Está aqui

«Ela não morreu»: as canções e a Comuna de Paris

Uma pequena viagem pelas canções da Comuna de Paris, para ler e para ouvir, permite compreender aspetos diferentes dos acontecimentos, entender a ressonância e a originalidade histórica da Comuna, a sua coragem e a sua atualidade. Por Pedro Rodrigues.
Ilustração de foto de Eugene Pottier, membro da Comuna e autor de várias músicas sobre ela.
Ilustração de foto de Eugene Pottier, membro da Comuna e autor de várias músicas sobre ela.

As canções podem dizer-nos muito sobre a extraordinária, exaltante e trágica experiência revolucionária de 1871, tão pouco conhecida e pouco estudada, afinal de contas. Uma vez exterminada a Comuna de Paris, o que dela ficou foram relatos, memórias e testemunhos, análises históricas e ensaios, algumas fotografias e... canções.

As canções têm a grande vantagem de ter várias vidas, como os gatos. Podem ser refeitas, redescobertas, cantadas de novo e, hoje em dia, regravadas e reouvidas facilmente, graças à invenção do registo fonográfico, que é posterior à Comuna de Paris (só em 1877 Edison inventou o fonógrafo).

Uma pequena viagem pelas canções da Comuna de Paris, como propomos neste texto, permite compreender outros aspectos destes acontecimentos que mudaram para sempre o curso da história. A música permite-nos entender a ressonância e a originalidade histórica da Comuna, a sua coragem e a sua actualidade. Convidamo-vos a ler, mas também a ouvir.

Contra o Império

O Império de Napoleão III tinha prometido a paz, equilíbrios, e alguns direitos, na sequência dos levantamentos revolucionários de 1848 – mas o que fez foi o exacto oposto: as guerras e as expedições militares multiplicaram-se - Crimeia, Argélia, Saigão e Conchichina, guerras sangrentas contra a Áustria, aventuras militares no México; a desigualdade acentuou-se, deixando o povo na mais profunda miséria; as censuras e as perseguições agravaram-se, cerceando liberdades e metendo na prisão todos os opositores. Nem direitos, nem equilíbrios, nem paz.

Um dos seus opositores, o republicano Alfred Durin, foi metido na prisão por defender a democracia e criticar o governo num jornal por si dirigido e nascido na revolução de 48, Le Carrilon Républicain. Em 1854 escreveu na prisão uma canção, precisamente gozando com a frase de Napoleão III, «L'empire, c'est la paix!» («O Império, é a paz!»), que começava com os versos «O Império é a paz! Eu digo que é a peste, a guerra, a fome e a repressão». E terminava com versos libertários premonitórios, apelando à unidade de camponeses e operários: «Às armas!, Levanta-te! De pé, grande cidade!» Apesar das proibições de jornais, de clubes, de cabarés, de reuniões públicas, entre 48 e 71 cresce uma forte oposição ao Império francês, oposição politicamente diversa, republicana, democrática, socialista e anarquista. Apesar de toda a repressão, os trabalhadores e as trabalhadoras lutam... e cantam! Uma das canções que ficaram famosas destes tempos anteriores à Comuna, foi Le chant des ouvriers , uma magnífica canção de Pierre Dupont que junta a denúncia da exploração (e aos problemas específicos da condição operária) a um refrão assim: «Amemo-nos e quando pudermos/ unidos beber uma rodada/ Que o canhão troe ou que se cale/ Bebamos!/ Bebamos à independência do mundo!». Canção que a Comuna adoptou, naturalmente. Já não se tratava de fazer um elogio ingénuo do trabalho mas, pelo contrário, criticar as condições de trabalho e de vida, defender a socialização do produto do trabalho de todos e apelar à reunião convivial de uma classe que não quer apenas trabalho – quer outra forma de organização social e de vida. Uma canção internacionalista, também. Esta classe quer outro mundo.

Canções e contradições

As canções começam a afrontar cada vez mais o autoritarismo do Império, denunciando injustiças ou mesmo assassinatos (Les funérailles de Victor Noir, canção sobre o jornalista assassinado pelo príncipe Pierre Bonaparte), falando de greves e apelando à unidade dos trabalhadores. Não causa espanto: crescem as canções de protesto ao mesmo tempo que crescem as lutas operárias, mas também os combates pela liberdade de expressão (face ao encerramento de jornais e a prisões de jornalistas), contra o Estado policial e contra as injustiças sociais, cada vez mais flagrantes. Surgem canções novas, mas também se reutilizam as antigas. A velha Carmagnole, dança popular dos tempos da revolução de 1789, ganha sempre novos versos a cada revolução que passa. Teve novos em 1830, em 1848, em 1871. E, contradição maior, a própria Marselhesa está em disputa: o Império quer recuperá-la para o lado da lei e da ordem, porque ela anda muito mal-comportada, nestes tempos imediatamente antes da Comuna: anda a ser usada por camponeses e operários para armar grandes protestos contra o Império. Durante a Comuna, surgirá mesmo uma nova Marselhesa da Comuna em que o refrão terminará assim: «Sans souverain, le peuple aura du pain» («Sem soberano, o povo terá pão»).

O Império tenta sair do impasse político e social através de mais uma guerra: declara guerra à Prússia em Julho de 1870. Ao mesmo tempo surge um dos textos mais interessantes de um poeta que será amado para sempre como autor da Internacional – Eugène Pottier. A canção em causa tem como título uma pergunta: Quand viendra-t-elle? (Quando virá ela?) E, apesar das ambiguidades da canção, para contornar a censura, é claro que Pottier fala de liberdade e de uma nova sociedade. De uma mudança de base, que acabe com a miséria, a guerra, a usura. A Comuna espreita.

Que canção se cantou?

As coisas correm mal ao exército francês. As derrotas sucedem-se. Morrem milhares de homens. O «pequeno Napoleão» e a sua ditadura tremem. Paris, cercada, rende-se. É o fim do Império. Uma canção de Émile Dereux, um adepto de Auguste Blanqui (que continua preso mas que inspira grande parte do campo revolucionário), diz «Bonhomme, ne sens-tu pas/ Qu'il est temps que tu te réveilles...» É tempo de acordar. Uma canção satírica muito popular, Le Sire de Fisch-Ton-Kan, de Paul Burani e Antonin Louis, goza com a guerra e com os prussianos como pode. E multiplicam-se as canções anti-Bismarck. Mas já é demasiado tarde. Ao mesmo tempo surgem canções sobre os quatro meses do cerco de Paris, e aí já não pode haver ironia. Os tempos são de falta de pão, de agonia, de frio, de miséria. Le chant des soldats faz ainda um apelo aos soldados para «apoiar o povo e os seus direitos». Graças à mobilização popular, com as mulheres na dianteira, alguns soldados recusarão, de facto, disparar sobre a multidão que defende os canhões estacionados em Montmartre. Muitos juntar-se-ão ao movimento revolucionário que ali explodiu em 18 de Março de 1871. Que canção terá sido cantada nessa ocasião? La Carmagnole, de novo, agora na sua versão La Communarde ?

Um outro escritor, Eugène Chatelain, condenado ao exílio depois da derrota da Comuna, escreverá mais tarde canções revolucionárias como uma que grita «Vive la Commune, Enfants!», e onde se acredita ainda num mundo onde o povo terá pão, trabalho e bom vinho. José Mário Branco, em 1971, no exílio, em França, participou num espectáculo de comemoração dos 100 anos da Comuna. Várias belas canções faziam parte dessa iniciativa do Groupe Organon, como Le proscrit de 1871, texto de Chatelain e música de José Mário Branco. Talvez aquela em que mais se sente a cumplicidade de um exilado político (como era José Mário Branco), com outro exilado, um século antes.

Durante a Comuna, apesar de todas as tarefas e todos os perigos, continuará a cantar-se: há relatos de concertos de beneficência e de solidariedade, prossegue a edição de canções patrióticas e revolucionárias. Multiplicam-se os encontros em clubes, em igrejas usadas à noite para fins revolucionários, em cafés. Louise Michel, professora e muito activa durante a Comuna, escreve o texto de La danse des bombes em Abril, cantando a esperança e «os belos horizontes do presente».

Sejamos tudo

Mas a Comuna é derrotada, 72 dias depois. E é nos anos seguintes que as canções se vão multiplicar. Simplesmente denunciando os crimes do governo de Thiers, como La terreur blanche, de Pottier. Ou a Semana Sangrenta, de Jean-Baptiste Clément, que descreve a bárbara repressão da revolução, mas deixa uma ponta solta para o futuro: «Sim, mas... A terra treme/ Os dias maus vão acabar/ O contra-ataque não se teme/ Se toda a gente se juntar». Poucos dias depois do fim da semana sangrenta, em que milhares de communards foram barbaramente assassinados, o mesmo poeta escreveu aquela que se tornará a canção-hino de todas as facções revolucionárias (anarquistas, comunistas, socialistas) e que teve mil versões e traduções: a Internacional. Também ela, no fim de contas, é filha da Comuna de Paris. E faz um apelo internacionalista a mudar o mundo de base, sem nostalgias, nem ilusões, nem deuses, nem chefes. «Não somos nada, sejamos tudo».

E uma outra canção ainda, mais uma do communard Eugène Pottier: Elle n'est pas morte. O título diz tudo: «ela não morreu». A Comuna, apesar de exterminada, vive. Vive como ideal, sim, mas vive também como possibilidade prática. Ela é símbolo da solidariedade em marcha, de uma organização social construída noutras bases, entre iguais. De um possível que ficou por cumprir, mas que ecoa, com as suas canções, em todas as lutas de emancipatórias da humanidade desde então. Nas lutas das mulheres, nos combates de todos os trabalhadores, nas experiências de auto-gestão democrática, na ruptura com o capitalismo, com os impérios e a sua barbárie militarista. Uma possibilidade nova.

No século XX, muitas homenagens à Comuna se fizeram. Novas canções nasceram. Em 1951, por exemplo, nos oitenta anos da Comuna, o compositor Joseph Kosma fez novas canções para o espectáculo À l'assaut du ciel. Jean Ferrat musicou La Commune em 1971, nos seus 100 anos. Velhas canções reapareceram ou foram reinventadas, como a italiana Dimmi bel Giovane, de Francesco Bertelli (original de 1871, precisamente), canção que tem o curioso subtítulo de «Exame de admissão de um voluntário à Comuna de Paris». Nesse «exame», pergunta-se: «Diz-me, qual é a tua pátria?» A resposta? La mia patria è il mondo!

Muitos mitos sobre esta revolução se criaram e outros tantos se desfizeram. Realizaram-se belos filmes, entre Nova Babilónia de Kozintsev e Trauberg (1929) e La Commune de Peter Watkins (2000). Muitos novos factos e documentos se descobriram também. Uma coisa é certa: a Comuna de Paris continuará a cantar. Como exemplo, ouça-se um programa recentíssimo comemorando os 150 anos da Comuna, cheio de canções, que o coro da Casa da Achada – Centro Mário Dionísio fez para a Achada na Rádio.

Epílogo - Um hino que nunca o quis ser

Le temps des cerises (O tempo das cerejas) tornou-se a canção-símbolo da Comuna de Paris. E contudo, ela é anterior aos acontecimentos revolucionários de 1871, tendo sido editada em 1868. A letra é de Jean-Baptiste Clément, um homem que só a partir daí escreverá canções de temáticas políticas. Jornalista, ele juntar-se-á à oposição republicana e à militância socialista, ainda antes de passar pela experiência inolvidável de participar na Comuna de Paris. Mas, quando foi escrita, Le temps des cerises era apenas uma inocente canção de amor sentimental, a que Antoine Renard juntou uma música leve, cativante e dançável. Que ela se tenha tornado a canção-hino da Comuna, para além dos equívocos ou dos mitos românticos (Clément escrevendo os últimos versos numa barricada...), tem, apesar de tudo, uma razão de ser que vem do seu texto: é que ela fala de uma aspiração a um futuro («quando estivermos no tempo das cerejas») e, ao mesmo tempo, nostalgicamente, de um passado («desse tempo, guardo no coração uma ferida aberta»). E defende que, se temos medo de sofrer, então será melhor evitar as grandes paixões. É natural que se tenha visto nesta letra, a posteriori, a entrega corajosa ao amor e a desenfreada paixão revolucionária de 1871, lado a lado. Um bom exemplo de como as canções têm improváveis destinos e mudam facilmente de sentido. Como elas se transformam com a transformação do mundo. E se tornam hinos que nunca o quiseram ser. Mas, neste caso, ainda bem, porque assim amor e revolução andarão para sempre de mãos dadas.


Pedro Rodrigues é músico e musicólogo.

(...)

Neste dossier:

Comuna de Paris, os 72 dias que mudaram o mundo

Os 150 anos da Comuna de Paris são o pretexto para analisar a primeira experiência de autogoverno operário, os debates que suscitou, as esperanças que alimentou e a forma como continua a ser uma inspiração. Dossier organizado por Carlos Carujo.

A chamada Geração de 70 foi influenciada pela Comuna de Paris.

A Receção da Comuna de Paris de 1871 em Portugal

A insurreição parisiense teve enorme impacto numa certa elite intelectual jovem que se afirmaria nas letras e na política. Do outro lado, a imprensa monárquica, conservadora e clerical abominou-a, vulgarizando as figuras como um bando de revoltosos que queriam acabar com a ordem. Por Tiago Rego Ramalho.

Ilustração sobre a resistência à apropriação dos canhões de Montmartre por Thiers, o momento que despoletou a revolta que originou a Comuna. Foto de Wikimedia Commons.

A alternativa possível da Comuna de Paris

Paris demonstrou que era necessário perseguir o objetivo de construir uma sociedade radicalmente diferente da capitalista. Ainda que “o tempo das cerejas” nunca tenha chegado para os seus protagonistas, a Comuna encarnou a ideia abstrata e a transformação concreta ao mesmo tempo. Por Marcello Musto.

Barricada no cruzamento das avenidas Voltaire e Richard-Lenoir. Biblioteca histórica da Cidade de Paris/Wikimedia Commons.

A cronologia da Comuna de Paris

Data a data, uma compilação dos principais acontecimentos desde a guerra franco-prussiana, à vitória da Comuna até ao seu rescaldo.

Banco de França. Imagem da instituição.

A Comuna de Paris, a banca e a dívida

Um governo popular não pode ficar paralisado diante do mundo financeiro, deve tomar medidas radicais em relação ao banco central, bancos privados e dívidas. Se não o fizer, está condenado ao fracasso. Por Eric Toussaint.

Ilustração sobre a Comuna de Paris. Fonte: Site da Gauche Anticapitaliste.

A Comuna de Paris e os debates que suscitou

Marx, Trotsky, Lenine foram alguns dos que pensaram sobre a Comuna de Paris. Mas esta primeira tentativa de emancipação social dos oprimidos permanece de uma espantosa atualidade e merece alimentar a reflexão das novas gerações. Por Michael Löwy.

Pormenor da capa de Communal Luxury: The Political Imaginary of the Paris Commune de  Kristin Ross.

Comuna de Paris: rebelde, polémica e atual

No seu livro Communal Luxury: The Political Imaginary of the Paris Commune, Kristin Ross sugere que esta revolta antecipou visões contemporâneas sobre Arte e Ecologia e que as diferenças entre marxistas e anarquistas eram menores que se pensa.

Ilustração de foto de Eugene Pottier, membro da Comuna e autor de várias músicas sobre ela.

«Ela não morreu»: as canções e a Comuna de Paris

Uma pequena viagem pelas canções da Comuna de Paris, para ler e para ouvir, permite compreender aspetos diferentes dos acontecimentos, entender a ressonância e a originalidade histórica da Comuna, a sua coragem e a sua atualidade. Por Pedro Rodrigues.

Mulheres na barricada da Place Blanche na Semana Sangrenta. Litografia do Museu de Carnavalet/Imagem Wikimedia Commons.

Mulheres na Comuna: “eram mais monstruosas porque sendo mulheres transgrediam tudo”

Estiveram no despoletar do movimento e até ao final nas últimas barricadas mas têm sido invisibilizadas. Os seus nomes esquecidos e os seus contributos menorizados. E no seio do movimento operário da época enfrentavam hostilidade de muitos grupos. Entrevista à historiadora Mathilde Larrère.

Louise Michel.

Memórias da Comuna

Figura lendária da Comuna de Paris, Louise Michel traz-nos, neste excerto, quadros desgarrados das barricadas: de insensatez, de crueldade, de cobardia. Mas também e sobretudo da coragem dos “federados”.

La paye des moissonneurs, Léon-Augustin Lhermitte, 1882.

A Comuna fala aos camponeses: Irmão, enganam-te!

A Comuna não foi só Paris mas todas as outras experiências comunais foram rapidamente derrotadas. Os operários da capital não pararam de tentar contactar com o resto do país. Este texto, tornado panfleto, que apelava à solidariedade dos camponeses, é disso exemplo.

Congresso de Genebra da AIT.

A Comuna e a Primeira Internacional

Antes da Comuna, os líderes franceses da AIT eram perseguidos mas as secções da organização contavam com milhares de membros. Durante a insurreição, os seus membros vão desempenhar um papel importante na obra social realizada pela Comuna. Por Yves Lenoir.

Muro dos Federados. Foto: Rama/Wikimedia Commons.

150 anos depois, a batalha em França é pela memória da Comuna

As comemorações dos 150 anos foram polémicas reavivando a batalha pela memória. Monumentos como o Sacré-Coeur, construído para expiar os “ pecados dos federados” também não a deixam esquecer. E movimentos sociais como os coletes amarelos levantam questões sobre se serão herdeiros da Comuna.