Estado Islâmico: Gestores de selvajaria

A brutalidade sectária do Estado Islâmico (EI) permitiu ao presidente sírio, Bashar al-Assad, fazer-se passar dissimuladamente por vítima: o incendiário que aparece como um bombeiro. Artigo de Muhammad Idrees Ahmad, publicado no In These Times.

22 de março 2015 - 10:12
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Execuções em massa divulgadas em vídeo para provocar pavor

Dois desenvolvimentos paralelos têm contribuído para a ascensão do Estado Islâmico (EI): a invasão do Iraque pelos EUA e a consequente marginalização da sua minoria sunita, e o abandono da insurreição popular na Síria por parte da comunidade internacional.
Antes da invasão, o militante jordano Abu al Zarqawi Mus'ab era uma figura marginal. A guerra deu-lhe uma base de apoio: Ele entrou no vácuo de segurança e lançou a Al Qaeda no Iraque (AQI). O projeto de Zarqawi foi auxiliado pela inaptidão das autoridades de ocupação. A dissolução do
Exército nacional iraquiano e a purga dos membros do partido Baath das burocracias estatais por parte do vice-rei Paul Bremer criou um grande grupo de sunitas descontentes. Com pouco a perder, muitos deles colocaram as suas armas e treino militar ao serviço da insurreição. A alienação foi completa quando, na sua tentativa de dividir o levante nacionalista, os EUA deram poderes a esquadrões da morte sectários e colocaram forças xiitas e curdas no reduto sunita rebelde de Fallujah.

Depois de o novo governo iraquiano lançar um ataque à cidade sunita de Tal Afar, em setembro de 2005, Zarqawi declarou guerra à população xiita do Iraque, e a AQI tornou-se num lar para os sunitas receosos da dominação dos xiitas.

Depois de o novo governo iraquiano lançar um ataque à cidade sunita de Tal Afar, em setembro de 2005, Zarqawi declarou guerra à população xiita do Iraque, e a AQI tornou-se num lar para os sunitas receosos da dominação dos xiitas. Mas a maioria dos sunitas do Iraque permaneceram cautelosos sobre os seus motivos: O âmbito das ambições da AQI - estabelecer um califado sunita pan-islâmico – transcendeu as fronteiras do Iraque, e, com as suas legiões de combatentes estrangeiros, manteve-se uma presença estranha.Ciente de que o acolhimento poderia não durar, Zarqawi decidiu dar à sua operação um verniz iraquiano. Em janeiro de 2006, formou o Conselho Mujahideen Shura (MSC), reunindo seis grupos, sobretudo locais, salafistas (puritanos sunitas) com um iraquiano a ocupar meramente a sua liderança formal. Três meses mais tarde, Zarqawi foi morto num ataque aéreo dos EUA e o MSC dissolveu-se pouco depois. Foi substituído em outubro de 2006 pelo Estado Islâmico do Iraque (EII).
Mas os sunitas indignaram-se que intrusos como Zarqawi transformassem a sua marginalização política
numa desculpa para a luta sectária. Eles queriam uma participação no futuro do Iraque, e não a insegurança interminável que o EII garantia. Nem tão pouco lhes interessavam as provocações do EII – bombardeamento de santuários xiitas, o massacre de civis - que os transformaram em alvos involuntários da vingança xiita. (Até a liderança central da al-Qaeda estava desconfiada por a sua imagem estar associada a uma agenda estritamente sectária.) Uma rebelião de tribos sunitas iraquianas, com incentivo e apoio dos EUA, finalmente expulsou o EII das cidades e vilas do Iraque, e em abril de 2010, os seus dois líderes foram mortos num ataque do Comando de Operações Especiais Conjuntas dos EUA (JSOC).
Foi a revolta na Síria, que começou em março de 2011, e a resposta brutal de Bashar al Assad, que relançou a sorte do EII. Começou como um movimento pacífico, não-sectário e popular pelos direitos democráticos e dignidade. Mas sob o ataque implacável do regime, alguns opositores do regime foram forçados a pegar em armas. Os jihadistas não entraram no conflito até um ano mais tarde, no entanto, ainda assim, permaneceram uma força marginal: Em agosto de 2012, a CIA poderia contar com
não mais do que 200 nas fileiras da oposição. Os nacionalistas que ambicionavam a queda do regime dominaram a sublevação. Mas carente de apoio internacional, a corrente principal da rebelião definhou.
Agosto de 2013 revelou-se um ponto de viragem. O regime de Assad desafiou a América e lançou um
ataque sarin em bairros na zona oriental de Ghouta, atravessando deliberadamente a "linha vermelha" que o presidente Barack Obama estipulou que desencadearia uma intervenção. Obama não conseguiu equiparar as palavras duras à ação, e um regime encorajado escalou a guerra. Os rebeldes da corrente principal alinhados com o Ocidente foram desacreditados. A estrela dos jihadistas aumentou.
Sob o novo líder Abu Bakr al Baghdadi, o EII tinha expandido as suas operações para a Síria. Em abril de 2013, rebatizou-se oficialmente de Estado Islâmico do Iraque e do Levante (al-Shaam) - EIIL. A sua coerência operacional foi reforçada pelos muitos ex-soldados iraquianos nas suas fileiras; os seus números foram aumentados por jihadistas libertados das prisões de Assad em 2011. Muitos desses homens tinham sido infiltrados no Iraque no passado pelo regime de Assad para manter os EUA sob
controlo. Mas quando a ocupação se dissipou, os jihadistas foram detidos no regresso.

Tendo o cuidado de evitar o confronto direto com o regime sempre que possível, o EILL expandiu a sua presença, essencialmente apropriando-se de território de grupos rebeldes sírios.

Tendo o cuidado de evitar o confronto direto com o regime sempre que possível, o EILL expandiu a sua presença, essencialmente apropriando-se de território de grupos rebeldes sírios. Ele usou esse território para impor o seu domínio medieval e continuar a sua guerra de atrito contra a rebelião anti-Assad. O EIIL assassinou os seus líderes e assediou os seus combatentes; também intimidou ou fez desaparecer ativistas da sociedade civil.
Com a presença do EIIL a crescer de forma cada vez mais intolerável, a resistência síria contra-atacou. Começando no dia de Ano Novo de 2014, os grupos rebeldes, incluindo o Exército Livre da Síria (FSA), a Frente Islâmica (IF), Ahrar al-Sham (AS) e até mesmo a afiliada oficial da Al-Qaeda, Jabhat al-Nusra (JAN), uniram-se para expulsar o EILL de Idlib, Deir Ezzor, grande parte de Aleppo e arredores de Damasco.
Mas, em 2013, a dinâmica no Iraque tin
ha mudado. Após a retirada dos Estados Unidos, deixaram de existir obstáculos ao governo sectário do primeiro-ministro iraquiano Nouri al-Maliki. Inspirada pela Primavera Árabe, a população sunita abandonada e vulnerável protestou. Mas, como Assad, Maliki respondeu com repressão e bombas de fragmentação; as suas forças atuaram como ocupantes.
A raiva sunita cresceu. No verão de 2014, o EIIL e o exército
Naqshbandi do ex-general iraquiano Izzat Ibrahim al-Duri finalmente cavalgaram a onda de ressentimentos promovendo um avanço relâmpago através do norte do Iraque. Apanhado de surpresa, o exército iraquiano numericamente superior desintegrou-se. Abandonou as suas armas fornecidas pela América para a vanguarda do EIIL. Mossul caiu, os sunitas comemoraram. E, com o seu poder de fogo reforçado, o EIIL voltou para a Síria triunfante.
Afirmando as suas aspirações mais amplas, o EIIL abandonou a referência geográfica do seu nome. O Estado Islâmico (EI), como é denominado agora, declarou um
"califado" global e, através de uma série de atrocidades horríveis, conseguiu levar os EUA a intervir militarmente. As suas vítimas eram jornalistas e trabalhadores humanitários, todos simpatizantes do povo sírio. A sua sede de sangue até levou ao recuo da Al Qaeda. A Al Qaeda sempre teve uma relação difícil com a sua fação Zarqawita. Mas a antipatia mútua tornou-se finalmente pública quando o chefe da Al-Qaeda, Ayman al Zawahiri, ordenou a dissolução do EIIL, e Baghdadi recusou. Em fevereiro de 2014, Al Qaeda repudiou oficialmente o EIIL.
Estes desenvolvimentos são narrados nos mínimos detalhes no indispensável livro
ISIS: Inside the Army of Terror de Michael Weiss e Hassan Hassan. Além da história, o livro apresenta uma análise granular da organização, ideologia, financiamento e recrutamento do EI. O livro explica a lógica estratégica da crueldade espetacular do grupo, dando aos leitores um vislumbre da mentalidade do EI através de uma série de entrevistas com os seus quadros. Também descreve as experiências comuns que colocam os seus líderes no caminho da jihad (Zarqawi foi radicalizado numa prisão da Jordânia; Baghdadi no acampamento americano Bucca). Mostra ainda como o EI garantiu a lealdade das tribos sob o seu domínio através da sua compra ou dominação, usando coerção ou cooptação.
Por outro lado, a obra
The Rise of Islamic State: ISIS and The New Sunni Revolution, de Patrick Cockburn, é uma polémica de elevada amplitude que culpa o apoio dos EUA e dos sauditas à rebelião anti-Assad pela ascensão do EI. Tem pouco ou nada a dizer sobre a ideologia ou a composição do EI. Agindo mais como um defensor do que um observador, Cockburn defende a aproximação ao regime de Assad.

A obra The Rise of Islamic State: ISIS and The New Sunni Revolution, de Patrick Cockburn, é uma polémica de elevada amplitude que culpa o apoio dos EUA e dos sauditas à rebelião anti-Assad pela ascensão do EI.

Para defender a sua posição, Cockburn perde o sentido das proporções e das distinções. Embora em sucessivos relatórios a ONU, Amnistia Internacional e Human Rights Watch tenham acusado o regime de Assad de ser, de longe, o principal perpetrador de violência no conflito, o relato de Cockburn é dedicado quase inteiramente às atrocidades da oposição. (Ele reporta exclusivamente a partir de áreas controladas pelo regime.) A repressão do regime recebe uma menção superficial, mas analogias nazis são reservadas para a oposição.
Cockburn não faz nenhuma menção aos interesses divergentes e rivalidades ativas entre o EI e a oposição nacionalista síria. Para ele, ajudar a oposição é ajudar o EI.
Para fundamentar essa afirmação, ele cita "um oficial dos serviços de informação de um país do Médio Oriente vizinho da Síria", que lhe disse que "membros do EI 'afirmam que eles ficam sempre satisfeitos quando armas sofisticadas são enviadas para quaisquer grupos anti-Assad, na medida em que podem sempre retirar-lhes as armas por via de ameaças ou pagamentos em dinheiro'". (Cockburn cita muitos funcionários dos serviços de informação anónimos no livro, mas em nenhuma outra ocasião ele concede anonimato ao país. Poderia ser porque o “país vizinho da Síria” é o Iraque, um aliado fundamental de Assad?)
No entanto, esta tendência é o menor dos problemas nos relatórios de Cockburn - ele também embeleza. Na página 76 do seu livro, escreve sobre Adra: "Vi forças JAN a invadir um complexo habitacional, avançando através de um tubo de drenagem, que saiu detrás das linhas do governo, onde continuaram a matar alauítas e cristãos". Esta seria a primeira verificação independente de uma história que veio brevemente à superfície antes de desaparecer num redemoinho de afirmações contraditórias. A emissora russa RT até
usou imagens falsas no seu relatório sobre o incidente.
No entanto, Cockburn estava longe de Adra. Isto é confirmado por uma fonte segura: Patrick Cockburn. Ele reportou pela primeira vez o acidente na sua
coluna de janeiro de 2014 no The Independent. Mas, em vez de estar pessoalmente presente, a história sobre os rebeldes que avançam através de um tubo de drenagem é atribuída a "um soldado sírio, que deu como nome Abu Ali."
Contra a insistência de Cockburn de que o regime de Assad e os curdos são as únicas forças capazes de derrotar o EI, Weiss e Hassan apresentam provas que mostram que o regime evitou deliberadamente o confronto com o EI. Os autores citam um
estudo do Centro Carter, que confirma que o regime poupou o EI em 90 por cento dos seus ataques. Um estudo do IHS Jane's Terrorism & Insurgency Centre é ainda mais condenatório. Revela que, em 2014, apenas 13 por cento dos ataques foram dirigidos ao regime; por sua vez, o regime elegeu o EI como alvo em apenas 6% dos seus ataques. O grosso da fúria dos dois grupos tem sido direcionada para o povo sírio.
Nada disto é reconhecido na análise de Cockburn. No início de fevereiro, quando o regime lançou uma série particularmente selvagem de bombardeamentos contra a cidade síria de Douma,
matando até 250 civis, Cockburn repetiu as suas críticas ao Ocidente por "tentar derrubar o presidente Bashar al-Assad, cujo exército é o principal militar adversário do EIIL”. O EI pode ser derrotado, argumentou Cockburn, se as potências ocidentais se unirem ao regime. Mas, se o fator crítico é o poder ocidental, ele não diz por que o mesmo não deveria apoiar os rebeldes sírios, que realmente têm a experiência de combater e derrotar o EI.
É exatamente isto que aparentemente os EUA estão a fazer agora. No seu assalto ao EI, atuou em coordenação com o regime de Assad, - funcionando, com efeito, como sua força aérea -, e, como o regime, n
ão fez distinção entre vários grupos rebeldes, elegendo como alvo o EI, bem como seus adversários islâmicos JAN e AS.Para o regime de Assad, o EI provou ser uma dádiva de Deus.

O EI pratica uma doutrina exposta num texto intitulado “Gestão da selvajaria” de um ideólogo jihadista com o nome de guerra Abu Bakr Naji. Ele prescreve uma forma de guerra na qual "a violência, crueldade, terrorismo, [dissuasão] e massacre" são centrais.


Desde o início, o regime tentou apresentar a sublevação como uma revolta contra um governo secular. O EI confirma esse estereótipo. A crueldade é fundamental para a sua lógica operacional. O EI pratica uma doutrina exposta num texto intitulado “
Gestão da selvajaria” de um ideólogo jihadista com o nome de guerra Abu Bakr Naji. Ele prescreve uma forma de guerra na qual "a violência, crueldade, terrorismo, [dissuasão] e massacre" são centrais.
O EI elevou o revanchismo sectário a um projeto político. E isso permitiu a Assad - que, deliberadamente, usou uma estratégia sectária para dividir uma revolta inter-condessional – fazer-se passar dissimuladamente por vítima: o incendiário que aparece como um bombeiro.
Cockburn ecoa e amplifica essa linha. Essa inversão de causa e efeito levou a uma situação em que as potências ocidentais estão agora a inflamar os mesmos fatores que levaram à ascensão do EI. No Iraque, os EUA estão a armar
milícias xiitas apoiadas pelo Irão, cujos excessos promoveram a revolta do EI; na Síria, os EUA estão a coordenar ataques aéreos com o regime, contando, inclusive, com os seus serviços de informações. (A única exceção foi Kobane, onde o poder aéreo ajudou os curdos e a FSA a repelir a ofensiva do EI)
Para ter um pouco de perspetiva, basta olhar para o que se passou na semana anterior.
A 19 de fevereiro, a BBC informou que o YPG curdo e três grupos de rebeldes sírios – os grupos que Cockburn insiste não existirem - avançou para a fortaleza do EI de Raqqa para capturar 19 localidades.
O "principal adversário militar do EIIL" estava, entretanto, ocupado noutro lugar. A 17 de fevereiro, durante a sua breve ocupação da cidade de Retian em Aleppo, as forças do regime executaram pelo menos 21 civis,
de acordo com o Centro de Documentação de Violações. (O Observatório Sírio para os Direitos Humanos coloca o número em 49) Quatro dias depois, no primeiro aniversário da Resolução 2139 da ONU, que exigiu o fim do bombardeamento indiscriminado de civis, a Defesa Civil Síria registou que 15 bombas de fragmentação caíram em Aleppo. Nada disto é registado no retrato ideológico invertido de Cockburn.
A virtude do livro de Weiss e Hassan é que ele coloca as pessoas da Síria na frente e no centro; Cockburn, por outro lado, vê tudo pelo prisma das rivalidades estatais. O raciocínio
dedutivo ideológico permite-lhe abordar o abate, por parte de Assad, do seu próprio povo como um ato de resistência ao imperialismo. As prescrições de Cockburn visam remediar os sintomas sem tratar a causa; eles garantem guerra perpétua. Atender a Weiss e Hassan iria colocar os EUA ao lado da maioria da Síria e, potencialmente, trazer estabilidade ao Iraque.

Artigo publicado em http://inthesetimes.com/article/17714/isis-managers-of-savagery

Tradução de Mariana Carneiro para o Esquerda.net

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