Falando de Hong Kong, onde desvendou a história de Edward Snowden, que se revelou como o autor das fugas de informação da NSA, o colunista do Guardian Glenn Greenwald junta-se a nós para discutir as ações de Snowden e as múltiplas revelações que fez sobre a vigilância governamental. “Existe este sistema de vigilância massivo em construção gradual nos Estados Unidos que já dispõe de grandes capacidades invasivas para monitorizar e armazenar as comunicações e outras formas de comportamento não apenas de dezenas de milhões de americanos, mas de centenas de milhões, provavelmente milhares de milhões de pessoas em redor do planeta”, diz Greenwald. “Uma coisa é dizer que queremos que o governo americano disponha destas capacidades. Outra é permitir que isto seja montado sem qualquer conhecimento público, sem qualquer debate público, e sem reais responsabilizações. O que em última análise o motivou (a Snowden) – e motiva ainda este relatório – é a necessidade de fazer luz sobre aquilo de que trata este mundo de incríveis consequências (a vigilância) e sobre o impacto que tem no nosso país e no planeta”.
AMY GOODMAN: Para falar mais sobre a NSA, junta-se a nós de Hong Kong o colunista Glenn Greeenwald, do Guardian, onde publicou uma série de artigos sobre a NSA nas últimas semanas, baseado em informações provenientes de Edward Snowden.
Desde que falámos com Glenn na sexa-feira, ele revelou mais duas grandes histórias sobre a NSA. Na sexta, ele expôs como o Presidente Obama ordenou aos seus conselheiros de segurança nacional e informações que compusessem uma lista de potenciais alvos estrangeiros para ciberataques por parte dos EUA. Depois, Greenwald revelou detalhes sobre uma ferramenta de recolha de dados chamada Boundless Informant (tradução literal “Informante sem fronteiras”) que detalha e discrimina por país as imensas quantidades de informações que recolhe de redes telefónicas e de dados (computadores). Um “mapa global de temperatura” da NSA, marcado como altamente secreto, mostra que em 2013 a agência coligiu 97 biliões de peças de informação de redes de computadores no mundo inteiro. A NSA apontava as suas baterias mais frequentemente para Irão, Paquistão, Jordânia, Egito e Índia. Os documentos do Boundless Informant mostram ainda que a agência coligiu mais de 3 biliões de peças de informação de redes de computadores americanos num período de 30 dias que acabou em março de 2013.
Glenn, bem vindo ao Democracy Now! Muito aconteceu este fim de semana. Edward Snowden veio à tona. Fale do significado desta série de exposições que está a continuar em Hong Kong.
GLENN GREENWALD: O primeiro destaque que penso dever ser feito de todas estas histórias, e particularmente da corajosa atitude de Snowden em se revelar a si mesmo, é que existe este sistema de vigilância massivo em construção gradual nos Estados Unidos que já dispõe de grandes capacidades invasivas para monitorizar e armazenar as comunicações e outras formas de comportamento não apenas de dezenas de milhões de americanos, mas de centenas de milhões, provavelmente milhares de milhões de pessoas ao redor do globo. Uma coisa é dizer que queremos que o governo americano disponha destas capacidades. Outra é permitir que isto seja montado sem qualquer conhecimento público, sem qualquer debate público, e sem reais responsabilizações. O que em última análise o motivou (a Snowden) – e motiva ainda este relatório – é a necessidade de fazer luz sobre aquilo de que trata este mundo de incríveis consequências (a vigilância) e sobre o impacto que tem no nosso país e no planeta.
AMY GOODMAN: No sábado, o Diretor de Informações Nacional James Clapper criticou as fugas.
JAMES CLAPPER: É literalmente, e não de forma figurativa, de dar volta às tripas ver isto suceder, devido ao enorme e grave prejuízo que é dado às nossas capacidades em termos de informação. E claro, para mim, isto é uma ferramenta essencial para preservar e proteger a segurança da nação, em termos físicos e eletrónicos1 (1). Portanto, todos os envolvidos nesta comunidade de segurança, particularmente os grandes homens e mulheres da NSA estão muito, mesmo profundamente afetados por isto.
AMY GOODMAN: Glenn Greenwald, a sua resposta?
GLENN GREENWALD: Este é apenas o mesmo guião que os funcionários do governo americano têm usado nas últimas cinco décadas quando algo é feito para trazer um pouco de transparência à má-conduta que levam a cabo no escuro. Imediatamente acusam aqueles que trazem à luz essa transparência de pôr em risco a segurança nacional. Tentam assustar o público americano por forma a que acredite que foi posto em risco, e que a única forma de continuarem seguros é que confiem naqueles que estão no poder, e permitam que eles façam o que quiserem, sem quaisquer restrições, responsabilizações ou luzes. Isto perpetua-se desde Daniel Ellsberg, que agora é tido como um herói, mas que que na altura foi acusado pelos Clappers do mundo de ser um traidor que pôs em risco a segurança nacional e as vidas dos homens e mulheres que vestiam uniformes americanos.
A realidade é que, se olharmos para o que foi revelado, tratou-se de coisas como o facto de os Estados Unidos – a NSA – estarem a reunir dados telefónicos de milhões de americanos sem ter em conta qualquer ação incorreta, ou que estão a capturar dados de servidores dos maiores fornecedores de serviços de internet que as pessoas ao redor do globo usam para comunicar umas com as outras. É inconcebível – não há argumentação racional, sã, que explique como revelar isso alerta os terroristas que há muito sabem que o governo os tenta escutar, ou de alguma forma permitiu os ataques contra os Estados Unidos. A única coisa que foi exposta foi a incorreção destes funcionários políticos. E a única coisa que foi prejudicada foi a sua reputação e credibilidade. As nomeações ultrassecretas são usadas com maior frequência para proteger os funcionários políticos de que salte aos olhos do público o que fazem, não propriamente proteger a segurança nacional. E esse foi certamente o caso dos artigos que publicámos.
AMY GOODMAN: Glenn Greenwald, pode contar-nos mais sobre Edward Snowden, por que motivo ele falou, quais os riscos, e porque estão ambos em Hong Kong; por que escolheu ele Hong Kong?
GLENN GREENWALD: É mesmo uma das experiências mais notáveis que já tive, encontrá-lo e entrevistá-lo, há alguns meses, na realidade, e durante os últimos dias aqui em Hong Kong. E digo isso porque ele levou a cabo ações que sabe que vão causar sérios danos aos seus interesses e bem-estar pessoais, quer isso signifique que nunca mais volta para casa, ou que vai passar várias décadas ou mesmo o resto da sua vida numa jaula ou passado de governo em governo. No curto prazo, ele sabe que a sua vida ficou virada do avesso, e ele sabia disso quando fez o que fez. E existiam várias formas de ele poder ter tirado partido desta informação. Se quisesse enriquecer, podia tê-la vendido a diversas agências de informação. Se quisesse prejudicar os Estados Unidos, podia tê-la descarregado indiscriminadamente para a internet, ou passado a inimigos dos EUA, descobrindo todo o tipo de operações secretas e agentes infiltrados. Mas não fez nada disso. Ele fez algo que não o beneficia em nada. Apenas beneficia o público. Beneficia-nos a todos, porque ficámos a saber o que o nosso governo anda a fazer, e como o nosso mundo é afetado por isso. E contudo ele fez isso sabendo a situação em que se ia meter, mas nunca traiu esse conhecimento, quando falou connosco, de alguma forma transmitindo qualquer receio. Ele estava preocupado com o que pudesse suceder. Estava tenso relativamente a andar por aí, vendo o que estava para suceder. Mas nunca se lamentou. Fez a sua escolha e estava em paz com a mesma, porque sabia que tinha tomado a atitude certa.
No que concerne à vinda para Hong Kong, a razão principal prendeu-se com o facto de ele ter observado, nos últimos 4 anos, como o governo americano, sob as ordens do presidente Obama, tinha julgado de forma mais agressiva e prolífica os informadores, do que qualquer outra administração na história da América, de longe. E observou como o julgamento de Bradley Manning, agora em curso, se desenrola debaixo de grande secretismo, pouca transparência e atalhos processuais gritantes. E ele sabia que, se ficasse nos EUA, estaria sujeito exatamente a esse tratamento, pelo que foi para um local onde acreditava que os valores políticos que prevalecem eram aqueles que ele partilhava, onde abunda a liberdade de expressão e dissidência política.
Mas ele também acreditava vir para um sítio onde o governo não cedesse imediatamente aos desígnios do governo americano no que tocasse ao que lhe fosse acontecer, mas que em vez disso pugnasse pelos seus interesses e princípios legais, pelo que pensava ser este o sítio ideal.
AMY GOODMAN: Fale sobre o significado da pessoa para quem ele trabalhou, Booz Allen Hamilton [empresa subcontratada pela NSA], e de ter trabalhado na CIA e depois para diversos prestadores de serviços que trabalhavam dentro da NSA.
GLEN GREENWALD: Certo. Ele nunca esteve empregado de forma direta pela NSA, como diz. Estava diretamente empregado pela CIA, tendo estado colocado com disfarce diplomático em Genebra, Suíça, durante aproximadamente dois anos e meio, entre 2007 e 2009. Quer antes quer depois disso estava empregado por uma série de prestadores de serviços privados, incluindo Booz Allen e a Dell Corporation, onde essencialmente recebia tarefas relativas à ou a executar na NSA. Portanto, se bem que não estivesse a trabalhar diretamente para a NSA – tecnicamente não era esse o seu empregador – ia para os escritórios da NSA todos os dias. Recebia ordens e instruções de supervisores da NSA.
O que isto mostra é este mundo incrivelmente interligado formado por corporações privadas e as nossas agências de informação mais poderosas e secretas. Tudo foi privatizado, ou pelo menos a esmagadora maioria. Existem lucros imensos feitos aqui. O que apenas acresce às razões de preocupação quando estas capacidades extremas de vigilância estão atribuídas a estas agências, porque não são apenas funcionários públicos que as controlam, mas também as agências privadas que desempenham um papel substancial no funcionamento disto tudo.
E Booz Allen, em particular, é um dos maiores e mais significativos prestadores de serviços da Defesa. Um dos seus principais funcionários é o general Michael McConnell, que era o diretor de informações nacional na era George Bush. E é o protótipo daquele prestador que, quando a administração é republicana, entram os executivos de Booz Allen e preenchem as posições de segurança, sendo que quem sai vai para posições executivas de Booz Allen, invertendo-se os papéis quando entra uma administração democrata. É um dos prestadores de serviços de Defesa mais importantes e influentes no mundo. Penso que o facto de ele (Edward Snowden, N.T) ter trabalhado para eles lhes vai criar muitos problemas.
AMY GOODMAN: E a ligação de McConnel com a T.I.A, a Total Information Awareness2? Quer dizer, há 10 anos atrás, o país estava revoltado com a possibilidade de que os americanos fossem espiados, pelo que foi abortada, supostamente. Qual a ligação de McConnel a isto?
GLENN GREENWALD:Sim. E o que é mais fascinante é que isso aconteceu nos finais de 2002, 2003, quando foi revelado que o Pentágono estava a planear o seu programa T.I.A. Estava na realidade a ser gerido por John Poindexter, que era o anterior conselheiro de segurança do presidente Reagan, que se demitiu em desgraça e quase foi preso na sequência do escândalo conhecido por Irangate3. E o mais espantoso é que houve grande burburinho nacional sobre este assunto, mesmo logo após o 11 de Setembro, quando o público, os media, e o congresso, eram extremamente subservientes face ao que o governo queria fazer, mas esse era um passo grande demais, mesmo então. E, contudo, com estas revelações que publicámos até aqui, e as que continuaremos a publicar no futuro, o que elas ilustram é precisamente o que diz, só deixaram foi de lhe chamar Total Information Awareness. Isso era um termo um pouco demasiado honesto. Essa foi talvez a razão principal do dito burburinho, porque era demasiado óbvio o que se propunha atingir. Mas o que a NSA está a fazer, não apenas internamente, mas em termos globais, é criar um sistema Total Information Awareness. O último artigo que publicámos, como diz, foi sobre um programa de recolha de dados chamado Boundless Informant. É disto que a NSA trata, apagar todos os vestígios de privacidade no mundo e garantir que têm capacidade de monitorização total e sem controlo, sobre todas as formas de comportamento humano. E é, em última análise, por isso que ele (Edward Snowden, N.T) avançou, por achar que isto não podia ser feito em segredo. Se o público quer que seja assim, pois que seja, mas nós precisamos de ser informados sobre o que está a acontecer e que exista debate público sobre isso.
AMY GOODMAN: Glenn Greenwald, gostava de ir um pouco atrás, e voltar ao que Edward Snowden disse.
EDWARD SNOWDEN: Qualquer analista pode, a qualquer momento, escolher um alvo algures, qualquer seletor em qualquer lado. Onde essas comunicações serão recolhidas depende do alcance da rede de sensores e das autorizações de que dispõe o analista. Nem todos os analistas têm a capacidade de selecionar tudo. Mas eu, sentado na minha secretária, tinha certamente autorização para escutar qualquer pessoa, desde a si ou ao seu contabilista até um juíz federal, ou mesmo o Presidente, desde que dispusesse de um email pessoal.
AMY GOODMAN: OK, Edward Snowden é um contratado de 29 anos de Booz Allen. Ele trabalhou no Hawai, e disse que podia escutar qualquer uma destas pessoas. Explique como isso é possível, Glenn Greenwald, só para tornar isto muito claro, em linguagem simples, para gente de todo o país e de todo o mundo.
GLENN GREENWALD: A NSA importa para os seus sistemas biliões e biliões de comunicações todas as semanas – biliões e biliões. De facto, os documentos que publicámos permitem saber que se importam 90 biliões num período de 30 dias, incluindo três biliões nos EUA. O Washington Post, há três anos, disse-nos que, diariamente, a NSA recolhe e armazena 1,7 biliões de emails e chamadas telefónicas entre americanos. O seu argumento é que se pode recolher, armazenar, e monitorizar, mas que a lei diz que não se pode ouvir ou ler se for por e entre americanos, sem antes ir a um tribunal FISA4 (4). E o que Edward Snowden nos diz é que, apesar de ser essa a letra da lei, os monitores, os sistemas na NSA, permitem acesso total e ilimitado, em qualquer momento, a qualquer um destes analistas, para que ele possa ouvir o que entender, ler os emails que entender, monitorizar em tempo real chats que estejam a acontecer. E porque não há controlo, porque na realidade não há responsabilização ou transparência, não existe verificação deste abuso. E sabemos com certeza – devíamos ter aprendido a lição há 35 anos quando Comité Church5 o documentou, que quando a seres humanos é permitido espiar outros seres humanos, a escalada crua, abusiva e progressiva é inevitável. É por isso que é suposto já não haver espionagem, capacidades não controladas. Mas como o Sr. Snowden nos documentou, é precisamente isso que temos, e é por isso que a ameaça é tão grande.
Publicado pela Democracy Now!
Tradução de Luís Moreira para o Esquerda.net
1 No original “safety and security”, que sendo sinónimos acabam por ter significados diferentes neste contexto.
2 TIA – Total Information Awareness – http://en.wikipedia.org/wiki/File:Total_Information_Awareness_--_system_diagram.gif
3 Irangate ou Irão-Contras, um escândalo de troca de reféns por armas.
4 FISA – Foreign Intelligence Surveillance Court.
5 Comité do Senado americano que investigou as atividades da CIA, presidido pelo Senador Americano Frank Church (democrata) em 1975. O Comité investigou várias atividades ilegais da CIA e do FBI, que foram desde experiências ilegais em seres humanos à entrada em casas sem autorização legal, intercetação de comunicações sem autorização judicial, assassinatos, e outras atividades reveladas pelo escândalo Watergate.