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2010, o ano da escalada afegã

2009 terminou com a clarificação da política de Obama para o Afeganistão. O anúncio de mais 30 mil tropas norte-americanas - a que se somam outras 7.500 de países aliados dos EUA - confirmou a opção pela escalada na ocupação do país mais pobre do mundo. Confirmou, sublinhe-se, porque desde o início do seu mandato que Obama vinha multiplicando o investimento militar: mais tropas, mais ataques aéreos, mais meios militares, mais mercenários. 2010 anuncia-se assim como o ano do alargamento da guerra: num ano de mandato, Obama multiplica por três as tropas ocupantes (serão 100 mil em 2010) e duplica os mercenários no terreno (mais de 100 mil hoje, poderão chegar a 150 mil quando se completar o desembarque dos reforços).

O fracasso está à vista: o país continua a bater recordes de miséria e está classificado pela Transparency International como o mais corrupto do mundo, logo depois da Somália. O tráfico de heroína retomou os níveis exorbitantes dos anos pré-taliban e os ocupantes não conseguem pôr de pé um arremedo de forças armadas (um quarto dos recrutas afegãos treinados em 2008 já desertaram).

Passados oito anos, vale a pena lembrar a justificação original desta guerra: a perseguição aos autores dos atentados de 11 de Setembro de 2001. Nessa altura, a Al-Qaeda e os talibãs eram mostrados como a mesma coisa. Tomada Cabul, a guerra afegã era apresentada como questão de cirurgia anti-terrorista em refúgios montanhosos e ficava ofuscada pela aventura seguinte, o Iraque. Oito anos depois, a al-Qaeda não passará de uma centena de operacionais em todo o Afeganistão (segundo um relatório dos serviços secretos citado pela ABC), mas os norte-americanos continuam a não controlar grande parte do território afegão, deslocam-se com enorme risco, tiveram o ano de maiores perdas desde a invasão e desdobram-se em esforços de suborno de talibãs "moderados", os aliados que ali podem arranjar. O fracasso militar é tanto mais clamoroso quanto a guerrilha é uma força com menos recursos que os mujahedines armados por Reagan contra a URSS nos anos 80. Hoje, são norte-americanos os habitantes da antiga base militar soviética de Bagram e é em visita a Moscovo que vamos encontrar o secretário-geral da NATO, angariando apoio russo para o governo Karzai.

Mas o pior pode estar ainda para vir. Chama-se Paquistão e já mudou o nome à guerra - agora designada "Afpak", Afeganistão-Paquistão. Segundo o New York Times, a Casa Branca autorizou o aumento do número de bombardeamentos com aviões não-pilotados (drones) em território tribal paquistanês, estando a negociar com o governo do Paquistão o alargamento destas operações a refúgios de combatentes afegãos no Baluquistão paquistanês, já fora das áreas tribais fronteiriças. Estes ataques podem ter efeitos devastadores: não só são conhecidos vários casos de massacre de civis como, sempre que estas operações ocorreram em território do Paquistão, causaram verdadeiras tormentas políticas num país que é potência nuclear e onde o extremismo se tem desenvolvido.

Ao anunciar a guerra, o Nobel da Paz pintou-a com as cores de "esperança" que costuma usar: Obama trazia na algibeira vagas menções a uma retirada futura ("...que nos permita iniciar a transferência das nossas forças em Julho de 2011"). Mas essas palavras foram esvaziadas no próprio dia pelo secretário da Defesa, Robert Gates ("estaremos no Afeganistão nos próximos anos"), e pelo conselheiro de Segurança Nacional, o general James Jones ("Julho de 2011 é uma descida, não é um penhasco").

Em 2010, Portugal estará comprometido de forma mais profunda nesta guerra. Das primeiras decisões de Augusto Santos Silva como novo ministro da Defesa foi o significativo aumento da presença portuguesa no Afeganistão, que poderá superar os 250 militares (até agora eram cerca de uma centena). Enquanto enterra dinheiro e recursos para salvar a face da NATO no Afeganistão, o governo prepara-se para receber, nos finais do novo ano, uma cimeira da aliança. Será um momento crítico do balanço da guerra de Obama e uma convocação para toda a esquerda: não queremos a NATO em Portugal, não queremos Portugal na NATO. E queremos todas as tropas ocupantes fora do Afeganistão. Em 2010, estaremos na rua a dizê-lo.

Jorge Costa

(...)

Neste dossier:

Temas para 2010

Neste dossier publicamos dez artigos sobre alguns temas que marcaram 2009 e perduram para 2010.
2010, a crise continua por Francisco Louçã; Sócrates à boleia por Luís Fazenda; Crise e Cultura por Catarina Martins; Política de saúde: 2009, a gripe A contagiou o governo por João Semedo; 2010, o ano da escalada afegã por Jorge Costa; Violência contra as mulheres - 2009 entre os números e as leis por Sofia Roque; Professores, educação pública em Portugal por Miguel Reis; O desemprego está para durar! por Francisco Alves; Ano novo, que movimentos e lutas sociais? por Carlos Carujo; O combate contra a discriminação LGBT: os desafios que virão por José Soeiro e 2010: o ano do princípio do fim por Myriam Zaluar. 

2010: o ano do princípio do fim

Se pensarmos bem chegaremos à conclusão que em Portugal, em 2010, excepcional é mesmo trabalhar com um vinculo estável e com os direitos que foram conquistados pelas gerações anteriores. Artigo de Myriam Zaluar

O combate contra a discriminação LGBT: os desafios que virão

2010 começará com uma interessante discussão no Parlamento. A Assembleia da República vai votar, a 8 de Janeiro, 3 projectos de lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Artigo de José Soeiro

O desemprego está para durar!

Para inverter esta elevada taxa de desemprego, sabemos que não basta evitar a perda de postos de trabalho, é fundamental criá-los. Artigo de Francisco Alves

Professores, educação pública em Portugal

Afastaram-se os carrascos, perdoaram-se os desobedientes, reformulam-se algumas políticas. Os professores ganharam uma batalha, mas falta muito para que a escola vença a guerra. Artigo de Miguel Reis

Violência contra as mulheres - 2009 entre os números e as leis

Na verdade, da análise dos números resulta uma conclusão incontornável, a de que a violência doméstica é sobretudo violência contra as mulheres. Os números dizem-nos, portanto, que a dominação masculina existe, persiste e tem de ser combatida. Dizem-nos que precisamos de transformação, de emancipação, de organização social, de luta feminista. Artigo de Sofia Roque

2010, o ano da escalada afegã

Enquanto enterra dinheiro e recursos para salvar a face da NATO no Afeganistão, o governo prepara-se para receber, nos finais do novo ano, uma cimeira da aliança. Artigo de Jorge Costa

Política de saúde: 2009, a gripe A contagiou o governo

Enquanto, os problemas do SNS e da saúde dos portugueses passaram para um segundo plano. Artigo de João Semedo

Crise e Cultura

Será que as Indústrias Criativas vão aparecer numa manhã de nevoeiro para nos salvar? Artigo de Catarina Martins

Sócrates à boleia

Sócrates-kamikaze, precipitando legislativas, entregaria o governo de bandeja... punido pelos mesmos sectores que ambicionam a estabilidade a qualquer custo. Artigo de Luís Fazenda

2010, a crise continua

Os riscos sistémicos de economias presas a sistemas financeiros que flutuam sobre mares de activos tóxicos repercutem-se na economia portuguesa porque dominarão as grandes economias no ano de 2010. Artigo de Francisco Louçã

Ano novo, que movimentos e lutas sociais?

Defende-se aqui que é urgente que a militância social se torne uma aposta decisiva de toda a esquerda anti-capitalista. Artigo de Carlos Carujo