Futebol: o ópio do povo?

Apresentamos aqui os pontos de vista de Óscar Mascarenhas e de Nuno Domingos sobre o mais popular desporto de Portugal.

03 de setembro 2014 - 18:29
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A crítica à presença exagerada do futebol nos media deve ser realizada a partir da vontade de conhecer o fenómeno, tanto do ponto de vista histórico, como a partir da sua inscrição social contemporânea.
A crítica à presença exagerada do futebol nos media deve ser realizada a partir da vontade de conhecer o fenómeno, tanto do ponto de vista histórico, como a partir da sua inscrição social contemporânea.

Os media são colonizados por notícias sobre futebol

Por Nuno Domingos

Progressivamente, o futebol foi ganhando um lugar destacado no espaço público e publicado português. Esta intensa presença deve ser criticada. A situação actual é o ponto mais agudo de um processo de colonização dos media por notícias sobre futebol. Não se trata apenas das notícias sobre as competições ou os relatos e transmissões das mesmas, mas toda a cobertura de um conjunto de acontecimentos que envolvem o próprio jogo, já para não falar do espaço de comentário que o futebol entretanto conquistou. A análise desta situação deve passar sobretudo por uma crítica à evolução do campo mediático em Portugal. O campo mediático, mais do que o futebol em si, constituirá o centro deste problema.

A crítica a esta presença exagerada do futebol deve ser realizada, no entanto, a partir da vontade de conhecer o fenómeno, tanto do ponto de vista histórico, como a partir da sua inscrição social contemporânea. Só assim se evitará uma critica precipitada que, à medida de outras críticas à cultura popular, parece por vezes responder apenas a determinados preconceitos de classe.


Escola de vadios

Na impossibilidade de poder escrever um texto especialmente destinado ao debate de hoje, recupero aqui algo que escrevi em março de 2000, mas que continua a refletir o essencial do meu pensamento sobre o tema. Por Óscar Mascarenhas.

A todos causou indignação ou, no mínimo, consternação, o que se passou na assim chamada assembleia geral de certo clube. Mas, curiosamente, a ninguém causou surpresa. Já vai sendo hábito, já está a transformar-se na nova (in)cultura do clubismo: nos momentos cruciais, as assembleias gerais de clubes têm a crescente tendência para deixarem de ser uma instância de debate e decisão democrática para se transformarem tão-somente em lugares mal frequentados. E com a maldição de serem sempre depois de jantar!...

Vamos agora a um ajuste de contas, isto é, saber quem é que deve ser responsabilizado pelo que se passou. Os verdadeiros culpados ultrapassam as fronteiras do clube e passeiam-se por zonas bem mais confortáveis e perfumadas, desfrutando a autocontemplação de um exercício irresponsável de se exibirem parlapatando diante de milhões, recorrendo a todas as desonestidades intelectuais, truques de rábula, grosserias de taberna e até ameaços de confronto físico. Refiro-me, como todos percebem – menos eles, felizes como andam à procura de cotão no umbigo –, aos supostos intelectuais, artistas, políticos e outras figuras de estrado que se alaparam nas televisões a discutir as minudências do coice em cuecas a que, quando jogado e aplaudido com gosto, se dá o nome de futebol.

O que fizeram os jagunços ocasionais da suposta assembleia do Benfica que não tivesse já sido ensinado por senhores de posição que, para mais, se gabam de fazer – segurem-se! – pedagogia na televisão?! Imagino que alguns desses cavalheiros, de tão contentes que estão consigo próprios, se sintam sinceramente predestinados para exprimir sábias opiniões sobre futebol. E até haverá alguns que cuidam ter uma atitude bem superior à mesquinha clubite dos outros. Haja uma alma caridosa que explique àqueles senhores que não, que não é isso o que realmente fazem.

Primeiro: ao contrário do que pensam, os seus sublimes pensamentos são apenas ouvidos pelos espectadores «da cor», que esperam, de alguém propagandeado como mais inteligente e capacitado, os argumentos e contra-argumentos que precisam de ter, no dia seguinte, no emprego ou no café. Em suma: procuram carregar de autoridade as baterias da conversa fiada.

Segundo: ao contrário do que julgam, todos esses debates (a começar na televisão de serviço público, onde até pugilato se ensaiou) acabam do mesmo modo, em grosserias e picardias e centram-se na discussão imbecil do que há de mais imbecil para discutir no futebol.

Terceiro: ao contrário do que se propõem, os debatentes funcionam como incitadores à violência, seja sobre os árbitros, seja sobre os dirigentes dos adversários, seja mesmo sobre os jogadores, transformados em objetos de apropriação e espiolhamento de intimidades pelo simples facto de serem empregados do clube.

A miséria maior do que estes intelectuais e notórios têm feito é reproduzir, como inevitável, o modelo ideológico e social que domina o futebol e que transforma os adeptos em vadios. Explico-me: uso aqui a palavra vadio, porque lumpen, do velho Marx, até poderia soar a coisa boa, mas é de lumpen que se trata, de gente que já não anseia por modelos sociais de igualdade e liberdade, mas pelo usufruto – nem que seja em sonho de momentos de dominação e exploração do outro. Os adeptos que, mal raia o dia, se colam às vedações dos estádios observando os atletas como cavalos em picadeiro reproduzem o mesmo raciocínio dos cartolas do grémio. A facilidade com que ali «despedem» jogadores e treinadores e os classificam como «chulos» ou «calões» em nada distingue esses adeptos dos donos do clube, com a diferença que aqueles não mandam nada. Mas sonham que. E isso é-lhes suficiente. Os intelectuais e notórios que têm ido às televisões não fazem outra coisa senão alimentar essa ilusão doentia.

Se o fascismo se tivesse lembrado de pôr estes intelectuais e notórios a discutir o coice em cuecas na televisão ainda hoje teríamos Câmara Corporativa.

Óscar Mascarenhas Jornalista 

Termos relacionados: Fórum Socialismo 2014