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Bensaid: "Passámos a fase dos slogans simpáticos dos fóruns sociais"

De passagem pelo Brasil, o filósofo e cientista político francês concedeu uma entrevista exclusiva à Carta Maior, na qual analisa a crise financeira, comenta as situações dos EUA e da Europa e aponta os desafios para a esquerda construir uma alternativa ao modelo actual.
Por Maurício Thuswohl, da Carta Maior
No Brasil para uma série de palestras que acompanham o lançamento de um de seus livros - "Os Irredutíveis, teoremas de resistência para o tempo presente" (Editora Boitempo) - o cientista político e filósofo francês Daniel Bensaïd, em entrevista exclusiva à Carta Maior, analisa a crise financeira global e os seus possíveis desdobramentos. Durante a conversa, Bensaïd apontou as contradições dos líderes europeus de direita que falam num "novo acordo de Bretton Woods" e afirmou - ainda sem saber o resultado das eleições - que a liderança dos Estados Unidos sofre um declínio irreversível e que a hegemonia norte-americana só se sustenta actualmente graças ao poderio militar e político do país.
Renomado teórico trotskista, Bensaïd fez também duras críticas à social-democracia europeia e apontou a falta de um projecto de esquerda na Europa. O francês afirma não conhecer muito bem a situação da América Latina, mas acredita que os governos de esquerda da região podem constituir uma alternativa local à crise. Ele afirma também que chegou a hora de dizer qual "outro mundo possível" realmente queremos.
Quais são suas impressões, em linhas gerais, sobre a atual crise financeira mundial? Estamos diante de uma crise terminal do sistema capitalista?
O capitalismo não vai acabar sozinho. Esta é uma crise histórica, e não somente uma crise ordinária, como o capitalismo conheceu a cada dez ou quinze anos. Essa crise era também previsível, porque é impossível exigir - como fazem os accionistas - um lucro sobre os seus investimentos da ordem de 15% ao ano frente a um crescimento que, em média, no caso dos países desenvolvidos, é de 2% ou 3% ao ano. Alguns dizem que a crise financeira pode chegar à economia real, o que é uma fórmula um pouco absurda, porque as finanças fazem parte da economia, não são irreais, efectivamente. Por trás desta crise financeira já havia uma crise de produção. Ao menos para os países europeus - eu não conheço as estatísticas sobre o Brasil - a divisão do valor agregado entre salário e trabalho deslocou-se 10% em favor do capital, ou seja, do ganho do capital em detrimento do trabalho, o que provoca uma crise incontrolável. Para continuar a vender - porque se existe o produto é preciso vendê-lo - houve um aumento totalmente louco do crédito, e não somente do crédito hipotecário imobiliário nos Estados Unidos. Também aumentou o crédito ao consumo, o crédito às empresas, etc. A crise, desse ponto de vista, era previsível.
Por outro lado, ela não é simplesmente uma fatalidade, é o resultado de decisões políticas que se acumularam por 20 anos, porque a desregulamentação das bolsas, a livre circulação de capitais, o desenvolvimento dos ganhos do capital não fiscalizados, tudo isso foi precedido por uma série de medidas legislativas tomadas pelos diferentes parlamentos na Inglaterra, na França, na Alemanha, etc. No que concerne à Europa, isso foi sistematizado pelos diferentes tratados da União Europeia, de Maastrich, em 1992, até o Tratado de Lisboa, no ano passado, que codificaram o livre mercado europeu. Portanto, essa era uma crise previsível e ela é muito grave porque é globalizada, esse é seu carácter inédito. Mas, por trás de tudo isso, eu creio que o capitalismo poderá restabelecer-se, ele já resistiu a outras crises. O problema é saber a qual preço e quem vai pagar o preço, pois essa é, afinal de contas, uma crise mais profunda. No jargão marxista, podemos dizer que a lei do valor actualmente funciona muito mal. Hoje, não podemos medir pelo tempo do relógio um trabalho social muito complexo, que cada vez mais mobiliza conhecimento acumulado, como não podemos tampouco medir a crise ecológica pela flutuação das bolsas de valores.
A crise ambiental, com o problema do aquecimento global, torna a crise financeira ainda mais grave. Estamos a viver uma crise da humanidade?
Sim, e a crise ambiental não é um problema qualquer. Quando pensamos nas consequências, que virão durante séculos ou talvez milhares de anos, do armazenamento do lixo nuclear, da destruição das florestas, da poluição dos oceanos e, agora, das mudanças climáticas, vemos que todos esses problemas não poderão ser controlados simplesmente pelos mecanismos do mercado que, por definição, são mecanismos que arbitram no curto prazo ou de maneira instantânea. Está no centro do que chamamos de organização social a prática de medir toda a riqueza, toda a relação social, e mesmo a relação da sociedade humana com a natureza, pelo único critério do tempo de trabalho abstracto.
Os países da Europa tomaram a dianteira contra a crise com medidas proteccionistas e forte presença do Estado. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, afirmou que os países devem caminhar para um novo Bretton Woods. Como analisa a posição europeia?
Existe uma contradição numa crise como esta. Como a globalização esta aí e é, em parte, irreversível, toda a gente hoje, e mesmo os antigos liberais fanáticos de outrora, pensa que é preciso estabelecer uma regulação e novas regras do jogo. Todo o mundo fala de uma regulação em escala mundial, um novo Bretton Woods, ou ao menos em escala continental como, se pegarmos o exemplo da Europa, a criação do Fundo Soberano Europeu. Estas são as intenções. Ao mesmo tempo, dentro de uma crise grave como esta, cada um tenta jogar de forma solitária, e nós observamos, desde o início da crise, interesses diferentes como, por exemplo, na Alemanha e na Irlanda, que quiseram proteger os seus próprios capitais e seus próprios bancos.
É cedo demais para dizer quem vai levar a melhor, ou se haverá uma espécie de solidariedade entre capitalistas suficientemente forte para criar mecanismos de controle da crise e de solução para os nossos problemas. Ou ainda, ao contrário, se vamos assistir a um agravamento muito forte da concorrência intercapitalista, interimperialista ou entre os grandes blocos. Uma crise como a actual cria também tendências centrífugas muito fortes.
Acredita que esta crise consolida o declínio dos Estados Unidos como potência hegemônica mundial?
Do ponto de vista económico, o declínio do império americano começou há muito tempo. Os EUA são o país mais endividado do mundo, que continua a desempenhar um papel hegemónico, em grande parte por causa do seu poderio militar, que representa 60% dos armamentos e das despesas com armamentos em todo o mundo. E, actualmente, existe um efeito perverso, pois a dívida americana tinha sido neutralizada pelo deslocamento de capitais dos países produtores de petróleo e da China para os EUA, sob forma de Obrigações do Tesouro, ou seja, em dólares. Se esse capitais se retiram, fazem o dólar cair e os EUA perdem de todas as maneiras. Portanto, do ponto de vista económico, existe uma espécie de mecanismo que deixa os EUA na condição de reféns. Enquanto os EUA mantiverem a hegemonia militar, o cenário actual poderá durar, mas a gente vê muito bem hoje, e via mesmo antes da crise, que o euro - ou mesmo o iene, mas sobretudo o euro - pode tornar-se a moeda de reserva no lugar do dólar, que ainda guarda o seu papel de moeda de troca internacional muito mais por causa da potência política e militar estadunidense do que por causa da solidez da economia dos Estados Unidos. Por isso, eu creio que hoje o declínio dos EUA é irreversível.
Qual a sua avaliação sobre o posicionamento da esquerda frente à crise financeira? Acredita que os governos de esquerda da América Latina podem ter papel importante na busca de soluções para a crise?
Eu não conheço muito bem o contexto da América Latina. Eu não sei qual vai ser, por exemplo, a capacidade da Venezuela se o preço do petróleo continuar a cair, portanto é mesmo possível que os efeitos da crise sejam mais duros para países como a Bolívia ou a Venezuela do que para o Brasil, que tem uma exportação mais diversificada. Eu penso que a crise se fará sentir também no Brasil, mas talvez menos forte. Agora, se a reacção à crise vai começar a partir de um pólo bolivariano ou a partir da tentativa do Banco do Sul para se tornar autónomo em relação ao dólar, se vai ser criada uma solidariedade energética e alimentar entre os países da América Latina, se isso tudo vai avançar ou não, a questão está aqui e a resposta está aqui. Eu não tenho resposta.
E na Europa, existe um projecto da esquerda?
A social-democracia, que é a maior força de esquerda na Europa, vem destruindo metodicamente nos últimos 20 anos os mecanismos do Estado-providência e do Estado de Bem-Estar Social. Actualmente, diante da brutalidade da crise, vemos dirigentes do Partido Socialista na França falarem novamente de nacionalização. O que fez Sarkozy não foi em hipótese alguma a nacionalização dos bancos. O que ele fez foi dar aos bancos a segurança do Estado, sem nem mesmo solicitar o direito a voto nos conselhos de administração; foi meramente um socorro aos bancos.
Certas vozes de esquerda pedem o relançamento de uma política de aumento dos salários, mas isso exigiria uma política séria em escala europeia, porque existe o desafio de fazer em nível europeu o contrário do que fizeram os partidos socialistas nos governos nacionais nos últimos vinte anos, ou seja, reconstruir os serviços públicos europeus, harmonizar a fiscalização europeia, desenvolver uma fiscalização fortemente progressiva e retomar o poder de compra. Isso significa destruir todos os tratados sobre os quais foi construída a União Europeia desde 1992. Eu não acredito que exista nem a vontade política de fazer isso nem a força social para o fazer. Por uma razão, pois, através do processo que atravessou, a social-democracia europeia perdeu muito do seu apoio popular. Por outro lado, ela integrou-se muito fortemente ao topo, às empresas privadas e às finanças globalizadas. O símbolo disso é a presença de dois social-democratas franceses como homens de confiança do capital à frente da OMC (Pascal Lamy) e do FMI (Dominique Strauss-Khan). Isso resume um pouco a situação.
O economista François Chesnais afirma que esta crise é a primeira etapa de um processo muito longo e que não sabemos como ele vai acabar. O senhor sempre foi um crítico contumaz tanto do capitalismo e da globalização financeira quanto dos regimes socialistas constituídos sob a óptica stalinista. Acredita que a humanidade está preparada para construir uma terceira via?
A terceira via não passa nem pela gestão estatal e burocrática que faliu nos países do Leste da Europa, nomeadamente na União Soviética, nem pelo liberalismo. Muita gente diz hoje em dia que a crise não foi causada pelo capitalismo em si, mas pelos excessos e abusos cometidos. Não, a crise foi causada fundamentalmente pela própria lógica do capitalismo. Eu acredito que passámos da fase dos slogans simpáticos dos fóruns sociais. Se um outro mundo é possível, chegou a hora de dizer qual. Saímos de um século que terminou, sob o meu ponto de vista, com uma derrota histórica das esperanças de emancipação. Nós entrámos no século XXI com muito menos ilusão do que os nossos ancestrais entraram no século XX, sobretudo os socialistas, que acreditavam no fim das guerras e da exploração.
O problema actual é que estamos no início de uma longa reconstrução, mas, ao mesmo tempo, numa corrida contra o relógio, mais do que nunca, pois vivemos uma crise de destruição não somente social, mas também ecológica. Para mim, há somente uma alternativa: opor à concorrência e à lógica do todos contra todos ,uma lógica do bem comum, dos serviços públicos e da solidariedade. Podemos chamar isso de socialismo, comunismo ou democracia autogestionária. É preciso tentar. Se nós não tentarmos mudar o mundo, ele vai nos esmagar.
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