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O que é o Sistema de Crédito Social na China?

Cidadãos e empresas recompensadas ou punidas pelo seu comportamento social: será isto um pesadelo saído de uma ficção distópica ou uma ferramenta para responsabilizar governantes e empresas? Artigo de Meg Jing Zen.

Daqui a menos de um mês [NT: o artigo foi publicado em janeiro de 2018], o Ano Novo Lunar chinês trará a grandiosa corrida às viagens — a maior migração humana na Terra.

Enquanto muitas pessoas fazem planos para o regresso à terra natal e participarem nos festejos em família, as autoridades puseram na lista negra milhões de cidadãos chineses, identificados como “não qualificados” para reservarem voos ou bilhetes de comboios de alta velocidade.

Este mecanismo de rankings e listas negras é um projeto piloto do Sistema de Crédito Social chinês. Com a missão de “consciencializar acerca da integridade e do nível de idoneidade da sociedade chinesa”, o governo chinês pretende lançar o sistema em todo o país em 2020 para classificar a idoneidade dos seus 1400 milhões de cidadãos.

O que quer dizer “crédito” na China

A palavra “crédito” — xinyong (信用) — é um pilar central da ética tradicional Confuciana, que remonta ao fim do século IV a.C. No seu contexto original, xinyong é um conceito moral que indica a honestidade e idoneidade de cada pessoa. Nas últimas décadas, o seu significado alargou-se para incluir a fiabilidade creditícia financeira.

Mas o que quer dizer “crédito” neste Sistema de Crédito Social?

É uma pergunta que as autoridades chinesas têm feito há mais de de anos. Quando o plano para construir um Sistema de Crédito Social foi inicialmente proposto, em 2007, o objetivo principal era restabelecer a ordem no mercado, alavancando a fiabilidade creditícia das empresas e indivíduos.

O âmbito do projeto estendeu-se até infiltrar outros aspetos da vida diária.

Ações que possam prejudicar o registo de crédito de alguém incluem agora não aparecer num restaurante sem se ter cancelado a reserva, fazer batota nos jogos online, escrever falsas críticas e avaliações de produtos, ou atravessar a rua fora da passadeira.


Polícia de Trânsito de Ninan demonstra na rede social Weibo como o sistema pode ser usado para identificar quem atravessa dentro e fora das passadeiras.

Colher recompensas por “boas ações”

Um ponto comum a todos os projetos piloto em marcha é o de criar um sistema de sanções e recompensas uniforme, tendo por base a pontuação de crédito de cada cidadão.

A maior parte das cidades têm usado um sistema de pontos. Toda a gente começa com uma base de referência de 100 pontos. As pessoas podem ganhar pontos até chegarem ao limite de 200, através de “boas ações”, como participar em trabalhos de caridade, ou separar e reciclar o lixo. Na cidade de Suzhou, por exemplo, ganha-se seis pontos por doar sangue.

Ser um “bom cidadão” é bem recompensado. Nalgumas regiões, cidadãos com elevada pontuação de crédito social têm direito a ginásios gratuitos, transportes públicos mais baratos e menos tempo de espera nos hospitais. Por outro lado, quem tiver baixa pontuação pode ver o acesso a viagens e a serviços públicos ser restringido.

Nesta fase, as pontuações estão ligadas ao número do bilhete de identidade. Mas o tribunal da internet chinês já propôs um sistema de identificação online, ligado às contas das redes sociais.

Apontar e envergonhar os cidadãos na lista negra

Publicar online os dados dos cidadãos na lista legra já se tornou prática comum, mas algumas cidades optaram por levar a vergonha púbica a outro nível.

Muitas províncias têm usado ecrãs gigantes em espaços públicos para expôr essas pessoas. Nalgumas regiões, as autoridades personalizaram os tons de marcação telefónica dos devedores da lista negra, de forma a que quem lhes liga ouça uma mensagem do tipo: “a pessoa a quem está a ligar é um devedor desonesto”.

É importante que um país possa ser capaz de fazer cumprir ordens de tribunal, mas quando os sistemas legislativo e judicial por vezes funcionam mal, como acontece na China, isso levanta questões sobre se a capacidade de expôr e punir sem um processo justo poderá conduzir a abusos de poder.

Liu Hu, um conhecido jornalista que criticou responsáveis governamentais nas redes sociais, foi acusado de “espalhar rumores e difamações”. Quanto procurava obter reparação judicial no início de 2017, percebeu que estava na lista negra enquanto “desonesto” e proibido de comprar bilhetes de avião.

A história de Liu pode ser um incidente isolado, mas mostra como o sistema pode ser usado para aplicar a agenda do governo e reprimir quem dele discorde.

Dominar o poder do “big data”

O papel dos grandes volumes de dados neste projeto foi alvo de grande interesse dos media fora da China, devido à preocupação sobre como o governo chinês pode usar o seu poder para intensificar ainda mais a vigilância.

Por exemplo, as gigantes tecnológicas Alibaba e Tencent estão a testar os ficheiros de crédito dos utilizadores com base nos dados comportamentais recolhidos através do uso das redes sociais e sites de e-comércio. Até agora, foram revelados poucos detalhes acerca do plano para integrar dados dos utilizadores de plataformas online num sistema central sob supervisão do governo.

Mas isso vai mudar em breve. Desde dezembro, a Comissão para o Desenvolvimento Nacional e Reforma e o Banco Central da China começaram a aprovar projetos piloto para integrar os grandes volumes de dados com o Sistema de Crédito Social. Enquanto uma das primeiras províncias-piloto, Guizhou foi escolhida para apresentar uma experiência governamental de Sistema de Crédito Social aditivado com o “big data”.

Guizhou é uma das províncias mais pobres da China e é mais conhecida por ser a terra do Maotai — uma bebida alcoólica de grande qualidade. Esta escolha de local aparentemente ao acaso foi na verdade tática. Por muitos desconhecida, desde 2015 que esta zona rural se tem tornado o centro de “big data” do país.


Xi Jinping visita o centro de dados do projeto-piloto de Guizhou. Foto da agência de notícias Xinhua.

Em 2017, gigantes tecnológicas como a Google, Microsoft, Baidu, Huawei e Alibaba instalaram centros de investigação e de dados nesta região. Em 2018, a Apple seguiu-lhes os passos e transferiu o seu servidor chinês de iCloud para uma empresa local.

A posição de Guizhou enquanto centro de dados do país torna-a um laboratório social ideal para as experiências de Sistema de Crédito Social do governo local.

Virar o sistema contra o governo

Enquanto há quem veja o Sistema de Crédito Social da China como algo saído de uma ficção distópica, este sistema, se corretamente implementado, pode ter impactos positivos — em especial quando usado para responsabilizar elementos governamentais e empresariais.

A maior parte dos projetos piloto tem por alvo empresas e pessoas com a mesma severidade. Empresas com um historial de danos ambientais ou preocupações quanto à segurança dos produtos são agora expostas nas listas negras online com regularidade.

Os responsáveis governamentais também podem ser encontrados nestas listas negras online. Em dezembro de 2017, havia mais de 1.100 apontados como desonestos. Medidas como esta para expôr a corrupção têm sem dúvida efeitos mais benéficos para a sociedade chinesa do que o envergonhamento público de quem atravessa fora da passadeira.

Como defende o professor Du Liqun da Universidade de Pequim, no contexto chinês a construção de um Sistema de Crédito Social devia começar pela construção de um governo idóneo.


Meg Jing Zen é doutoranda na Queensland University of Technology, na Austrália.

Artigo publicado no portal The Conversation a 23 de janeiro de 2018. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.

 

 

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