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"É injusto dizer que o Maio de 68 só chegou em 69 a Portugal"

Bruno Góis entrevistou Joana Lopes no Socialismo 2018 sobre os 50 anos do Maio de 68, e o impacto que o mesmo teve em Portugal.

Bruno Góis: Dizias-me há pouco, quando preparávamos esta conversa, que talvez seja injusto dizer que o Maio de 68 só chegou em 69 a Portugal. Qual é a razão dessa injustiça, ou dessa parcialidade da ideia?

Joana Lopes: Ora bem, eu acho que é verdade, por tudo o que tenho lido e ouvido, que, para uma grande parte da população ativa da esquerda em Portugal, os efeitos se sentiram só a partir de 69. Tal tem sido sublinhado em muitas interpretações que foram feitas agora, a propósito do quinquagésimo aniversário do Maio de 68. Ora, isso tem alguma razão de ser. Primeiro, talvez, porque as notícias custavam a cá chegar e, portanto, chegaram tarde. Por outro lado, porque as populações, sobretudo estudantis e mais integradas nos partidos políticos que então existiam, estavam muito focadas, por um lado, na guerra colonial, por outro lado, talvez bastante numa certa retranca ideologicamente e, portanto, foi unicamente a partir de 69 e no meio universitário, quando foram desencadeadas as crises académicas, que alguns dos componentes do Maio de 68 terão tido, com certeza, alguma influência. Mesmo assim, não é muito certo.

Bruno Góis: Mas houve outras pessoas que tiveram uma experiência diferente.

Joana Lopes: Há uma população na qual me integrava na altura que teve uma experiência diferente. Eu dava aulas na Faculdade de Letras e, no meio estudantil, senti o que disse há pouco: o Maio de 68 não teve grande repercussão. Mas existia também uma população que girava sobretudo à volta dos chamados “católicos progressistas”, mas não só, também de muitos independentes que não tinham partido (nessa altura, era sobretudo o Partido Comunista que existia, os maoístas ainda não se tinham formado). Muitas dessas pessoas, algumas herdeiras da greve de 62, agrupavam-se em várias associações, em várias plataformas, revistas como “O Tempo E O Modo”, cooperativas como a “Pragma” em Lisboa, a “Confronto” no Porto, em publicações clandestinas sobre a guerra colonial, como o “Direito à Informação”. Isto tudo desde o início da década de 60, desde 62, 63, em que houve uma grande esperança que a realidade do Concílio do Vaticano II, que parecia que ia provocar uma grande abertura, não só religiosa, mas mesmo no campo político, ajudaria a acabar com a guerra e também com o celibatarismo. Estas pessoas moviam-se em várias atividades que formavam uma grande teia. É verdade que se tratavam de elites, mas não eram só elites intelectuais, nomeadamente, por exemplo, através da Ação Católica, que tinha nessa altura uma importância grande, tinha mais de 100 mil filiados, atingia também, sobretudo, o meio operário, através da Juventude Operária Católica, a Juventude Universitária Católica. Ninguém sabe quantificar quantas pessoas se movimentavam aqui.

Bruno Góis: Eras dirigente de alguma dessas organizações?

Joana Lopes: Fui dirigente de várias, por exemplo, da Junta Central da Ação Católica, a partir de 66. Entre 66 e 68 foi um pouco tomada de assalto, em parte, por pessoas já de esquerda. Era uma mistura, mas teve uma influência grande. Depois, à medida que, e concretamente em 68, já havia uma grande desilusão em relação ao Vaticano, as relações com os bispos portugueses tornaram-se cada vez mais complicadas e mais ligadas ao salazarismo e, portanto, começaram a haver grandes conflitos. Nomeadamente, por exemplo, com padres e entre padres e seminaristas, com o cardeal Cerejeira e os outros bispos. Alguns padres deixaram de ser padres, alguns deixaram de ser seminaristas, pessoas da direção da Ação Católica, como eu, pediram a demissão. Foi um ano de rutura.

Bruno Góis: E isso tinha a ver com aquela encíclica?

Nesse ano, saiu a encíclica de Paulo VI, a “Humanae Vitae”, que condenava todos os meios anticoncecionais, e isso foi um pouco a gota de água que fez transbordar todos os conflitos.

Joana Lopes: Nesse ano, saiu a encíclica de Paulo VI, a “Humanae Vitae”, que condenava todos os meios anticoncecionais, e isso foi um pouco a gota de água que fez transbordar todos os conflitos. Nós pedimos a demissão em bloco.

Bruno Góis: A esperança dos católicos progressistas ficou muito gorada.

Joana Lopes: Ficou muito depauperada e, a partir daí, claro que houve atitudes diferentes, mas houve cada vez mais um corte com a igreja, muitas pessoas deixaram de ser católicas. Neste contexto, o Maio de 68 francês teve uma receção enormíssima. Tanto na esperança de que fosse um contributo…

Bruno Góis: Para a modernização da Europa.

Joana Lopes: E também, em Portugal, para o fim da guerra colonial. Porque nós éramos todos muito francófonos, Portugal era muito francófono e as elites eram muito francófonas. Já tínhamos muitas relações com a França, nomeadamente era através de França que recebíamos notícias verdadeiras sobre a guerra colonial.

Bruno Góis: Que as de cá não…

Joana Lopes: E depois traduzíamos e difundíamos, e tivemos uma grande relação com o Maio de 68 nesse aspeto, político, com esperança de que aquilo, realmente, abanasse bastante, e também no plano dos costumes. Ao contrário do que dizem as pessoas que estavam integradas em partidos nessa altura, que declaram que se mantiveram extremamente espartanas, que foram muito impermeáveis ao aspeto libertário do Maio de 68 francês.

Bruno Góis: Se calhar será verdade para elas, para essas pessoas que estavam nesses partidos, ou também não?

Joana Lopes: Nesses partidos, aparentemente, foi o caso. Nestes grupos de pessoas que não estavam integradas em partidos, pelo contrário, até pelas próprias circunstâncias dentro da igreja, pelo facto de não haver divórcio, por exemplo. Os católicos que se casavam pela igreja não se podiam divorciar. Houve imensas separações, houve imensas…

Bruno Góis: Era o problema da Concordata.

Joana Lopes: Houve imensas, aquilo a que nós hoje chamamos uniões de facto, e automaticamente ficavam “excluídas” da igreja, como ainda hoje acontece. A pouco e pouco, houve uma rutura muito grande e o Maio de 68 contribuiu muito para isso. Não foi o único elemento, como é evidente, mas, aos contrário das outras populações, que, só em 69, ou, como nós ouvimos há pouco, nem sequer nessa altura, tiveram essa influência ao nível dos costumes da parte do Maio de 68, esta parte da população teve uma grande…

Bruno Góis: Recebeu essa influência e reviu-se.

E não é por acaso que, quando aparece a LUAR, e, mais tarde, as Brigadas Revolucionárias e o PRP, havia imensos padres, imensos ex-seminaristas, que se integraram.

Joana Lopes: Por exemplo, há uma historia curiosa. Um amigo meu que estava na guerra em África, no norte de Moçambique, isolado de tudo e de todos, e que era deste meio, ia seguindo as notícias, ia sabendo o que se passava. Mas não conseguiu, de todo, realizar a mudança que tinha havido nesta população. E quando volto, julgo eu que em 69 ou 70, ele diz que encontrou o mundo dele de pernas para o ar, e, inclusive, o seu próprio casamento estoirou. Houve, realmente, uma modificação das mentalidades muito grande nestas pessoas e, por outro lado, uma pouca apetência… As pessoas eram muito ativas nestas coisas todas. A pouco e pouco estas plataformas foram desaparecendo. “O Tempo E O Modo” foi ocupado pelo MRPP, as cooperativas foram encerradas pela PIDE. Estas pessoas, de repente, ficaram sem espaço. E não é por acaso que, quando aparece a LUAR, e, mais tarde, as Brigadas Revolucionárias e o PRP, havia imensos padres, imensos ex-seminaristas, que se integraram. Não são multidões, nem uma percentagem elevada, mas, então na LUAR, no início, foi muito sintomático. E muito com os olhos na América Latina, nomeadamente em Cuba. Era o modelo, até porque também havia lá muitos padres.

Bruno Góis: A teologia da libertação…

Joana Lopes: E também a teologia da libertação, que apareceu nessa altura, e era uma população extremamente ativista e que teve em várias facetas, em várias atividades. Isto prolongou-se até ao 25 de Abril. Mas no 25 de Abril, contam-se pelos dedos, talvez de uma mão chegue, das duas chega de certeza, poucas destas pessoas foram para o PCP.

Bruno Góis: Reviam-se mais nesses movimentos de ação e mais revolucionários.

Joana Lopes: Mais de ação. Alguns vieram depois a integrar-se em movimentos trostkistas, na UDP, sobretudo os mais novos, que criaram algumas associações em liceus. Mas, já no início dos anos 70, mesmo antes do 25 de Abril. Depois do 25 de Abril, os caminhos foram vários, houve um grande grupo destas pessoas que fundou o MES. O MES resulta, em grande parte, desta população. Depois o MES vem a acabar, muitos vão para o PS. E isto tudo tem muito a ver com a influência do Maio de 68. Foi só um dos fatores, como é óbvio. A crise dentro da igreja foi outro, com certeza, e a maior parte destas pessoas cortou mesmo com a igreja. Alguns ainda se dizem agnósticos, mas já não há nenhuma relação.

Bruno Góis: Perderam aquela esperança que viam na transformação.

Joana Lopes: Perderam completamente essa esperança e passou a ser outra coisa. Alguns voltaram, alguns estão dentro da igreja ainda, mas voltou a ser outra coisa. Terminaria dizendo que é um aspeto, uma população, de quem raramente se fala, e mesmo em todas as comemorações que tem havido do Maio de 68 fala-se sempre mais do outro lado.

Bruno Góis: Da crise de 69.

Joana Lopes: Da luta anti colonial e da crise estudantil de 69 que, realmente, é logo a seguir, e que teria alguma influência do Maio de 68, mas…

Bruno Góis: Mas houve ali um setor de uma geração que bebeu também disso, que tinha as mesmas aspirações.

Joana Lopes: Que tinha as mesmas aspirações e que era de um mundo completamente diferente. Urbano, com certeza, mas não só intelectual. Sobretudo intelectual, como é óbvio, pelas relações que havia com a França, mas que foi decisivo para a maneira dessas pessoas estarem na vida e na política. Creio que ainda até hoje faz sentido.

(...)

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