos várias embaixadas, uma das que me lembro foi a da África do Sul. Os “Mercedes” que passavam, se tivessem símbolo de embaixada, saíam dali amachucados, e foi um pouco uma noite alucinante. Pensávamos que as coisas iam dar a volta, no sentido que ia haver uma mobilização, de que a “revolução”, como entendíamos na altura, ia crescer.
Nós não tínhamos a vivência das universidades, que era um mundo à parte, um microcosmos, onde as pessoas sabiam que este era da tendência tal e o outro da outra, etc. Nós vivíamos as coisas de uma forma muito mais clandestina, a nossa atividade era muito intensa no bairro. Como tínhamos a autonomia, com a tal “vietnamita”, produzíamos muita propaganda, que distribuíamos de noite e pintávamos muitas paredes. Tinham aparecido os sprays há pouco tempo o que nos dava uma capacidade de pintar paredes muito rapidamente e conhecíamos muito bem o bairro, Marvila, Beato, Xabregas. Uma história engraçada é que aproveitávamos bem as linhas de comboio. O bairro é cruzado por três linhas de comboio e nós usávamos as linhas de comboio para nos deslocarmos, baralhando completamente a polícia. Por exemplo, íamos a Xabregas fazíamos uma pintura ou distribuíamos um comunicado, metiamo-nos na linha de comboio e rapidamente estávamos em Braço de Prata. A polícia andava com as carrinhas “nívea”, como dizíamos na altura, de repente tinham informação que aparecia propaganda na estrada de Chelas ou no Poço do Bispo, mas não nos apanhavam. Nunca perceberam que nos deslocávamos com grande rapidez, porque usávamos as linhas de comboio.
O assassinato do Ribeiro Santos teve repercussão nos trabalhadores e no movimento operário daquela altura...
Sim. Porque foi muito divulgado. Não só porque os estudantes o fizeram, como nós ali em Marvila fizemos muita divulgação. Cabo Ruivo não era como hoje, estava cheio de fábricas e uma boa parte dos operários das fábricas eram ali do Beato, Poço do Bispo, Moscavide, Olivais, alguns também vinham da Margem Sul ou da linha de Sintra. O contacto era muito fácil e os comunicados que eram distribuídos num lado facilmente chegavam a outro. Ao contrário do que era habitual, em que a ditadura conseguia que a informação não circulasse, neste caso não conseguiu e isso teve repercussões, porque foi um assassinato e também porque naquela altura havia já um sentir diferente.
Um ano e meio depois deu-se o 25 de Abril...
Havia no ar um sentimento de que o regime não tinha futuro, não tinha muito mais tempo de vida.
As pessoas já se interessavam mais do que uns anos antes. Acho que havia no ar um espírito diferente e uma vontade e uma esperança de mudar. Era o que eu sentia e uma boa parte das pessoas sentia isso. Isso chegou a toda a gente. Era algo que não se podia abafar.
1 Movimento da Juventude Trabalhadora, criado na sequência das eleições de 1969.
2 Instituto Superior Técnico